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O problema da desaposentação no direito brasileiro

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03/11/2017 às 12:00
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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Supremo Tribunal Federal, no bojo do Recurso Extraordinário nº 381367/RS[36], pacificou a controvérsia aqui exposta, aduzindo que incumbe ao Congresso Nacional a disciplina da matéria. Por sete votos a quatro, a maioria do STF entendeu que somente por lei é possível fixar os critérios para a desaposentação, não podendo o Poder Judiciário se converter num verdadeiro legislador positivo.

Em sua manifestação no processo, a Advocacia-Geral da União apresentou um estudo técnico no qual restou constatado que a desaposentação geraria impacto de quase oito bilhões de reais por ano aos cofres da Previdência Social, a demonstrar que se trataria, a princípio, de uma medida temerária, em face da crise econômica que vem assolando a economia brasileira.

A proposta do Supremo Tribunal Federal, portanto, considera a possibilidade de um diálogo institucional entre os Poderes, vez que o debate acerca das escolhas entre as alternativas constitucionalmente possíveis deveria ser feito no âmbito do Poder Legislativo, com a implementação pelo Executivo. Declarou-se que a desaposentação não é contrária ao espírito da Carta da República, mas sua disciplina passará necessariamente pelo crivo do legislador.

Malgrado não se trate de decisão proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade, o entendimento do STF tende a ser acompanhado pelas demais cortes, vez que incumbe ao Supremo dar a última palavra acerca da interpretação constitucional. Apesar de os sistemas concreto e abstrato do controle de constitucionalidade se diferenciarem quanto aos legitimados ativos e âmbito de eficácia da decisão, o Pretório Excelso, ao se manifestar sobre matéria constitucional, em qualquer mecanismo de controle, necessariamente apreciará questões atinentes à condição do país, à política econômica e às alterações fáticas no plano social, a demonstrar que a referida concepção binária se encontra atualmente em vias de desuso.

Com a devida vênia, entende-se que o Supremo Tribunal Federal deu à controvérsia uma resposta eminentemente positivista e exegética,  potencializando demasiadamente a regra em detrimento do direito, não sendo condizente com a própria posição de vanguarda que tem adotado nas últimas décadas em matéria de direitos fundamentais.  Como discorrido no início deste trabalho, um sistema jurídico não pode ser constituído unicamente por regras ou apenas por princípios, sob pena de ser demasiadamente rígido ou flexível, respectivamente. Isto porque as regras têm o condão de limitar, em nome da segurança jurídica e da estabilidade das relações sociais, determinados conceitos fechados que não podem ser afrontados. Por outra parte, os princípios são conceitos abertos que servem para a compreensão e interpretação abrangente do direito. Nessa toada, no modelo normativo pós-positivista, o ideal é a interação entre regras e princípios, como forma de materializar a aplicação equânime das normas jurídicas no processo de subjetivação do direito objetivo.

Além disso, nos autos do Recurso Extraordinário nº 641320/RS, o próprio Supremo Tribunal Federal, na qualidade de guardião dos direitos fundamentais, já admitiu a possibilidade de decisão manipulativa[37], que ocorre quando o Judiciário reescreve o conteúdo do ordenamento jurídico, modificando ou aditando a lei a fim de que ela se torne compatível com o texto constitucional, vez que a Constituição consagra o princípio da inafastabilidade do controle judicial (art. 5º, XXXV) e todos os poderes estatais estão subordinados ao Texto Maior.

Em realidade, o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto no RE 641320/RS, citando a doutrina italiana de Riccardo Guastini, afirma que decisão manipulativa é aquela mediante a qual "o órgão de jurisdição constitucional modifica ou adita normas submetidas a sua apreciação, a fim de que saiam do juízo constitucional com incidência normativa ou conteúdo distinto do original, mas concordante com a Constituição".

A análise da viabilidade da desaposentação encontra obstáculos nos princípios da solidariedade e equilíbrio financeiro e atuarial, além da regra insculpida no artigo 18, § 2º, da Lei 8.213/91, que prevê a ausência de direito a outros benefícios ao aposentado que retornar ou permanecer em atividade empregatícia, salvo ao salário-família e à reabilitação profissional. Sem embargo, entende-se que o princípio da solidariedade não pode ser preponderado em abstrato como subterfúgio para negativa de direitos fundamentais ou como justificativa para que uma geração seja responsabilizada pela má gerência dos cofres públicos em ocasiões pretéritas, mormente quando o segurado permanece em atividade, vertendo contribuições aos cofres da Previdência Social após a sua aposentação.

Importante rememorar que a concepção dogmática pós-positivista introduzida por Robert Alexy, embasada no pensamento de Ronald Dworkin, representou avanço significativo na conceituação das entidades em que a norma jurídica se desmembra e na representação sistematizada da figura do ordenamento jurídico, na medida em que elasteceu o conceito de princípios, não os restringindo à esfera dos direitos individuais. Ademais, com a doutrina alemã, os direitos fundamentais se incorporaram à concepção teórica de ordenamento jurídico, com a natureza de princípios, dando azo à possibilidade de ponderação de interesses entre eles.[38]

Como dito alhures, o conflito de regras se opera no plano de validade, ao passo que a colisão entre princípios se dá na esfera dos valores. No entanto, conquanto não se possa ter a mensuração exata do peso axiológico de um princípio em comparação a outro de igual patamar normativo, tal avaliação deve ser empreendida pelo magistrado como condição sine qua non para que haja uma resposta estatal condizente com os ditames de equidade. É que o sistema jurídico atual admite a formulação de pleitos com base em um simples princípio, não podendo a regra (ou a omissão legislativa) impedir o usufruto de direitos que derivam do espírito constitucional, vez que a revisão do benefício previdenciário, com fundamento em circunstâncias ulteriores favoráveis ao segurado, decorre do próprio direito constitucional ao benefício mais vantajoso.

Por fim, tendo em vista que o STF já pacificou que o tema desaposentação depende de ato legislativo primário, nada impede que a matéria venha a ser disciplinada a qualquer momento, especialmente por meio do afastamento do veto ao trecho da Lei nº 13.183/2015, como exposto em linhas anteriores. Além disso, a coisa julgada em matéria de controle de constitucionalidade contem implicitamente a cláusula "rebus sic stantibus", a significar que atua enquanto se mantiverem íntegras as situações de fato e de direito existentes quando do julgamento, admitindo nova análise pela Corte Constitucional se houver alteração das circunstâncias legais, políticas, econômicas ou sociais, bem como na hipótese de mora legislativa injustificada.


REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. por Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

BRANCO, Ana Paula Tauceda. A colisão de princípios constitucionais no direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2007.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 381367/RS, Relator: Ministro Dias Toffoli, Julgamento: 26/10/2016.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1334488/SC, Relator: Ministro Herman Benjamin, DJ de 14/5/2013

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Processo nº 00066355520114058400 (AC534767/RN). Desembargador Relator: Paulo Gadelha. Segunda Turma, Julgamento: 06/03/2012, Publicação: DJE 15/03/2012 - Página 497.

BRASIL. Turma Nacional de Uniformização. Processo nº 200872580022693, Relator(a) Juiz Federal JOSÉ ANTÔNIO SAVARIS, DJ 23/3/2010.

CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 6 ed. São Paulo: LTR, 2005.

CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Princípios constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. Salvador: Juspodivm, 2008.

DIAS, Eduardo Rocha.  MACÊDO, José Leandro Monteiro de. Curso de Direito Previdenciário. São Paulo: Método, 2008.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

MARTINEZ, Luciano. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2010.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

REALE, Miguel. Filosofia do direito. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

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NOTAS

[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 381367/RS, Relator: Ministro Dias Toffoli, Julgamento: 26/10/2016.

[2]{C} REALE, Miguel. Filosofia do direito. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 306.

[3] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 254-266.

[4] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. por Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 90.

[5] MARTINEZ, Luciano. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 77-78.

[6]  Art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/42): “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito.”

[7] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 221.

[8] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 39.

[9] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. por Virgílio Afonso da Silva.  São Paulo: Malheiros, 2008, p. 92.

[10] Ibidem, p. 93.

[11] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério.  Trad. Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 39.

[12] Ibidem, p. 43.

[13] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. Salvador: Juspodivm, 2008, p. 181-182.

[14] Ibidem, p. 182.

[15] CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Princípios constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 45.

[16] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 44.

[17] BRANCO, Ana Paula Tauceda. A colisão de princípios constitucionais no direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2007, p.82-85.

[18] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério.  Trad. Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 43-44.

[19] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. por Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 90-91.

[20] Ibidem, p. 87.

[21] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. por Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 94-103.

[22] Ibidem, p. 118.

[23] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 92.

[24] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 93.

[25] Ibidem, p. 95-96.

[26] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 293.

[27] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 40-41.

[28]  MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 54.

[29] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 289.

[30]  CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 6 ed. São Paulo: LTR, 2005.       

[31]  DIAS, Eduardo Rocha. e MACÊDO, José Leandro Monteiro de. Curso de Direito Previdenciário. São Paulo: Método, 2008.

[32] "Art. 54. (...)

§ 1º Os aposentados por tempo de contribuição, especial e por idade do Regime Geral de Previdência Social poderão, a qualquer tempo, ressalvado o período de carência previsto no § 2º do art. 25 desta Lei, renunciar ao benefício, ficando assegurada a contagem do tempo de contribuição que serviu de base para a concessão do benefício.

§ 2º Na hipótese prevista no § 1º deste artigo, não serão devolvidos à Previdência Social os valores mensais percebidos enquanto vigente a aposentadoria inicialmente concedida.’ (NR)

Art. 96 (...)

III - não será contado por um regime previdenciário o tempo de contribuição utilizado para fins de aposentadoria concedida por outro, salvo na hipótese de renúncia ao benefício, prevista no § 1º do art. 54 desta Lei."

[33] BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Processo nº 00066355520114058400 (AC534767/RN). Desembargador Relator: Paulo Gadelha. Segunda Turma, Julgamento: 06/03/2012, Publicação: DJE 15/03/2012 - Página 497.

[34] BRASIL. Turma Nacional de Uniformização. Processo n.º 200872580022693, Relator(a) Juiz Federal JOSÉ ANTÔNIO SAVARIS, DJ 23/3/2010.

[35] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1334488/SC, Relator: Ministro Herman Benjamin, DJ de 14/5/2013.

[36] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 381367/RS, Relator: Ministro Dias Toffoli, Julgamento: 26/10/2016.

[37] Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 641320/RS, Relator: Ministro Gilmar Mendes, Julgamento: 11/05/2016.

[38] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. por Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 136.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NERY, Renildo Argôlo. O problema da desaposentação no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5238, 3 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61634. Acesso em: 28 mar. 2024.

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