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Teoria do Ordenamento Jurídico, de Norberto Bobbio.

Resumo do livro

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02/11/2017 às 21:31

Resumo:


  • A especificidade do direito reside no ordenamento jurídico como um todo, e não na norma jurídica isolada.

  • O ordenamento jurídico é composto de normas que estabelecem relações entre si, criando uma unidade sistêmica com questões de hierarquia, coerência e completude.

  • Há diversas teorias e métodos para lidar com problemas de lacunas, antinomias e relações entre diferentes ordenamentos jurídicos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Capítulo III – A coerência do ordenamento jurídico

“Quando nos perguntamos se um ordenamento jurídico constitui um sistema, perguntamo-nos se as normas que o compõem estão em relação de compatibilidade entre si e em que condições é possível essa relação” (p. 231).

A primeira classificação apresentada no capítulo é a de Kelsen, que divide os sistemas em:

  1. Estáticos: São aqueles sistemas erigidos em torno de um conteúdo material. Exemplo disso seria um sistema moral, que se justifica com base em valores (conteúdo material).

  2. Dinâmicos: São aqueles sistemas justificados por expedientes formais. Segundo Kelsen, os ordenamentos jurídicos são deste tipo, já que suas normas remetem sempre a uma autoridade superior (até chegar ao poder soberano com sua norma fundamental). Nas palavras do autor, “o ordenamento jurídico é um ordenamento em que a pertinência das normas é julgada com base num critério meramente formal, ou seja, independentemente do conteúdo” (p. 233). Um ordenamento de inspiração teocrática também seria dinâmico, na medida em que remeteria a essa autoridade superior chamada Deus.

Para exemplificar a diferença entre esse binômio criado por Kelsen, Norberto Bobbio vale-se da seguinte ilustração:

Por exemplo, um pai ordena ao filho que faça a lição, e o filho pergunta por quê. Se o pai responde: “porque você deve aprender”, a justificação tende à construção de um sistema estático; se responde: “Porque você deve obedecer ao seu pai”, a justificação tende à construção de um sistema dinâmico. Suponhamos que o filho, não satisfeito, peça uma ulterior justificação. No primeiro caso perguntará: “Por que devo aprender?”. A construção do sistema estático levará a uma resposta desse tipo: “Porque você precisa passar de ano”. No segundo caso perguntará: “Por que devo obedecer a meu pai?”. A construção do sistema dinâmico levará a uma resposta desse tipo: “Porque seu pai foi autorizado a comandar pela lei do Estado”. (BOBBIO, 2010, p. 233)

Três significados de sistema

Embora o termo “sistema” seja amplamente empregado na seara jurídica, ele possui certas nuances semânticas que merecem ser investigadas.

O 1º significado de sistema consiste na ideia de um sistema dedutivo. Isto é, o ordenamento jurídico seria um sistema, na medida em que ele decorre/deriva de alguns princípios gerais. Num sistema dedutivo, uma contradição é capaz de fazer desmoronar todo aquele conjunto. Obs: Os jusnaturalistas geralmente se valem desta acepção do termo. Inclusive, “uma das mais constantes pretensões dos jusnaturalistas modernos, pertencentes à escola racionalista, foi a de construir o direito natural como um sistema dedutivo” (p. 236), a exemplo do que pensava o filósofo Leibniz, que negava a dimensão empírica do direito, enxergando-o como uma mera decorrência da Lógica, ou seja, como um sistema deduzível das regras gerais da Lógica. Segundo Leibniz,

A partir de qualquer definição se podem extrair consequências seguras, empregando as incontestáveis regras da lógica. É exatamente isso que se faz quando se constroem as ciências necessárias e demonstrativas, que não dependem dos fatos, mas unicamente da razão, tais como a lógica, a metafísica, a aritmética, a geometria, a ciência do movimento, e também a ciência do direito, que não são absolutamente fundadas na experiência e nos fatos, mas servem para justificar os fatos e para regulá-los antecipadamente: o que valeria, para o direito, ainda que no mundo não existisse nem sequer uma lei. [...] A teoria do direito faz parte daquelas teorias que não dependem de experimentos, mas de definições; não do que mostram os sentidos, mas do que demonstra a razão. (apud BOBBIO, 2010, p. 237)

O 2º significado de sistema remonta a Savigny, e consiste num movimento diametralmente oposto àquele primeiro significado empregado por Leibniz e pelos demais jusnaturalistas.

Aqui a ideia de sistema ganha uma conotação empírica, indutiva, e não dedutiva. Além disso, neste caso o sistema parte do particular para se chegar ao geral, tal qual a classificação sistemática da zoologia (na qual os biólogos criam as classificações dos seres vivos a partir da experiência empírica de descoberta e catalogação de espécimes individuais, para só então ensaiarem alguma forma de classificação geral).

A ideia de jurisprudência sistemática tem esse caráter empírico e indutivo, que parte do particular para se chegar ao geral. Foi com este movimento que a jurisprudência desenvolveu as noções de negócio jurídico e de relação jurídica, segundo aponta o autor (p. 238).

O 3º significado de sistema traz uma definição negativa, a de sistema como uma ordem que exclui a incompatibilidade de suas normas consideradas individualmente. Diz-se “individualmente” porque a incompatibilidade se dá aqui entre 2 normas. Essa incompatibilidade não é capaz de por em xeque o ordenamento, mas apenas aquela norma considerada extravagante ou, no máximo, as duas normas em conflito.

Neste caso não se trata de incompatibilidade com o ordenamento, mas entre duas ou mais normas singulares: “Duas proposições como ‘a lousa é negra’ e ‘o café é amargo’ são compatíveis, mas não têm implicação uma com a outra. Portanto, não é correto falar [...] de coerência do ordenamento jurídico no seu todo” (p. 239). Nesta 3ª definição de sistema, entende-se que compatibilidade ≠ coerência (como demonstrado no exemplo), bastando que as normas não se contradigam uma a outra, ainda que versem sobre conteúdos totalmente distintos.

As antinomias

Quando nos deparamos com duas normas de um mesmo ordenamento que incompatíveis entre si, temos a chamada antinomia.

As antinomias ocorrem especificamente no plano formal, isto é, no âmbito da estrutura lógica de cada norma (lembrando que a norma, para a lógica, é uma proposição prescritiva).

Partindo da tábua de oposições oriunda da Lógica aristotélica, observamos 6 relações distintas entre as proposições prescritivas, quais sejam:

a. O - O não = relação entre Obrigatório e Proibido (CONTRÁRIOS)

b. O - não O = Obrigatório x Permissão negativa (CONTRADITÓRIOS)

c. O não - não O não = Proibição x permissão positiva (CONTRADITÓRIOS);

d. O - não O não = Obrigatório x permissão positiva (SUBALTERNOS);

e. O não - não O = Proibição x Permissão negativa (SUBALTERNOS);

f. não O não - não O = Permissão positiva x Permissão negativa (SUBCONTRÁRIOS).

Verifica-se por meio deste expediente lógico que só há incompatibilidade nos 3 primeiros casos, ou seja, só são incompatíveis entre si as proposições contrárias ou contraditórias. No caso de proposições contrárias, se há uma proposição V, a outra será necessariamente F, de modo que não podem ser ambas V (mas podem ambas ser F). Já as proposições contraditórias não podem ser ambas V nem ambas F, ou seja, a verdade de uma implica na falsidade de outra, e vice-versa.

As proposições subalternas e subcontrárias podem ser compatíveis.

Voltando para as proposições incompatíveis, temos 3 casos:

  1. Uma uma norma O (obrigação) em conflito com uma norma O não (proibição) = contrariedade.

  2. Uma norma O (obrigação) e uma não O (permissão negativa) = contraditoriedade;

  3. Uma norma O não (proibição) e uma não O (permissão negativa) = contraditoriedade.

O autor fornece três exemplos para ilustrar essas três relações de incompatibilidade entre normas jurídicas:

Primeiro caso: o art. 27 da Constituição italiana, no qual se lê: “a responsabilidade penal é pessoal”, está em contraste com o art. 57, alínea 2, do Código Penal italiano, que atribui ao diretor do jornal uma responsabilidade pelos crimes cometidos por meio da imprensa por seus colaboradores. [...] Trata-se de dois artigos destinados aos órgãos judiciários, sendo que o primeiro pode ser formulado do seguinte modo: “Os juízes devem não condenar quem não seja pessoalmente responsável”; o segundo de modo oposto: “Os juízes devem condenar qualquer pessoa (no caso específico, o diretor do jornal), ainda que não seja pessoalmente responsável”. Tendo em vista que uma norma obriga e a outra proíbe o mesmo comportamento, trata-se de duas normas incompatíveis por contrariedade.

Segundo caso: o art. 18 [...] das Leis sobre a Segurança Pública, diz: “Aqueles que promoverem uma reunião em local público ou aberto ao público devem comunicar a respeito, com no mínimo três dias de antecedência, ao comandante da polícia”; o art. 17, alínea 2, da Constituição, diz: “Para as reuniões, mesmo que em lugar aberto ao público, não se requer aviso antecipado”. Nesse caso, o contraste é claro: o art. 18 [...] obriga a fazer o que o art. 17 da Constituição permite não fazer (permissão negativa). Trata-se de duas normas incompatíveis, pois são contraditórias.

Terceiro caso: o art. 502 do Código Penal italiano considera a greve um crime; o art. 40 da Constituição diz que: “O direito de greve é exercido no âmbito das leis que o regulam”. O que a primeira norma proíbe, a segunda norma considera lícito, ou seja permite fazer (embora dentro de certos limites). Essas duas normas também são incompatíveis por contrariedade. (BOBBIO, 2010, p. 244 – 245)

Vários tipos de antinomias

Aqui o autor explica o termo “antinomia” em sua acepção mais estrita (que fora utilizada até agora) e uma noção mais aberta do termo, que compreende não apenas incompatibilidades de ordem lógica, mas também no que tange o seu conteúdo material e até axiológico.

Trata-se nesta seção de questões de classificação de antinomias. O mais importante, no entanto, é entender o seu significado mais estrito, que foi o único apresentado até agora e que constitui o cerne do problema das antinomias.

Além disso, frise-se que as antinomias propriamente ditas produzem incertezas, e não injustiças (“antinomia” de valoração – só é antinomia em sentido lato) ou lacunas (“antinomias” teleológicas - idem). Outro tipo de “antinomia em sentido lato ou impróprio” é o da “antinomia” de princípio, que é uma incompatibilidade principiológica, anterior à norma positiva.

Ressalte-se, mais uma vez, que a antinomia “de verdade” é a antinomia em sentido estrito, ou “antinomia própria”, que é aquela que ocorre no terreno da estrutura lógica das normas.

Por fim, registre-se mais dois termos utilizados pelo autor:

  • Antinomias solúveis: Conflitos para os quais só é possível resolver utilizando-se 1 único critério.

  • Antinomias insolúveis: Antinomias para as quais A) não há critérios para resolvê-las ou B) há mais de 1 critério para resolvê-las.

Obs: Os dois próximos tópicos (“Critérios [...]” e “Insuficiência [...]) tratam mais especificamente das primeiras. Por seu turno, as insolúveis serão analisadas na seção subsequente, “conflito dos critérios”.

Critérios para a solução das antinomias

Exposto o conceito de antinomia, passamos à questão: como resolver uma antinomia? Quais são os critérios para a solução desse conflito entre normas jurídicas?

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As regras fundamentais para a solução das antinomias são 3:

  1. Critério cronológico = lex posterior derogat priori; (obs: este é o + fraco dos três critérios, vide a seção “conflitos dos critérios”, p. 262 e ss.)

  2. Critério hierárquico = lex superior derogat inferiori;

  3. Critério da especialidade = lex specialis derogat generali.

Embora a justificativa para as duas primeiras seja mais simples, é necessário fazer uma breve consideração sobre a justificativa para o critério da lex specialis: Observe-se que a ideia de tornar a lei mais minuciosa obedece a um princípio do direito romano, o suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu), já que uma lei mais geral é menos sensível à complexidade das relações sociais concretas, problema este que se procura resolver tornando a lei cada vez mais específica. Nesta esteira, “compreende-se [...] por que a lei especial deve prevalecer sobre a lei geral: ela representa um momento ineliminável do desenvolvimento de um ordenamento. Criar obstáculo à lei especial ante a lei geral significaria refrear esse desenvolvimento” (p. 254).

Por fim, há mais 2 observações sobre esses três critérios de resolução de antinomias:

  • Enquanto o “1” e o “2” ensejam uma eliminação total de uma das normas, o “3” redunda numa eliminação apenas parcial da lei problemática (neste caso a lei geral).

  • Esses três critérios não são suficientes para dar conta de todos os problemas de antinomia, como se verá na seção seguinte.

Insuficiência dos critérios

Há casos em que se verifica antinomia entre 2 normas que são, ao mesmo tempo,

  • 1) contemporâneas,

  • 2) do mesmo nível hierárquico e

  • 3) ambas gerais.

Em termos de jurisprudência, diante da insuficiência dos três principais critérios de resolução de antinomias, o método mais utilizado é:

  • 4) Critério da Lex Favorabilis = a partir deste preceito, “se de duas normas incompatíveis uma é IMPERATIVA ou PROIBITIVA e a outra é PERMISSIVA, PREVALECE A PERMISSIVA” (p. 255, grifo nosso). A lex favorabilis, que nada mais é que a norma permissiva (positiva ou negativa), está em oposição à lex odiosa, que são as normas imperativas, positivas ou negativas.

    O problema da Lex Favorabilis: A diferença entre a l. favorabilis e a l. odiosa pode ser meramente um problema de perspectiva subjetiva, senão vejamos: “é claro que se interpreto uma norma da maneira mais favorável ao devedor, [...] essa minha interpretação é odiosa em relação ao credor” (p. 256). Assim, temos um 4º critério de solução de antinomias que não também não dá conta de solucionar todas elas.

Ora, no caso de conflito entre duas normas, para o qual não é possível aplicar nenhum desses 4 critérios, o intérprete, seja ele um magistrado ou um jurista, tem diante de si três caminhos para seguir:

a. Eliminar uma das normas;

b. Eliminar ambas as normas;

c. Conservar ambas as normas;

Segundo Bobbio, o caminho ao qual o jurista e o magistrado mais recorrem, por ser uma solução menos drástica para o conflito, é o de conservar ambas as normas. “O jurista e o juiz tendem, o máximo possível, à conservação das normas dadas. É sem dúvida uma regra tradicional da interpretação jurídica que o sistema deve ser mantido com a mínima perturbação” (p. 261).

Conflito dos critérios

Como mencionado no final da seção “Vários tipos de antinomias”, o conflito entre distintos critérios diz respeito às antinomias insolúveis, que são aquelas para as quais OU não há critérios adequados para resolvê-las OU há mais de um critério (havendo neste último caso, portanto, um conflito entre esses critérios).

Eventualmente esse conflito ocorre sem que haja um problema de ordem prática, quando p. ex. todos os critérios convergem para a mesma solução. É o caso, p. ex., de uma emenda constitucional de 2010 entrar em conflito com uma lei ordinária de 1990 (nesta ilustração, tanto o critério hierárquico quanto o cronológico apontam para a prevalência da emenda de 2010).

Em outros casos, porém, cada critério aponta para uma solução diferente. Por exemplo, podemos estar diante de uma antinomia entre uma norma constitucional anterior e uma lei ordinária posterior.

Sendo três os critérios principais (Cronológico, Hierárquico e de Especialidade), podemos ter 3 conflitos entre eles:

  1. Critério hierárquico x cronológico: Ocorre quando uma lei superior-anterior é incompatível com uma inferior-posterior. Prevalece o critério hierárquico;

  2. Critério de especialidade x cronológico: Ocorre quando uma norma anterior e especial é incompatível com uma norma posterior e geral. Neste caso, prevalece o critério de especialidade.

  3. Hierárquico x de especialidade: Ocorre quando o conflito se dá entre uma norma superior-geral e uma inferior-especial. Aqui a prevalência depende do caso concreto e da exegese do intérprete, pois os 2 critérios em conflito aqui são os mais “fortes” (logo, o critério cronológico é o mais fraco dos três).

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Sobre o autor
Ricardo Gonçalves e Sousa

Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e advogado

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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