Quem já pesquisou o tema das interceptações telefônicas e telemáticas certamente se deparou com a informação de que a Comissão de Redação da Assembleia Nacional Constituinte extrapolou suas funções e alterou o sentido do inciso XII, do artigo 5º do texto que havia sido aprovado pelo Plenário do Colégio Constituinte. Segundo Ada Pellegrini Grinover, a dita comissão
acrescentou ao texto as palavras "comunicações", "no último caso" e "penal", limitando consideravelmente o alcance da norma constitucional legitimamente aprovada em plenário. (O Regime Brasileiro das Interceptações Telefônicas. Rio de Janeiro.1996. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/46935/46291)
Interessa-nos, aqui, a insersão do termo "comunicações", palavra aposta, após a aprovação da emenda de redação, antes de "telefônicas". Após algumas pesquisas em torno do tema, decidi publicar o trecho da ata da sessão em que ocorreu a mudança, a fim de enriquecer a pesquisa histórico sobre a temática. Antes, porém, serão expostas, ainda que sumariamente, duas correntes interpretativas que se formaram sobre o bem jurídico representado pela locução adjetiva "de dados".
No julgamento do conhecido “caso Collor”, em 1994, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Sepúlveda Pertence, revelou perplexidade ao tentar identificar o bem jurídico representado pelo fragmento textual “dados”, previsto no art. 5º da CF/88, inciso XII:
Basta-me aí a ilegalidade da apreensão, à vista do [inc.] XI, da Constituição. Não me comprometo, por ora, consequentemente, com o problema do que se chamou de ‘sigilo de dados’: continuo um tanto perplexo, no que toca a saber se, no art. 5º, inc. XII, da Constituição, o que se protegeu foi o sigilo de qualquer dado armazenado por alguém ou o sigilo da comunicação de dados. (STF. Ação penal 307, voto do Min. Sepúlveda Pertence)
Manifestando-se no mesmo julgado, Ilmar Galvão concluiu que as informações digitalizadas e armazenadas no computador estavam acobertadas pelo “sigilo de dados”. Para ele, o bem jurídico eleito na norma do inciso XII, era os “dados em si mesmos”:
Mas, mesmo que a apreensão material do micro-computador, no recinto da empresa, (...) houvesse sido feita em cumprimento a determinação judicial, ainda assim, não estaria nela compreendido o conteúdo ideológico de sua memória, razão pela qual a Polícia Federal não poderia ter-se apropriado dos dados contidos naquele microcomputador (...) acobertados que se achavam pelo sigilo, o qual, conquanto se possa ter por corolário da inviolabilidade do próprio recinto dos escritórios da empresa, acha-se especificamente contemplado no inc. XII, do mesmo artigo, ao lado da correspondência e das comunicações telegráficas e telefônicas. (STF. Ação Penal 307, voto do Min. Ilmar Galvão)
Em sentido contrário ao ponto de vista defendido por Ilmar Galvão está a posição do também integrante da Suprema Corte, Luís Roberto Barroso, tese, aliás, que prevalece atualmente no STF, expressa na ementa a seguir:
AGRAVO REGIMENTAL. habeas corpus SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. ACESSO A DADOS CADASTRAIS E DE USUÁRIOS. SIGILO DAS COMUNICAÇÕES. AUSÊNCIA DE TERATOLOGIA. 1. Não cabe habeas corpus em substituição ao recurso ordinário constitucional (HC 109.956, Rel. Min. Marco Aurélio). 2. As decisões proferidas pelas instâncias de origem estão alinhadas com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que “a proteção a que se refere o art. 5º, XII, da Constituição, é da comunicação ‘de dados’ e não dos ‘dados em si mesmos’” (RE 418.416, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário) 3. Ausência de teratologia, ilegalidade flagrante ou abuso de poder que autorize a concessão da ordem de ofício para invalidar a prova. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE AgR 124.322/RS, Relator Min. Luís Roberto Barroso. Julgado em 09/12/2016).
De se ver, portanto, que mesmo após quase trinta anos da promulgação da Lei Maior, o inciso XII, especificamente o “sigilo de dados”, continua a ser interpretado de forma dúbia, embasando teses de que há uma garantia com força constitucional veiculando a inviolabilidade absoluta dos dados pessoais, compreendidos nestes aqueles que se referem a informações sobre a vida privada (os ditos dados telefônicos externos à comunicação ou dados de tráfego, p. exemplo). O fundamento primordial seria aquele consubstanciado na máxima segundo a qual ressalvas à fruição de direitos fundamentais devem ser interpretadas restritivamente, de forma que, a contida no inciso XII em comento, apenas excepcionou a inviolabilidade das comunicações telefônicas, sendo inconstitucional a obtenção de “dados”, os quais não podem ser violados, pois albergados pelo “sigilo de dados”.
Entre as teorias que refutam a existência de direitos absolutos está a dos "limites imanentes". De forma sintética, ela afirma que não é porque uma norma instituidora de direitos não prevê de forma expressa sua restrição que esta não existe. Se assim não fosse, a vida em sociedade se tornaria impossível.
Mas o propósito deste artigo não é se aprofundar na teoria geral dos direitos fundamentais, mas entender o que ocorreu na Constituinte para que o inciso XII, do artigo 5º resultasse tão confuso. Retornemos, pois, ao assunto.
Na oitava sessão da Comissão de Redação, que se deu em 20/09/1988, foi apresentada uma efêmera emenda de redação ao texto que havia sido aprovado pelo Plenário da Constituinte. Tal intervenção, votada de maneira mais efêmera ainda, acabou por tornar impreciso o objeto da norma.
Abaixo, segue o trecho transcrito da ata completa da sessão daquele dia, disponível no endereço http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/constituinte/redacao.pdf (visita em 04/02/2018) e que revela a origem dos problemas com o inciso XII e o “sigilo de dados” que, antes disso, era “sigilo da comunicação de dados”. Para encontrar a página exata do texto, basta baixar o arquivo e fazer uma busca com o localizador.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Vou dar a palavra ao nobre Constituinte Ricardo Fiúza. Essa matéria já foi votada.
O SR. CONSTITUINTE JOSÉ LINS: – Sr. Presidente, a matéria já foi votada, mas é preciso ficar claro que o que pertence à União são os recursos minerais ainda não explorados e não a mina, não a jazida em lavra.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – É claro. O Sr. Constituinte Ricardo Fiúza está com a palavra.
O SR. CONSTITUINTE RICARDO FIÚZA: – Muito obrigado, Sr. Presidente. O autor da proposta é o Constituinte Hilário Braun, o art. é o [5º]; o inciso é o XII, e o destaque é 196, que está na página 11. Ele pede que se dê ao inciso XII do art. [5º] a seguinte redação:
"É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial," etc.
Pretende S. Ex.ª fixar a inviolabilidade do sigilo de dados e não, precipuamente, o sigilo das comunicações de dados, tal qual estava redigido. Determina a inviolabilidade das comunicações de dados. O texto está redigido assim:
"É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial..." Portanto, pretende o Constituinte Hilário Braun acrescentar as expressões "de dados e das comunicações telefônicas."
Entende S. Ex.ª e eu também que, desta forma, prevê-se o sigilo dos dados.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Estão todos de acordo? (Pausa.) Aprovada.
Com isso, principiaram-se as dúvidas sobre uma previsão tão importante para os dias atuais como é a utilização de dados telemáticos e telefônicos, de conteúdos comunicativos ou não, para a investigação preliminar e a instrução processual.