Lei 13.019/2014 - Marco regulatório do terceiro setor, requisitos gerais e Lei de Responsabilidade Fiscal

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Lei 13019/2014 – ‘Marco Regulatório do Terceiro Setor’

A lei ordinária nº 13.019 de 31/07/2014, conhecida como Marco Regulatório do Terceiro Setor, estabelece regime jurídico de parcerias voluntárias que visa disciplinar a relação da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, das autarquias, das fundações, das empresas públicas e das sociedades de economia mista prestadoras de serviço público, com as organizações da sociedade civil.

Referida norma tem como pressuposto básico, entre outras características, dar maior transparência e controle em dita relação, notabilizada por destinar recursos públicos para execução de trabalhos de alta relevância pública e social.

Impende ainda observar que a lei nº 13.204/2015 promoveu inúmeras alterações na norma de regência (13.019/2014). Dentre as mudanças ocorridas, o legislador previu a possibilidade da administração pública dispensar o chamamento público em casos de atividades voltadas ou vinculadas a serviços de educação, saúde e assistência social, desde que executadas por entidades que qualificarem-se como tal (art. 30, VI da lei 13.019/2014). Isto é, apontadas atividades são endossadas por revelar a vontade do constituinte em promover o fomento na realização de ações com formidável apelo social, motivo este que ampara a dispensa do chamamento público conforme expresso na lei. Frise-se, todavia, competirá à administração, dentro, portanto, dos critérios que deve adotar toda e qualquer administração pública, justificar as razões pelas quais promoveu a dispensa, bem como publicar o ato administrativo que amparar mencionada decisão, oportunizando terceiros à eventualmente apresentarem impugnação. Em outro giro verbal, os valores que devem prestigiar as ações sociais no campo da saúde, educação e assistência social, continuam sendo, até este ponto de análise, preservados.

Ainda considerando a prescrição legal, muito embora entidades com aludido perfil possam ser dispensadas do chamamento público, não significa dizer que outros requisitos deixarão de ser observados pelas Organizações da Sociedade Civil para que possam regularmente celebrar parcerias[12] com a administração pública de acordo com a lei 13.019/2014. Além do mais, todos os propósitos insertos na nova lei deverão ser cumpridos pelas instituições em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco. As ferramentas de controle, tais como acompanhamento, monitoramento, fiscalização, avaliação de políticas públicas e prestação de contas, de acordo com o que está previsto em apontada norma, revelam o acerto e a preocupação que a Administração Pública deve ter na correta execução de políticas sociais.

Entretanto, um dos requisitos previstos para celebração do termo de colaboração ou de fomento trata da exigência da apresentação de regularidade fiscal, previdenciária, tributária, de contribuições e de dívida ativa, de acordo com a legislação aplicável de cada entre federado (art. 34, II da lei 13.019/2014). Porém, muito embora a norma seja adequada ao rigor de controle e transparência, como visto acima, causa espécie apontada exigência.

Pois bem, a despeito de ser norma de aplicação nacional (norma geral), conforme se pode inferir do art. 22, XXVII da Constituição Federal, há determinação – competência concorrente - para que cada Ente Federado possa disciplinar mencionado requisito de acordo com suas próprias necessidades, não havendo portanto, um engessamento dos demais entes federados quanto ao tema, desde que com a referida legislação não colidam, de forma a respeitar sua condição de regramento geral.

E é justamente neste diapasão que será melhor analisada aludida lei, no cotejo  com a lei de responsabilidade fiscal – LRF (LC nº 101/2000), naquilo que couber, uma vez que foi instituída com o propósito de normatizar finanças públicas voltadas à gestão fiscal, sobretudo porque há casos em que as Certidões Negativas Fiscais não têm caráter obrigatório, notadamente em situações de ocorrência de transferências voluntárias, para determinadas áreas de recíproco interesse público e social.

Neste contexto, pela lei nº 13.019/2014, as transferências voluntárias abrangem tanto o termo de colaboração quanto de fomento. Verbis:

Art. 16. O termo de colaboração deve ser adotado pela administração pública em caso de transferências voluntárias de recursos para consecução de planos de trabalho propostos pela administração pública, em regime de mútua cooperação com organizações da sociedade civil, selecionadas por meio de chamamento público, ressalvadas as exceções previstas nesta Lei.

(....)

Art. 17. O termo de fomento deve ser adotado pela administração pública em caso de transferências voluntárias de recursos para consecução de planos de trabalho propostos pelas organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação com a administração pública, selecionadas por meio de chamamento público, ressalvadas as exceções previstas nesta Lei. (Grifou-se)

Está claro, portanto, que os instrumentos de contratualização previstos acima serão realizados por meio de transferências voluntárias.

Por outro lado, importa notar que a lei de responsabilidade fiscal, ao regulamentar o art. 163 da CF/88, institui, por meio de competência exclusiva, normas gerais de finanças públicas vinculando não só à União, Estados, Municípios e Distrito Federal, como também sociedade cuja maioria do capital social com direito a voto pertença, direta ou indiretamente, a ente da Federação, empresa estatal dependente: empresa controlada que receba do ente controlador recursos financeiros para pagamento de despesas com pessoal ou de custeio em geral ou de capital, conforme dicção do artigo 2º da LRF.

Logo, a Lei de Responsabilidade Fiscal deve ser intransigentemente observada a todos os sujeitos partícipes de seu alcance[13], não só em face de sua competência, mas também por ser hierarquicamente superior às normas ordinárias e leis locais que eventualmente conflitarem com sua prescrição.

Diante desse quadro, o artigo 25 da LRF, ao tratar de transferência voluntária, estabelece inúmeras exigências para que ocorra a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde.

Dentre as quais, destaca-se a seguinte:

Art. 25. (......)

§ 1o São exigências para a realização de transferência voluntária, além das estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias:

(....)

IV - comprovação, por parte do beneficiário, de:

a)que se acha em dia quanto ao pagamento de tributos, empréstimos e financiamentos devidos ao ente transferidor, bem como quanto à prestação de contas de recursos anteriormente dele recebidos;

....

Até aqui nenhuma novidade.

Porém, observe-se que há regra de exceção, na medida em que o §3º do citado artigo 25 dispõe sobre a inexistência de suspensão em transferências voluntárias aos beneficiários, caso sejam destinadas às ações de educação, saúde e assistência social. Confira-se:

Art. 25. (.....)

...

§ 3o Para fins da aplicação das sanções de suspensão de transferências voluntárias constantes desta Lei Complementar, excetuam-se aquelas relativas a ações de educação, saúde e assistência social. (Grifou-se)

Como se vê, o legislador complementar, cônscio da preservação dos valores constitucionais que deve prestigiar e incentivar, sobretudo nas três áreas de absoluta importância social, jamais pode impedir a transferência de recursos destinados às apontadas finalidades sociais, porque determinada organização social não detém certidão ‘tributária’ negativa, em estrita observância ao princípio da razoabilidade, nos limites da legalidade do agente público e com o exercício da discricionariedade e responsabilidade que lhe são intrínsecas no exercício de tal mister.

Em reforço, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em obra coordenada por Ives Gandra Martins (2001, p.174), ao comentar dita a exceção, esclarece que:

...a sanção não poderá ser aplicada quando se tratar de transferências voluntárias para as áreas de educação, saúde e assistência social. É o que consta do art. 25, §3º, com uma justificativa fácil de entender: são áreas em que a Constituição prevê como dever a atuação do Estado, exatamente por abrangerem atividades que atendem a necessidades essenciais da coletividade, além de constituírem matérias de competência comum dos três níveis de governo (art. 23, II e V, da CF).

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A Lei nº 13.019/2014, por sua vez, determina que as organizações da sociedade civil, por ocasião da celebração do termo de colaboração ou de fomento, apresentem certidões de regularidade fiscal.

Confira-se:

Art. 34. Para celebração das parcerias previstas nesta Lei, as organizações da sociedade civil deverão apresentar:

(....)

II - certidões de regularidade fiscal, previdenciária, tributária, de contribuições e de dívida ativa, de acordo com a legislação aplicável de cada ente federado;

(....);

No entanto, como visto acima, referida disposição conflita com a exceção contida no §3º do art. 25 da LRF, relativamente às atividades voltadas à saúde, assistência social e educação.

Não tem sentido obstaculizar celebração de parcerias para realização de transferências voluntárias, dada a hipótese de ausência de regularidade fiscal de determinada entidade pública ou privada, como previsto na lei que institui o Marco Regulatório do Terceiro Setor.

Via de consequência, inadmissível promover a respectiva desclassificação da organização (art. 28), se tais transferências destinarem-se à saúde, assistência social e educação, dada a dicção contida no §3º do art. 25 da LRF.

Esta é, assim parece, a forma mais adequada de se interpretar a nova norma que disciplina o Marco Regulatório do Terceiro Setor; ou seja, não isolá-la diante do arcabouço jurídico nacional, sob pena de errar em sua descrição e aplicação, mas empregar regra de incidência conforme valores constitucionais que protegem instituições que secundam o ‘Estado’ em apontadas áreas.

Dito de outra forma, entidades que promovem a educação, saúde e assistência social em caráter beneficente, pelo fato de auxiliarem o Poder Público no exercício de tais funções, mormente o reconhecimento de que o mesmo não consegue através de suas políticas atingi-las satisfatoriamente, também não podem ser penalizadas por não possuírem certidões de regularidade fiscal em dado momento de suas atividades estatutárias.

Não fosse assim, inexistiria qualquer razão em determinar que o legislador maior conferisse a disciplina da matéria ao legislador complementar, e este, atento às prioridades constitucionais, promovesse exclusão de regra que tem como escopo a preservação de direitos fundamentais.

No que toca a orientação jurisprudencial, a exceção prevista na LRF vem preponderando no sentido de liberar repasses públicos em caso símil, mesmo que a organização não seja portadora de regularidade fiscal.

Veja-se:

ADMINISTRATIVO. CONVÊNIO. LIBERAÇÃO DE VERBAS PÚBLICAS PARA ATENDIMENTO DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RISCO PESSOAL E SOCIAL. APRESENTAÇÃO DE CERTIDÃO NEGATIVA PELO TRIBUNAL DE CONTAS. REQUISITO DISPENSÁVEL. INTERPRETAÇÃO DO ART. 25, §§ 1º E 3º, DA LC 101/2000.

(.....)

4. Pela leitura do § 1º do art. 25 da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) conclui-se que é lícita a exigência de certidões que comprovem a regularidade do ente beneficiado com o repasse da transferência voluntária, entre as quais a pontualidade no pagamento de tributos, empréstimos e financiamentos, bem como em relação à prestação de contas de recursos derivados de convênios anteriores. Ocorre que a própria norma em seu § 3º estabelece que não serão aplicadas as sanções de suspensão das transferências voluntárias nas hipóteses em que os recursos transferidos destinam-se a aplicação nas áreas de saúde, educação e assistência social, hipótese configurada nos autos, em que o convênio firmado com o Estado do Paraná tem por objeto a execução de atividades inerentes ao atendimento das crianças dos adolescentes em situação de risco pessoal e social.

5. Apesar do texto normativo fazer referência a sanção de suspensão de transferência voluntária, as exigências previstas no artigo 25, § 1º, da LRF não se aplicam às transferências voluntárias destinadas a ações nas áreas de educação, saúde e assistência social. Dessa forma, a cláusula do referido convênio que condiciona a liberação financeira à apresentação de Certidão Negativa do Tribunal de Contas deve ser considerada abusiva e ilegal. Precedentes.

6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido. (REsp 1.407.866/PR, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/10/2013, DJe 11/10/2013)  (Grifou-se)

E nem se alegue que referida regra de exceção não se aplica às entidades privadas, pois conforme orientação do E.T.J. PR (Reexame Necessário nº 676.189-3 – Relator Des. Abraham Lincoln Calixto. Julgado 10/02/2011. Publicação 22/02/2011) o serviço prestado de interesse público pode ser realizado por entidade privada em caráter complementar, motivo este forte o bastante para contemplar o mesmo tratamento, isto é, de inexigência de CND na realização de serviços voltados à saúde, educação e assistência social ainda que praticado por particulares.

Dessarte, certamente a nova lei será alvo de muitas objeções, porque sua redação leva a interpretações equivocadas. Sua literal interpretação leva a isso.

Por outro lado, os Entes federados poderão legislar dentro de suas respectivas competências, contrariando norma geral, ante a regra de exceção prevista na LRF, pois muito embora seja nacional, há espaço para que o legislador local, à luz do contido no art. 24,§1º da CF/88, assim preveja.

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Sobre os autores
José Julberto Meira Junior

Advogado; Mestre em Direito Empresarial pelo Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário Curitiba (2018) e especialista em Direito Tributário (1999) pelo IBEJ/FESP; Professor Universitário nos cursos de especialização da UNICENP, FAE BUSINESS, FESP, ABDCONST (Curitiba), FAG (Cascavel e Toledo), CTESOP (Assis Chateaubriand); UniOPET EAD (Curitiba); Instituto Navigare / Faculdade Stª Fé (São Luis – Maranhão), UFPR/Ciências Contábeis (Curitiba), PUC (Curitiba); com estágio docente realizado na Universidade de Santiago de Compostela (USC/Espanha); Membro do Comitê Tributário da OAB/PR; membro honorário do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT); membro do Instituto de Direito Tributário do Paraná (IDT); membro do Comitê de Estudos Tributários, Fiscais e Contábeis do CRC/PR e do Conselho Temático Tributário da Federação das Indústrias do Paraná (FIEP). Lattes: http://lattes.cnpq.br/2581196308704093 E-mail: [email protected]

Roque Sérgio D´Andrea Ribeiro da Silva

Advogado. Graduado em Direito pela PUC/PR, Mestrando em Direito pela UNICURITIBA, com área de concentração em Direito Tributário, aplicado ao Terceiro Setor, Especialista em Direito Civil, com extensão em Direito Tributário e Direito Comercial no Mercosul, Membro da Comissão de Direito Tributário e Presidente da Comissão do Terceiro Setor da OAB/PR, Associado ao Instituto de Direito Tributário do Paraná – IDTP, autor do Livro “Introdução ao Direito Constitucional Tributário” pela Editora IBPEX e Coordenador do “ Código Tributário Nacional Comentado” promovido pela Comissão de Direito Tributário da OAB/PR, Professor e Palestrante. Idioma: inglês.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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