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Música e segurança pública: A efetividade dos direitos humanos na atuação artística dos órgãos de polícia

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31/05/2018 às 13:30
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Faz-se uma verificação acerca dos usos e concepções da música ao longo do tempo, colhendo aspectos relevantes para a construção de pontes que a liguem à segurança pública.

Música é um exercício oculto de metafísica

no qual a mente não sabe que

está filosofando.

Arthur Schopenhauer (2005, 347)

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar o uso da música na Segurança Pública. Como é cediço, inúmeros são os problemas de criminalidade e violência na atualidade, decorrência de múltiplos fatores que engendram a sociedade contemporânea, caracterizada pela complexidade. Nas periferias paulistas, especificamente no “mundo funk proibidão”, a busca por aprofundamento das liberdades não tem se afinado com a observância do dever fundamental de obediência às leis. Neste quadro recuperou-se a linha do tempo dos usos e concepções da música, onde se observa o seu potencial transformador em aspectos educacionais, estéticos, éticos, formativos e outros, bem como sua atual utilização no âmbito dos órgãos policiais paulistas, como o “corpo musical da Polícia Militar”, e as iniciativas musicais na Polícia Civil de São Paulo. Assim, verificou-se o seu uso na Divisão de Prevenção e Educação (DIPE), do Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (DENARC), e também a atuação do coral da Polícia Civil. De notar a análise da canção “Laços Eternos”, de autoria do Delegado de Polícia, Cloves Rodrigues Costa. Verdadeira análise sociológica de algumas permanências na sociedade atual. No que se refere à repressão criminal qualificada destaca-se a educação sentimental em Richard Rorty, como fundamento de efetividade dos Direitos Humanos, o que se vislumbra concretizável a partir do trabalho pedagógico-musical do Centro de Direitos Humanos e Segurança Pública “Celso Vilhena Vieira”. Igualmente, perscrutou-se a Arte como constituinte hermenêutica da atividade jurídica do Delegado de Polícia. Focalizou-se o impacto destas iniciativas na construção de cultura e mentalidade voltados à proteção e promoção dos direitos fundamentais. A pesquisa visa demonstrar a importância da música para a edificação de uma subjetividade sensível à pertinência da fusão entre as possíveis bases teórico-metodológicas das atividades da Segurança Pública, quais sejam, as investigações artística, criminal e criminológica, o que se coaduna com as bases ínsitas ao Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave:  Direitos Humanos. Educação Sentimental. Música. Segurança Pública. Progresso da Consciência.

SUMÁRIO:1. INTRODUÇÃO. 2 BREVE HISTÓRIA DOS USOS DA MÚSICA . 2.1. Antiguidade. 2.2 . Idade média . 2.3 Idade moderna . 2.4 Contemporaneidade. 2.4.1 A canção de protesto no Brasil. 3 INTERDISCIPLINARIDADE ENTRE ARTE, CIÊNCIA E POLÍCIA. 3.1 Música e psicologia . 3.2 Música e educação  . 3.3 Arte, direito, música e inquérito policial . 3.4 Música e investigação criminal. 4 LAÇOS ETERNOS: UMA VISÃO POLICIAL ACERCA DE DIREITOS HUMANOS E SEGURANÇA PÚBLICA. 4.1 Da música “Laços Eternos”. 5 MÚSICA NAS INSTITUIÇÕES POLICIAIS. 5.1 O corpo musical da Polícia Militar do Estado de São Paulo. 5.2 O uso da música na Divisão de Prevenção e Educação (DIPE) do Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (DENARC) . 5.3 O coral da Polícia Civil. 5.4 O uso da música na formatura de policiais civis e o Centro de Direitos Humanos e Segurança Pública “Celso Vilhena Vieira”. 6    CONCLUSÃO. 7 REFERÊNCIAS    


1 INTRODUÇÃO

Este trabalho se caracteriza pela realização de uma pesquisa qualitativa sobre a importância da música para a Segurança Pública. Pois, como se sabe, ela é utilizada das mais variadas formas para a resolução de diferentes problemas.

Faz-se uma verificação acerca dos usos e concepções da música ao longo do tempo, colhendo aspectos relevantes para a construção de pontes que a liguem à Segurança Pública.

Neste caso, especificamente, o objetivo é haurir o que possam ser os insumos para o eficaz controle social da criminalidade, em harmonia com os direitos individuais.

Recupera-se alguns conceitos de música, para que se tenha uma visão global da arte e se consiga identificar os pontos de contato com os conhecimentos referentes às atividades de polícia, especificamente, direitos humanos. Como exemplo cite-se a relação do chamado funk[1] “proibidão” com a observância do dever fundamental de obediência às leis.

Com relação à repressão criminal qualificada cumpre salientar o papel da educação sentimental e da investigação baseada nas artes. Estas funcionam como chaves para que a música adentre os seus campos de ação e pensamento.

De se notar a análise sobre a utilização da música por órgãos policiais de São Paulo. No que se refere à Guarda Civil Metropolitana e à Polícia Militar seus seguimentos musicais contribuem para uma maior aproximação com as comunidades. A Polícia Civil, por meio da Divisão de Prevenção e Educação (DIPE), e de seu coral transmite, musicalmente, valores adequados à convivência.

Deste modo, discute-se em que medida a fusão entre música e Segurança Pública concorre para uma oferta de serviços consentânea com os tempos atuais, onde a incerteza é a certeza. Na sociedade de consumo a tecnologia cria demandas, impondo constantemente desafios à inovação. Mostra-se fundamental o aguçamento da sensibilidade, para que se concretizem as bases imanentes ao Estado Democrático de Direito.


2 BREVE HISTÓRIA DOS USOS DA MÚSICA

Encontra-se na mitologia grega, ensina Murray (2001) duas explicações sobre a origem da música. Numa delas, a música nasceu através de Hermes, deus da magia, que, ao encontrar “uma carapaça de tartaruga na praia, estendeu sobre ela cordas de tripa de carneiro, inventando a lira, que deu de presente a Apolo”. Oportunidade em que se constatou que “a carapaça da tartaruga, utilizada como corpo ressonante, podia produzir som” (apud FONTERRADA, 2005, p. 20-21). Uma versão diferente é a de Píndaro[2]. Ele diz que o aulo[3] foi criado por Palas Athena, que, ao ver o profundo sofrimento das irmãs da Medusa, que foi assassinada por Perseu, fixou um “nomos específico em sua honra; estava criada a música” (apud FONTERRADA, 2005, p. 21). No primeiro mito se observa a música em seu aspecto objetivo, ao se referir ao som. No segundo, a música é considerada como sendo “resultado da emoção subjetiva” (apud FONTERRADA, 2005, p. 20-21).

É dizer que os aspectos racional e sentimental estão presentes no surgimento da música. Esta distinção tem relevância a medida em que é fundante das diversas teorias sobre a música (apud FONTERRADA, 2005, p. 21).

Ainda sobre o surgimento da música os historiadores Grout e Palisca (2005, p. 17) afirmam que:

A mitologia grega atribuía à música origem divina e designava como seus inventores e primeiros intérpretes deuses e semideuses, como Apolo, Anfião e Orfeu. Neste obscuro mundo pré-histórico a música tinha poderes mágicos: as pessoas pensavam que era capaz de curar doenças, purificar o corpo e o espírito e operar milagres no reino da Natureza. Também no Antigo Testamento se atribuíam à música idênticos poderes: basta lembrar apenas o episódio em que David cura a loucura de Saul tocando harpa (1 Samuel, 16, 14-23) ou o soar das trombetas e a vozearia que derrubaram as muralhas de Jericó (Josué, 6, 12-20). Na época homérica os bardos cantavam poemas heroicos durante os banquetes (Odisseia 8, 62-82) (grifo nosso).

O que, também, evidencia a origem bíblica da música e diferentes usos em tempos muito remotos.

2.1 Antiguidade

Existem registros no sentido de que as primeiras atividades ligadas à música se deram por volta do ano 3.000 a.C. (MENUHIM; DAVIS, 1990). Ocorreram no mundo oriental, mais precisamente, na China. Num período bastante posterior, aproximadamente no século V. a.C., é que se iniciam práticas musicais na Grécia, o conhecido berço da civilização ocidental.

A primeira grande concepção sobre a música é legado dos pitagóricos. Refere-se especificamente sobre o entendimento cosmológico destes pensadores, para quem o número é o principal elemento de compreensão do mundo. É dizer que esta visão sobre a música tem no seu encontro com a matemática a harmonia do universo (TOMÁS, 2002).

Em Platão e Aristóteles a música tem papel decisivo na formação do caráter, sendo fundamental para a educação. No passo 402a do diálogo platônico “A República” se tem que:

Não é então por este motivo, ó Glaucon, que a educação pela música é capital, porque o ritmo e a harmonia penetram mais fundo na alma e afectam-na mais fortemente, trazendo consigo a perfeição, e tornando aquela perfeita, se se tiver sido educado? E, quando não, o contrário? E porque aquele que foi educado nela, como devia, sentiria mais agudamente as omissões e imperfeições no trabalho ou na conformação natural, e, suportando-as mal, e com razão, honraria as coisas belas, e, acolhendo-as jubilosamente na sua alma, com elas se alimentaria e tornar-se-ia um homem perfeito; ao passo que as coisas feias, com razão as censuraria e odiaria desde a infância, antes de ser capaz de raciocinar, e quando chegasse à idade da razão, haveria de saudá-la e reconhece-la pela sua afinidade com ela, sobretudo por ter sido assim educado. (2001, p. 133, grifo nosso).

Observa-se a música como caminho para a apropriação de virtudes morais. Neste sentido, também Aristóteles, para quem “a música tem o poder de produzir um certo efeito moral na alma” (ARISTÓTELES, 1997, p. 277). Este filósofo concebe a música, ao lado da gramática, da ginástica e do desenho, como ramo autônomo da educação (1997, p. 269). Aduz que ela é “útil como uma diversão no tempo de lazer” (1997, p. 270, grifo nosso). Qualifica-a como sendo “liberal e dignificante” (ARISTÓTELES, 1997, p. 271).

Vale transcrever uma passagem deste autor sobre diversos usos da música, in verbis:

Nossa primeira indagação é se a música não deve ser incluída na educação, ou se deve, e em qual dos três tópicos que já discutimos sua eficácia é maior: na educação, na diversão ou no entretenimento. É necessário inclui-la nos três, e ela parece participar da natureza de todos eles. Ora: todos nós afirmamos que a música é uma das coisas mais agradáveis, seja ela apenas instrumental, seja acompanhada de canto [...] é com boas razões que se inclui a música nas festas e entretenimentos, por seu poder de alegrar os homens, de tal forma que também por este motivo se deve supor que a música tem de ser incluída na educação dos jovens. (ARISTÓTELES, 1997, p. 275, grifo nosso).

Estas concepções impactaram politicamente a Grécia Clássica, uma vez que nas cidades-estados a música foi objeto de atenção dos governantes e cidadãos, e a responsabilidade por sua organização e pela forma como seria apresentada às pessoas estava em poder dos legisladores (FONTERRADA, 2005, p. 18). Sobre isso, o ensinamento da Professora Marisa Fonterrada (2005, p. 18) é no sentido de que:

Em Esparta, em seu sistema de educação para os jovens e para o povo, Licurgo exigia que a música fizesse parte da educação da infância e da juventude, e que fosse supervisionada pelo Estado. Como justificativa para esse procedimento, evocava a experiência em Creta, em que a prática da música, recomendada por Minos, provocava uma notável devoção aos deuses e tornara os cretenses um povo obediente às leis. Nenhum espartano, de qualquer idade, sexo ou classe social era excluído desse exercício, num sistema em que cada indivíduo tinha que cumprir sua parte, pelo benefício moral, social e político do Estado (grifo nosso).

Onde se percebe a música como fundamento de harmonia social. Contexto em que cumpre recuperar o importante papel desempenhado pela música na vida militar da antiga Roma. Sabe-se por meio de relatos verbais, baixos-relevos, mosaicos, frescos e esculturas que a música também era muito importante no teatro, na religião e nos rituais de Roma, conquanto inexistam vestígios autênticos desta música (GROUT; PALISCA, 2005, p. 16).

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Finaliza-se a análise colacionando uma importante concepção da historiografia musical da antiguidade, onde se tem que:

Unicamente a arte mencionada antes, a música, se estende por toda matéria, por assim dizer, e atravessa todo tempo: ordena a alma com as belezas da harmonia e conforma o corpo com os ritmos convenientes; e é adequada para as crianças pelos bens que se derivam da melodia, para os que avançam em idade por transmitir as belezas da dicção métrica e, em uma palavra, do discurso inteiro, e para os mais velhos porque explica a natureza dos números e a complexidade das proporções, porque revela as harmonias que mediante estas proporções existem em todos os corpos e, o que na verdade é mais importante e mais definitivo, porque tem a capacidade de fornecer as razões do que é mais difícil de compreender a todos os homens, a alma, tanto da alma individual como da alma do universo. (Aristides Quintiliano, século II-III d. C., De Musica, apud Tomás, 2002, p. 14, grifo nosso).

2.2 Idade Média

Desde tempos muito distantes a música é utilizada em atividades religiosas (GROUT; PALISCA, 2005). Contudo, é na idade média que o cristianismo consolida o seu uso para finalidades sacras. Uma fundamentação teológico-filosófica aproxima a música da liturgia, estabelecendo uma nova concepção de vida (FONTERRADA, 2005, p. 22).

Com base na antiguidade grega teóricos medievais definem a música como ramo do conhecimento científico (FONTERRADA, 2005, p. 23-24) A título de exemplo, cite-se Santo Agostinho e Boécio. Para aquele a música não serve para fins educacionais, mas sim como “meio de prevenção contra as tentações oferecidas pelo mundo herético” (FONTERRADA, 2005, p. 24). Trata-se da ligação com o divino.

No que se refere especificamente à concepção da música como ciência cumpre destacar a influência pitagórica sobre o pensamento musical da idade média. Observa-se o predomínio do aspecto lógico da música, razão pela qual ela é incluída no quadrivium, que é “a mais alta divisão das sete artes liberais, compartilhando seu espaço com a aritmética, a astronomia e a geometria” (FONTERRADA, 2005, p. 23).

A substância que confere à música este privilégio colhe-se em Boécio, para quem:

Existem vários tipos de música: musica mundana, musica humana, musica constituta in instrumentus, a primeira se referindo ao movimento dos planetas, à organização dos elementos e à música das esferas; a segunda, que une ao corpo o espírito eterno, incorpóreo, de modo semelhente à formação das consonâncias de sons agudos e graves, a partir de determinada ordem numérica. (FONTERRADA, 2005, p. 25).

Somando-se a esta classificação “a musica vocalis, conclui-se que o instrumentarium mencionado não se refere a instrumentos musicais, mas às ferramentas que permitem a observação científica.” (FONTERRADA, 2005, p. 25). Isso num período onde a razão é tida como superior às demais capacidades humanas, especialmente a audição. É dizer que Boécio não está interessado nos aspectos emocionais e de escuta da música, mas sim como fenômeno físico, o que possibilita sua compreensão em bases numéricas (FONTERRADA, 2005, p. 25).

Com relação à prática musical na idade média é de se observar a atuação do papa Gregório Magno, século VI d. C., fixando o que até os dias atuais se conhece e se pratica como sendo o canto gregoriano, ou cantochão, fundamental para os ofícios e missas (GROUT; PALISCA, 2005). Esta música pode ser entendida como instrumento de materialização do teocentrismo, traço característico do período histórico sob análise.

Dando ênfase aos aspectos práticos da música Guido D’Arezzo promove por volta do século XI uma grande mudança. O inventor da notação musical tradicional funda uma teoria musical propriamente medieval, fornecendo as bases para se “conhecer a natureza da música e sua classificação, num espaço situado entre as artes e as ciências.” (FONTERRADA, 2005, p. 26).

O que se analisou até aqui evidencia a importância da música na construção de um ethos, que concorre para a construção de consensos.

2.3 Idade moderna

O limiar do renascimento tem no humanismo uma característica marcante. Por volta do século XVI o que se observa é o rompimento com o teocentrismo.

A edificação de uma nova concepção de vida, no que se refere propriamente à música, encontra sua maior expressão na obra do compositor italiano Claudio Monteverdi (1567-1643). Pois, do ponto de vista estético, sua universalidade é de “talhe shakespeariano.” (CHASIN, 2004, p. 124). Vale dizer, consubstancia-se na tradução dos afetos, por meio da imitação. O principal objetivo é “um fazer musical movente.” (CHASIN, 2004, p. 125, em destaque no original). É dizer, que,

Para comover é preciso conduzir o ouvinte às contrapostas instâncias da vida e do espírito, na exata medida em que os opostos sintetizam e tipificam os comportamentos e espaços anímicos basilares, tornando, por essa síntese essencializadora, mais imediato e claro o sentido do mundo e dos sentimentos, logo mais pleno o mover d’alma. (grifo nosso).

Algo que se relaciona às possibilidades humanas. Trata-se de uma arte cuja poeticidade é o desnudar do vir-a-ser da pessoa humana. Fá-lo num procedimento mimético imanente à voz. Esta entendida como portadora das paixões (CHASIN, 2005, p. 126).

A música deste período histórico possui finalidade catártica, na medida em “que pode indicar a quem lhe ouve caminhos humanos mais autênticos” (CHASIN, 2004, p. 130). Arianna e Orfeo, óperas de Monteverdi, constituem manifestações dos dramas individuais. Sua finalidade mais autêntica é conduzir às pessoas pelos labirintos anímicos da vida (CHASIN, 2004, p. 129). Peculiaridade que enaltece o antropocentrismo, esteio maior da dignidade humana.

Esta visão musical sobre o humano teve desdobramentos. No século XVIII os enciclopedistas, embalados pela música da primeira escola de Viena, davam corpo ao iluminismo. A obra de compositores como Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e Ludwig Van Beethoven (1770-1827) constitui o ápice da manipulação dos signos musicais existentes. Até hoje a expressão “música clássica” é utilizada para se referir à música culta, erudita, intelectualizada ou de invenção como um todo. Em sentido estrito música clássica designa a produção musical do classicismo, período compreendido entre “mais ou menos 50 anos a partir de 1770.” (SADIE, 1994, p. 201), tempo histórico em que floresceram Mozart e Beethoven.

Um exemplo que demonstra o potencial da música clássica tem-se na Appassionata.[4] Pois,

O drama sonoro é o drama, tipificado, da vida concreta. Analisar e interpretar musicalmente as partituras de Beethoven é analisar e interpretar sua gênese humano-social. É nesta conexão que se viabiliza a extração da lógica de um movimento sonoro. A FS[5] é dramática, assim parece, porque seu ser-musical-precisamente-assim e o sentido objetivo de uma quadra histórica se relacionam na raiz. Trata-se, enfim, do fato, de que a determinação da lógica musical só contrai sentido humano – e artístico, quando articulada ao solo sócio-genético. A compreensão da vida, costuma-se dizer, pode ser resgatada por sua arte. A sonoridade da FS é a sonoridade do homem iluminista. De um tempo que buscou o homem, mas que, contraditoriamente, dele se distanciou, até mesmo na música. As ações e perspectivas autênticas das individualidades fundadas na sociabilidade burguesa empobreceram, desfibraram-se ou mesmo se corromperam, da mesma forma que a sonoridade “pura” – posta enquanto veio musical dominante a partir do século XVIII, propôs ou configurou um homem[6] que não podia ser vivenciado em sua completude estética. (CHASIN, 1999, p. 173, em destaque no original, grifo nosso).

É dizer, que, desde então, a “arte musical” vem perdendo sua aura, na medida em que não mais remete para algo sublime, em termos de autoconstrução humana, presa que está a seus constituintes tecno-formais. Isso em decorrência da lógica societária estabelecida. Que, em momento histórico posterior, deságua na mercadologização da vida, inclusive, da música. Fenômeno que Theodor Adorno denomina fetichismo na música e regressão da audição (1975, p. 173). Refere-se à decadência do gosto e aos modismos musicais.

Neste sentido Beethoven é entendido como um dos maiores gênios desta arte, uma vez que antecipa a constatação de problemas com os quais a humanidade se vê a braços até hoje!

2.4 Contemporaneidade

No tempo de Arnold Schoenberg[7] a harmonia diatônica se apresentava esgotada (BARRAUD, 1997; GRIFFITHS, 1998). O cromatismo[8] wagneriano[9] desgastara de maneira irreversível um sistema musical que é utilizado até os dias atuais. É de Schoenberg o vaticínio no sentido de que, mesmo após a invenção do dodecafonismo[10], muita música ainda seria composta em dó maior. Toda a produção musical popular e de massa no Brasil é construída, até os dias de hoje, preponderantemente, sobre estruturas tonais. O mestre estava certo.

Especificamente no campo das políticas públicas de segurança pública é de se salientar, que, o fomento de seguimentos musicais no interior dos órgãos de polícia significa experimentação formal, comparável às vanguardas artísticas supra descritas. Um passo à frente.

É notório que se vive o tempo onde a criminalidade e a violência apresentam enormes desafios aos órgãos de polícia. A complexidade ínsita a fenômenos como elevado número de pessoas encarceradas e a atuação de organizações criminosas, dentro e fora do sistema prisional, confirmam que as estratégias convencionais de policiamento não mais oferecem soluções satisfatórias.

Situação esta que, numa leitura à primeira vista, pode ser entendido como motivo que faz surgir “’entre o público um clamor geral de que as coisas se resolvam com novas leis penais ou agravando as existentes.”’ (VON BAR, 1992, apud SÁNCHEZ, 2013, p. 25, grifo nosso).

Significa dizer que a atuação musical dos órgãos de polícia constitui possibilidade de transformação social, na medida em que edifica e consolida um novo imaginário, em que se compreenda e demande a intervenção mínima, “’pois, toda lei penal é uma sensível intromissão na liberdade, cujas consequências serão perceptíveis também para os que a exigiram da forma mais ruidosa, ali se pode pensar na frase de Tácito: “péssima respublica, plurimae leges.” (VON BAR, 1992, apud SÁNCHEZ, 2013, p. 25, em destaque no original).

Nesse contexto a análise sobre os usos da música no século XXI consiste, também, no esforço para conhecer os seus benefícios na segurança pública, numa quadra histórica em que as grandes produções musicais foram jogadas para as margens, e o centro das atenções é voltado para o empobrecimento musical que se encontra, v.g., no funk (SAFATLE, 2015). Algo que demanda a verificação prévia, ainda que em apertada síntese, dos paradoxais fenômenos que se observam nos protestos musicais pré e pós Constituição Federal de 1988, bem como das bases epistêmicas da atuação musical dos órgãos de polícia, sobretudo arte-ciência, categoria fundante de uma nova orientação teórico-metodológica, com veio transdisciplinar. É o que se passa a fazer.

2.4.1 A canção de protesto no Brasil

O período compreendido entre 1968 e 1974 é muito significativo para a Segurança Pública, pois, estava em vigor o Ato Institucional nº 5. Momento histórico caracterizado por repressão e censura, ápice da ditadura militar brasileira.

Vale pontuar que quanto mais intenso se tornava o regime, mais qualificada do ponto de vista tecno-formal se tornava a música popular brasileira (MPB), o que a inclui entre as melhores do mundo. Os criadores valiam-se de metáforas. Eram utilizados sofisticados recursos linguísticos nas letras das canções, bem como rebuscados refinamentos harmônicos na música (SERGL, 2013, p. 132).

 Isso ajudava a camuflar as mensagens. Em seu conteúdo os valores democráticos. Uma verdadeira luta por liberdade.

Sobre o tema colhe-se que “as canções se tornaram verdadeiros hinos de batalha, ou seja, muitas músicas tornaram-se ícones e um símbolo à resistência militar durante os anos 60-70.” (MAIA; STANKIEWICZ, 2015, p. 4).

Destacam-se entre os principais criadores do período os compositores Caetano Veloso (Alegria, alegria), Chico Buarque de Holanda e Gilberto Gil (Cálice) e Geraldo Vandré, com sua ostensiva crítica em “Pra não dizer que não falei das flores.” Consagrados artistas que elevaram a música popular brasileira a um status estético diferenciado.

Esta produção musical exsurgiu num contexto histórico, em tese, desfavorável. Os “anos de chumbo” convidavam ao não fazer, ao silêncio. Diz-se que “a geração crescida nos anos 70, conhecida como geração AI-5, foi uma experiência de alienação, de medo em participar da vida em sociedade e de impotência diante dos rumos da vida nacional” (NAPOLITANO, 1998, p. 45 apud MAIA; STANKIEWICZ, 2015, p. 4), uma vez que o regime impunha a ordem por meio da força.

Nesse cenário o grande contraponto era feito através da música. Poderosa ferramenta que contribuiu de forma decisiva para a redemocratização.

Isso permite afirmar que a música é instrumento de mudanças, inclusive normativas. Verifica-se que é capaz de modificar o próprio Direito.

Com a Constituição de 1988 positivaram-se direitos fundamentais, frutos das intensas críticas à ordem jurídica posta no período pré-democrático. Corrobora este entendimento a fala dos professores Horácio Rodrigues e Leilane Grubba, que asseveram:

Para a luta por direitos humanos (dignidade), a música, muito mais do que qualquer obra de arte, essencialmente quando popular, detém a capacidade de influenciar uma imensa quantidade de pessoas, tocando nas rádios de norte a sul do país, pode promover mudanças de grande porte nos valores sociais, práticas, etc., e, enfim, no próprio Direito. (2011, p. 88-89).

Neste passo cabe uma análise sobre as demandas por mudanças contidas em algumas canções produzidas no âmbito da ordem constitucional vigente. Aqui se inserem MC[11] Serginho e Lacraia, que popularizaram o funk no início dos anos 2000, um estilo musical que em parte constitui o lugar de fala das classes menos favorecidas. Um canto e um ostinato rítmico contagiantes!

Porém, trata-se de uma produção musical que fica muito abaixo do nível de elaboração das canções de Caetano Veloso e Chico Buarque. Neste diapasão a “Eguinha Pocotó” materializa o esforço de mediocrização do Brasil (PIRES, 2005, grifo nosso). Processo que leva Luciano Pires a propalar a despocotização do país (PIRES, 2005).

Fruto da sociabilidade do consumismo, onde tudo se transforma em mercadoria, exatamente no tempo da plena fruição das liberdades fundamentais.

Paradoxo que tem reflexos na segurança pública, uma vez que o funk pocotó idiotiza e deseduca. Significa dizer que a redução ao lúdico em detrimento do educacional é a primeira nota musical do que aqui se chama melodia da criminalidade, pois o crime “é sempre muito mais amplo do que o conjunto de atos que se utilizam de violência” (FELTRAN, 2014, p. 301).

Desta feita o que se tem nas periferias é a vida normal de muitos jovens que não praticam delitos, ainda que bombardeados por repertório de baixo nível, produzido com finalidades comerciais, seja de protesto ou não.

Igualmente existem os que se mostram vulneráveis às seduções do mundo do crime, numa posição intermediária, eventualmente cometem crimes não violentos.

E tem o pessoal do “proibidão”, onde se tem o total desrespeito ao dever fundamental de obediência às leis.  Fazem apologia ao crime. Incitam a juventude a se insurgir contra as instâncias do controle social formal, mormente a Polícia. Algo que não se deve admitir.

No entanto, é necessário reconhecer a distinção entre o chamado funk ostentação e o proibidão. Este não deve ser tolerado. Aquele precisa ser conhecido, sobretudo porque atualmente representa o grito que outrora era entoado contra o regime militar.

Muitos jovens encontram no funk ostentação a oportunidade de adquirir boa orientação cognitiva, chegando a desenvolver verdadeiros trabalhos artísticos.

O funk “ostentação” idealiza uma vida com acesso ilimitado a bens de consumo. A grande dificuldade é que o lícito e o ilícito coexistem muito próximos nos mundos funk “ostentação” e “proibidão”.

Para aclarar referida distinção socorre-se dos resultados de pesquisa de Bruno Muniz. Analisando o funk ele constata “diferentes formas de relação entre estrutura social e o engajamento afetivo” (2016, p. 452). Afirma que o funk:

Aparece como uma forma de escape afetivo dos problemas enfrentados por fãs, artistas e produtores, problemas que podem ser causados pelo racismo estrutural, segregação espacial ou falta de recursos materiais.  O funk também oferece esperança e otimismo, ao introduzir uma realidade de abundância e prazer quase que ilimitado, como no caso do funk ostentação. (2016, p. 452, grifo nosso).

Aqui, vale salientar, o denominado funk ostentação pode ser entendido como continuação da Eguinha Pocotó, em razão de seu também pobre desenvolvimento do ponto de vista musical.

E, no interior de um Estado Democrático de Direito, têm-se a Polícia Constitucional, lastreada no saber como nomos (VALENTE, 2015), que atua garantindo os direitos fundamentais. Referida diferenciação se torna relevante na medida em que permite a adoção de providências adequadas em face dos perpetradores, separando-os daqueles que praticam uma manifestação cultural juridicamente amparada.

Música esta que se presta, no dizer dos funkeiros, a “gerar renda, afastar as crianças e adolescentes do crime e das drogas e até ajudar no processo de alfabetização” (MUNIZ, 2016, p. 452), nicho social que é objeto de atenção policial em razão da mencionada proximidade com o, diferente e delinquente, funk “proibidão”.

Cumpre ressaltar que os traficantes, não raro, tentam seduzir os jovens do mundo funk ostentação (SILVA, 2012). Que, buscando satisfazer por meio da prática de infrações penais os desejos imaginados na música, fundem-se no “proibidão”, subsumindo-se à subcultura delinquente.

A sutil diferença consubstancia a ponte para o funk proibidão. Armas, violência, criminosos armados em determinados bailes funk onde ou o crime, ou a violência, ou o sexo ou ambos são cultuados (MUNIZ, 2016, p.457). Ambientes onde é imprescindível a repressão qualificada, por meio da atuação enérgica de órgãos de polícia, que, conforme se observa, pode se valer da arte e da música para estes desideratos.[12]

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Sobre o autor
Bruno de Oliveira Favero

Especialista em Polícia Judiciária e Sistema de Justiça Criminal pela Academia de Polícia 'Dr. Coriolano Nogueira Cobra" São Paulo. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Osasco - UNIFIEO. Bacharel e Licenciado em Música pela Faculdade de Ciências de Osasco FAC FITO. Investigador de Polícia em São Paulo, desenvolve estudos sobre mediação de conflitos criminais como função de polícia judiciária e a práxis policial investigativa na contemporaneidade.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FAVERO, Bruno Oliveira. Música e segurança pública: A efetividade dos direitos humanos na atuação artística dos órgãos de polícia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5447, 31 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66609. Acesso em: 24 nov. 2024.

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