RESUMO: O Orçamento Participativo é visto, por muitos autores, como um meio democrático participativo que colocaria a população no centro das decisões, isto é, ele ajudaria o Poder Público a decidir como e para onde destinar os recursos públicos. Porém, o Orçamento Participativo é realmente eficaz? Assim, deve-se observar toda a complexidade que envolve o tema. Ademais, o Orçamento Participativo ajudaria e seria capaz de ajudar a concretizar os direitos humanos, mais especificamente a dignidade humana, dos cidadãos? Por fim, como é a gestão orçamentária implantada no Município de Marabá, Estado do Pará? Procurar-se-á, a partir da análise desse modelo, compreender se o que é proposto no presente artigo está sendo aplicado no referido Município.
Palavras-chave: Orçamento participativo. Democracia deliberativa. Dignidade humana.
INTRODUÇÃO
A democracia deve passar por uma urgente mudança de paradigma. Muitos ainda a veem como representação da vontade popular. Ou seja, um país democrático seria aquele em que os cidadãos pudessem votar em pessoas que os representariam, tanto no Poder Executivo, como no Legislativo, sendo que a vontade da maioria deve prevalecer. Vale ressaltar que a democracia representativa é o modelo adotado pelo Brasil.
Contudo, já se destacou de que é preciso conceber a democracia por outros caminhos além do citado acima. Nesse sentido, a própria Constituição da República de 1988 estabelece alguns mecanismos de democracia semidireta, como o plebiscito e o referendo (respectivamente, incisos I e II, art. 14, CR/88).
A democracia, entendida de forma mais extensa, deve propiciar a participação direta dos cidadãos nas decisões que envolvem o próprio Estado. A partir disso, os cidadãos podem requerer do Estado os direitos previstos no ordenamento, inclusive os direitos e garantias constitucionais. Ajudando na tomada de decisões e participando ativamente, os indivíduos podem assegurar que seus direitos sejam concretizados.
Assim, no século atual, onde tudo e todos encontram-se conectados e estão sob os efeitos da globalização, tem-se várias pessoas com diversos projetos de vida, o quais devem ser externalizados e desenvolvidos, sob pena de estar-se ferindo a dignidade humana desses indivíduos. Desta feita, é necessária uma maior aproximação da população com Estado, a fim de que os seus anseios sejam ouvidos e que o Estado possa contribuir no pleno desenvolvimento dos planos e projetos de vida das pessoas, aplicando-se o dinheiro público deve ser aplicado de tal forma correta.
Ademais, a aproximação entre Estado e indivíduos deve se dar em razão da maior transparência que daí decorre. Por isso que, em relação aos atos e peças orçamentárias, a participação e fiscalização, pela população, é de extrema importância, evitando o uso discricionário e o desvio de verbas públicas, as quais devem ser aplicadas sempre visando a sociedade como um todo, a fim de atender aos objetivos do Estado e necessidades públicas, ou seja, aos fins constitucionais.
Por isso merece importância o chamado orçamento participativo, em que a população delibera de forma democrática, em espaços democráticos, sobre o destino do dinheiro público. Isso permite a já citada maior aproximação entre os indivíduos e o Estado, apontando ao Poder Público as necessidades mais latentes da população e permitindo uma maior interação desta com os assuntos orçamentários, de interesses de todos, visto que atingem, direta ou indiretamente, em maior ou menor proporção, a todas as pessoas presentes em determinado território nacional, in casu¸ o Brasil.
Para tanto, uma melhor compreensão da democracia deliberativa, em especial das teorias habermasianas, é de suma importância, vez que ajudam a entender o denominado Orçamento Participativo, funcionando mesmo como sua base e fundamentação, na visão aqui adotada. Inclusive, esse, dentre outros, foi o objetivo do presente trabalho.
Por fim, deve-se atentar ao conceito de cidadania. Esta, em sua concepção clássica, é tida como o direito de votar e ser votado, ou seja, de escolher representantes ou de ser um deles. Porém, essa definição deve ser alargada, possibilitando que a cidadania seja vista, também, como participação ativa na formação da vontade política e afirmação dos direitos e garantias fundamentais (FERNANDES, 2015, p. 299). Desta feita, um indivíduo sem os direitos fundamentais não pode ser visto como um cidadão, ou seja, se as decisões políticas a ele não são destinadas, ele está totalmente à margem do Estado, não sendo um ser pertencente a esse Estado (não sendo, portanto, cidadão, pois não goza dos direitos e garantias que o Estado garante aos cidadãos)[4].
O SIGNIFICADO DE DEMOCRACIA (DELIBERATIVA) NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO SOB A PESRPECTIVA HABERMASIANA
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, deixou explícito que o país é um Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, da CR/88). Mas, em que consistirá esse modelo de Estado?
O Estado Democrático de Direito (ou Estado Constitucional) foi um marco para a história mundial e para a vida em sociedade. Deixando para traz o Estado Liberal e o Estado de Bem-estar Social, o Estado Democrático de Direito une as ideias de constitucionalismo e de democracia, produzindo uma verdadeira e nova forma de organização política (BARROSO, 2005, p. 3)[5].
Nesse sentido, a Constituição é colocada no centro, pois todo o ordenamento jurídico subsequente a ela não pode possuir regras contrárias à Carta Magna, sob pena de inconstitucionalidade. Desta feita, destaca-se que, como possui força normativa (status de norma), a Lei Maior é dotada de imperatividade, deixando de ser um documento meramente político – um convite à atuação legislativa, como era antes, principalmente na época dos Estados Liberais.
A ideia de democracia assume papel importante, vez que permite, em todo o processo decisório, principalmente (na atualidade) através de representantes eleitos, a participação da sociedade, que é atingida direta ou indiretamente pelas ações estatais (FERNANDES, 2015, p. 288).
Assim, percebe-se que o Estado ora em discussão, mais que garantir direitos positivados, também deve garantir o exercício da democracia. Mas, a ideia clássica de democracia como vontade da maioria, ou mesmo ligada à modesta concepção de se resumir somente à eleição de representantes, está ultrapassada. A democracia vai além: é o governo para todos[6], em busca de um bem comum.
Oportuno citar as digressões de Jürgen Habermas, para quem:
[...] com a razão comunicativa, a decisão democrática será aquela inserida em uma dinâmica procedimental na qual tanto autores como sujeitos da decisão possam consentir e reconhecer que o resultado foi correto, por ser um produto do “melhor argumento”. Aqui, seja quem tomará a decisão, quanto quem sofrerá seus efeitos, serão e poderão se assumir – ao menos virtualmente – como coautores da mesma decisão, uma vez que serão participantes de um mesmo discurso que conduzirá à sua definição. (FERNANDES, op. cit., p. 291, grifo do autor)
Habermas, para a ideia a ser desenvolvida adiante neste trabalho, assume relevante importância. A Teoria da Ação Comunicativa e os ensinamentos habermasianos sobre democracia deliberativa influenciam diretamente na democracia participativa[7] presente no orçamento participativo (cuja sigla utilizada no presente trabalho é OP).
Em relação à democracia deliberativa, a participação dos cidadãos, nas tomadas de decisão do Estado, assume caráter central. Ora, todas as ações do Estado visam os integrantes da sociedade. Nessa perspectiva, não seria razoável que as deliberações e tomadas de decisão estatais sejam feitas à mercê dos cidadãos[8]. Estes decidem, pensam e criam por si mesmos, pois, além de serem o centro do mundo, estão centrados no mundo, se comunicam e estão em constante diálogo com os demais da sua espécie, além de decidirem livremente sobre sua moralidade privada (MARTÍNEZ, 2003, p. 13). O que se quer afirmar é que, além de ser sujeito passivo (destinatário/centro das decisões do Estado), o homem (cidadão) também deve ser visto como sujeito ativo (o qual deve opinar no processo deliberativo acerca das decisões estatais, pois está centrado no mundo).
Nessa conjuntura, o povo possui autonomia, porquanto caracterizada, no sentido da autolegislação, como vontade do povo que se enxerga como destinatário das leis estatais, sendo que essa vontade popular deveria representar, no contexto democrático, o agir coletivo e a supressão das vontades individuais em prol da sociedade (ARAUJO, SOARES, CAMPOS, 2009, p. 106).
Assim, concernente aos ensinamentos de Any Gutmann e Dennis Tompson (2007, p. 22-23), retoma-se a ideia de que a democracia não pode ser reduzida à eleição de representantes, mas que ela também se refere à possibilidade de os cidadãos deliberarem publicamente sobre determinadas questões. Porém, mister é que haja um espaço aberto, livre e igualitário, onde se possa discutir e entrar em consenso. Desse modo, as decisões políticas devem ser justificadas pela razão, e não mais pelo velho argumento (porém, ressalte-se, que ainda persiste) da vontade majoritária.
Esses espaços deliberativos são efetivamente democráticos, na medida que concedem aos participantes a oportunidade de serem, no mínimo, ouvidos, pois todos podem assentir de que ao menos suas proposições foram levadas em consideração (FERNANDES, op. cit., p. 293), além de incentivar as pessoas a pensarem e deliberarem coletivamente sobre assuntos que interessam a toda coletividade, o que aumenta os laços entre os cidadãos, pois, ao participarem juntos na construção de sua cidade aproximam-se uns dos outros, criando valores e trocando experiências.
A questão, conforme salienta Fernandes (ibidem, loc. cit.), é que o processo deliberativo é marcado pelo dinamismo, ou seja, ele não é absoluto, pois os resultados da deliberação estão sujeitos a constante revisão, críticas e reversibilidade.[9] Daí que essa “maleabilidade”, no contexto participativo, contribui para que as decisões sejam constantemente revistas e atualizadas conforme as necessidades do momento[10].
Araujo, Soares e Campos (2009, p. 106), escrevendo acerca de Habermas, afirmam:
O modelo de Democracia de Habermas baseia-se nas condições de comunicação sob as quais o processo político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais, justamente por cumprir-se de modo deliberativo. Pelo modelo discursivo do autor, o procedimento democrático cria uma coesão interna na tomada de decisão por baseá-la em discursos que visam as negociações e o auto-atendimento entre a sociedade civil e o Estado.
A Teoria da Ação Comunicativa habermasiana, marcada pela busca do consenso sobre determinado assunto e diretamente relacionada à democracia deliberativa,
[...] se fundamenta no conceito de ação, entendida como a capacidade que os sujeitos sociais têm de interagirem intra e entre grupos, perseguindo racionalmente objetivos que podem ser conhecidos pela observação do próprio agente da ação. (GUTIERREZ; DE ALMEIDA, 2013, p. 153)
Habermas, além de propor a busca pelo consenso sem coação, introduz o discurso, entendido como uma das formas da comunicação, cujo objetivo é “fundamentar as pretensões de validade das opiniões e normas em que se baseia implicitamente a outra forma de comunicação ou ‘fala’, que chama de ‘agir comunicativo’ ou ‘interação’” (GONÇALVES, 1999, p. 133, grifo do autor).
Ante todo o exposto e consoante explicações de Dalmo de Abreu Dallari (2013, p. 156), percebe-se que a democracia participativa, sob a perspectiva deliberativa, ajudaria, obviamente, na efetivação dos princípios democráticos. Porém, esse tipo de democracia não pode influenciar em toda as decisões do Estado, pois isso já seria utópico e inviável. Certo é que essa participação social é benéfica para a sociedade, pois, a partir da opinião dos cidadãos sobre assuntos de interesse comum da coletividade, orienta os governantes sobre as necessidades iminentes, sobre as políticas públicas necessárias, ou seja, orienta os governantes a agir em consonância com os anseios da população. Esse instituto contribui para diminuir os riscos da democracia direta representativa.
Indo além, pode-se dizer que a democracia deliberativa ajudaria na efetivação dos direitos e princípios constitucionais, pois através dos procedimentos deliberativos os cidadãos têm voz e vez para exigir que a Constituição (dotada de supralegalidade, imperatividade e força normativa) seja cumprida.
Frisa-se que a democracia representativa e a democracia deliberativa parecem entrar em choque. Porém, isso seria resolvido por intermédio de um delineamento de complementaridade entre as duas formas de democracia, o que contribuiria para o aprofundamento de ambas. (SANTOS, 2002, p. 32). Ou seja, a partir do momento que essas duas formas de democracia se unem e trabalham em conjunto, ambas podem conviver harmonicamente e produzir em parceria, complementando-se e afastando o (possível) confronto - tensão -, que poderia existir.
Adentrando mais à realidade brasileira, na Constituição de 1988 tem-se alguns processos que podem ser considerados democráticos semidiretos de cunho participativo, tais como o plebiscito (art. 14, I), o referendo (art. 14, II), iniciativa legislativa popular (art. 14, III c/c art. 61, §2º) e a ação popular (art. 5º, LXXIII) (FERNANDES, 2015, p. 294).
Contudo, o problema reside em encontrar um tipo/mecanismo de democracia direta, essência esta da democracia participativa. Isso é uma necessidade do mundo atual, complexo e pluralista, no qual o Estado deve se aproximar do povo a fim de desvendar as aspirações sociais (ASSUNÇÃO, 2013). Aliás, a participação popular é peça chave da cidadania (art. 1º, I CR/88), sendo que a própria Constituição brasileira aponta a imprescindibilidade desta na tomada de decisões políticas (ibidem).
No âmbito federal e estadual, a priori, utópico e impossível pensar modos eficientes de democracia participativa[11]. Porém, no âmbito municipal não só é viável, como também existem casos nesse sentido, como o Orçamento Participativo implantado em Porto Alegre, o qual é modelo para todo o Globo[12].
Ademais, a democracia está intimamente ligada ao processo de planejamento urbano, pois, pensar nele sem relacioná-lo à democracia seria uma falha grave. Nessa perspectiva, é importante criar, no âmbito municipal, espaços urbanos verdadeiramente democráticos, pois é através deles que será possível a efetivação do Direito à moradia, à habitação digna, ao saneamento básico, à saúde, à educação, etc.
O pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade será efetivo se viabilizar a participação dos indivíduos na administração do espaço urbano, por meio de gestão participativa, da ponderação de interesses privados, de interesses públicos, de interesses privados e públicos colidentes, de forma a produzir parâmetros técnico-legais lídimos, decorrentes da correta ponderação de interesses para a realização dos objetivos nacionais para o desenvolvimento urbano e para o cumprimento da função social da propriedade, expressos em instrumento basilar para o processo de planejamento e desenvolvimento de políticas urbanas: o plano (DIAS, 2002, p. 150).
Mas, é importante que os cidadãos deliberem, sobre os espaços urbanos, visando o bem comum. Para isso, necessário se faz entrar em consenso acerca do que é mais importante e prioritário. Desse modo, deve-se deixar para trás o individualismo, isto é, de que sua tese ou sua opinião é mais importante, em prol da coletividade, sempre estando aberto a escutar as demandas dos outros agentes sociais, e, no momento de decidir, escolher a alternativa que mais favoreça a comunidade[13].
A democracia garante legitimidade às ações públicas a serem implantadas no âmbito do desenvolvimento urbano, porquanto ela propicia canais de comunicação que possibilitam ao Poder Público conhecer os interesses, aspirações, necessidades e prioridades dos cidadãos (DIAS, 2012, p. 103).
Em outras palavras, “a democratização do processo decisório serve a dois propósitos fundamentais: incrementar a probabilidade de acerto na tomada de decisões e compartilhar com a sociedade a responsabilidade pelas opções deliberadas” (PEREIRA, 2008, p. 157).
Daniella Dias (ibidem, p. 63), em interessante análise sobre a democracia, assevera que:
A democracia é a base imprescindível para o processo de gestão, concepção, planejamento, implantação e fiscalização das políticas relativas ao desenvolvimento urbano. A democracia é a base do Estado Democrático de Direito (art. 1º, CF) e tem por fundamentos o exercício da cidadania e a proteção à dignidade humana (art. 1º, inc. II e III, CF).
Na legislação infraconstitucional brasileira, é o Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/2001, que deu “densidade normativa ao disposto no capítulo constitucional da política urbana” (ibidem, p. 44), não podendo deixar, obviamente, de tratar sobre a gestão democrática da cidade (no Capítulo IV). A proposta é que o Poder Público tome as decisões baseando-se no diálogo com a população, o que “ratifica o sentido e a conformação do Estado Democrático de Direito que pretende a realização da igualdade, a partir da vivência da democracia” (ibidem, p. 64-65).
Analisando a redação do art. 43, caput, do Estatuto da Cidade, percebe-se que o legislador foi impositivo (e não facultativo, como seria se utilizasse o verbo “poderá”, por exemplo) ao utilizar o verbo “deverá” (in verbis, “para garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser utilizados, dentre outros, os seguintes documentos”), referindo aos instrumentos previstos nos incisos subsequentes.