Capa da publicação A partida do Deputado Jean Wyllys: exílio da moral
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O exílio da moral

02/02/2019 às 14:00
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O abandono da legislatura e a saída do país de Jean Wyllys deixa clara uma triste realidade: no Brasil é perigoso falar por minorias, direitos humanos e meio ambiente... Reflitamos sobre isso.

Aconteça o que acontecer, o tempo e as horas sempre chegam ao fim, mesmo do dia mais duro dentre todos os dias. Shakespeare (Macbeth)

INTRODUÇÃO

Manchete nos principais jornais nacionais e internacionais é o fato de que o deputado Jean Wyllys, do PSOL, abriu mão de exercer seu mandato e resolveu deixar o Brasil.

O motivo do parlamentar optar fazê-lo, mesmo poucos meses após ser reeleito ao cargo, são ameaças de morte constantes, acompanhadas de ofensas deploráveis.

As ameaças de morte são dirigidas contra ele e membros da família. Isso ocorre sob a sombra do caso da vereadora Marielle Franco (PSOL), morta a tiros, por suposta ação da milícia que atua no Rio de Janeiro, conforme apontam investigações. O caso, porém, segue ainda sem um desfecho. Neste mesmo cenário é recente o atentado pretendido contra a vida do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), frustrado graças a uma denúncia anônima que permitiu a ação da polícia.

No contexto de um acirramento da polarização política, recrudescimento do embate ideológico, ascensão de forças conservadoras e reacionárias que põem em xeque pautas político identitárias e direitos de minorias, o deputado vê-se eleito com uma menor expressão do voto, uma base combalida e fragilizada pela virulência de comportamentos que ameaçam as mais comezinhas regras de convivência por parte de alguns de seus adversários políticos e seus apoiadores.

Com a decisão de abandonar o exercício de sua legislatura e deixar o Brasil, assistimos pelas redes sociais um triste cenário: adversários políticos não concedendo a devida solidariedade em um momento de crise; e, pior, manifestações públicas carregadas de ódio, comemorações, banalização de um fato triste e, ao mesmo tempo, preocupante e dramático, não apenas para Jean, mas para a própria Democracia.

Entendemos que a despeito de opinião política e proselitismos quaisquer, toda a nação deveria lamentar um cenário que aponta para uma espécie de "estado de exceção", no qual representantes políticos são achacados pelo terror e por medo veem-se obrigados a um exílio compulsório. Pareceu a Jean que não seria seguro persistir em um momento como este, onde faltam consciência e compaixão em um país que lidera rankings de assassinatos de lideranças de minorias, ativistas ambientais e defensores de direitos humanos.

Percebemos que seria imperioso que adversários políticos e toda a nação, a despeito de qualquer viés ideológico ou vinculação partidária, rechaçasse uma situação como essa. Que se houvesse manifestações de pura grosseria, intolerância que fossem tão isolados ao ponto de não fazer eco. Esperávamos que toda a massa minimamente esclarecida compreendesse que falamos não de uma renúncia comum, mas do drama de ser humano temente pela própria vida.

Após tomarmos breve nota sobre o panorama brasileiro quanto à violência em relação às minorias, vulneráveis e suas lideranças e representantes, que possamos pensar cada um de nós como também vulneráveis.

Que haja uma tomada de consciência no sentido de que é incompatível com a Ética qualquer conivência com este tipo de terrorismo e que é moralmente condenável manifestar-se em sentido outro que não o do repúdio para com esta ameaça que hora referimo-nos - a do Jean -, mas que, tristemente, é parte de uma luta silenciosa, na qual minorias perecem e mancham nosso solo com o sangue irmão.

A Filosofia é capaz de nos permitir olhar esses dados, analisar este panorama e buscar inspiração para vencermos nossa sensação de individualidade e termos compaixão com este cidadão que é forçado ao exílio.

Para além das narrativas propostas, transpondo a noção melancólica de irmandade da dor que nos faria cônscios da necessidade do cultivo da compaixão, para não falarmos empatia, que possamos redimir nosso texto que se desenvolve por certo pessimismo, mas que pode convidar a uma nova realidade através da qual possamos olhar uns aos outros muito além das diferenças, estendendo laços de lealdade para um aperfeiçoamento da convivência e a possibilidade de uma vida mais concernente com a felicidade e a liberdade, as quais almejamos e pretendemos pela vida democrática.

UMA ANTOLOGIA DA SOLIDARIEDADE CIDADÃ

Platão foi traído por Dionísio, tio de seu amigo Dion, após ter atendido a um convite deste e enxergado oportunidade de implementar sua filosofia no campo da política. As instruções sobre política e filosofia de Platão visavam a edificação de uma "Cidade Justa" o que parece ter desagradado ao tirano e fazendo com que Platão fosse preso e vendido como escravo em Siracusa.

As adversidades estão em toda parte. Os homens possuem a capacidade de serem maus, ingratos e traiçoeiros. Aqueles que falam por mais alcance da justiça não raro desafiam as forças políticas dominantes e atrai animosidades. Platão, cidadão grego da aristocracia, no auge de seu saber, viu-se fragilizado e conduzido à posição vulnerável. Resgatado por Anikeris de Cítera, retornou a Athenas onde fundou sua escola nos jardins de Academos.

Anikeris agiu como um grego da antiguidade, época na qual a prisão e a escravidão de outro cidadão grego livre consistia no aprisionamento da própria noção de "grego livre". A afronta ao "ethos" de um povo como a afronta de um povo. Este caso ilustra bem que, mesmo aqueles que não são vulneráveis de per si, por uma conjuntura de fatores, poderá vir a tornar-se. E Anikeris compadeceu-se de um nobre cidadão livre.

Nós modernos não discernimos entre cidadãos ou não cidadãos. Nós sofisticamos o entendimento acerca da Democracia, identificamos Direitos Humanos como sendo inatos e enxergamos em cada ser humano como autenticamente livre e digno e apto a ser cidadão.

Portanto, como deveríamos receber a notícia de que no Brasil um cidadão livre e representante da República é obrigado a deixar sua nação por temer pela própria vida?

A notícia de que o Deputado Jean Wyllys irá abrir mão do mandato de deputado e deixar o Brasil devido a ameaças contra sua vida é no mínimo aterradora. Cada um de nós deve-se sentir-se ultrajado, inseguro e ofendido, afinal um cidadão, mais, um representante eleito dos cidadãos, sofre um constrangimento suficiente grave que o faz exilar-se.

Quem de nós poderia sentir-se seguro se um representante da república, que faz jus a todo aparato de segurança institucional, abre mão do próprio mandato por temer pela vida? Não só a vida do deputado e sua incolumidade física, a vida da república e a saúde da democracia estão doravante enfermiças.

Há um atavismo preocupante quando um congressista deixa seu país ameaçado de morte quando apenas três décadas contam de nossa redemocratização. O Brasil até 1985 assistiu um capítulo negro, mais um, de sua história de imersão em ditaduras e autocracias. De 1964 até 1985 o país enfrentou uma ditadura que exilou, torturou e matou pessoas devido a divergências político ideológicas.

Em 14 de Março de 2018 Marielle Franco (PSOL), vereadora e audaz defensora dos Direitos Humanos, foi assassinada no Rio de Janeiro. Tendo o carro alvejado por 13 tiros, faleceu junto a seu motorista Anderson Pedro Gomes. Relatórios de investigação levam a crer que este atentado foi arquitetado pela milícia do Rio de Janeiro, um amálgama de policiais criminosos e políticos corruptos.

Ainda em 2018, a polícia, graças a uma denúncia anônima, frustrou um plano para assassinar o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL). O deputado, amigo e companheiro de partido de Marielle Franco, já contava com proteção policial há dez anos, desde quando presidiu a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) das milícias na assembléia legislativa do estado.

Jean Wyllys, mesmo após decisão de abrir mão do mandato de deputado e deixar o país, segue recebendo ameaças e sendo alvo de agressões verbais covardes e truculentas. Segundo reportagem do jornal "O Globo" de 28/01/2019, o congressista recebeu um e-mail contendo a seguinte mensagem: "Saiba que meu maior desejo é te decapitar e postar o vídeo na Deepweb. Você e sua querida mãe" além de ofensas como "escória e bixa desgraçada". Segundo o site "Catraca Livre" Jean Wyllys vinha recebendo ameaças de morte com frequência e vive sob escolta policial desde o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), em março do ano passado. Com o aumento dos riscos, o deputado decidiu abandonar a vida pública para se proteger.

Três políticos representantes de direitos das minorias, articuladores de direitos humanos e do espectro da esquerda política vitimados pela intolerância, a violência e expostos à insegurança. Marielle está morta, Freixo esteve na mira de um atentado e Jean é impelido a um exílio auto imposto para que não tenha o mesmo destino trágico de sua amiga e companheira de partido. A República? Adoecida. A Democracia? Comprometida e agonizada.

Nosso objetivo aqui não será nos debruçarmos sobre os fatos dos atentados, discorrermos elucubrações policiais, traçar tramas judiciais e tampouco analisarmos questões atinentes à política. Nosso objeto não será a contaminação de instituições de nossa República ou o trauma causado à democracia quando não se parece seguro pertencer a certo espectro político e quando se torna vulnerável levantar a voz pública por Direitos Humanos.

Todavia, é imperioso trazermos à tona dados como os que seguirão para, posteriormente, adentrarmos a uma discussão fundamental, não obstante tenha passado à larga de debates e exposições: a degenerescência moral e a decadência ética quando vemos pessoas comemorando e ou tripudiando de ameaças à vida de um ser humano.

CIFRAS NEGRAS

Segundo a "Agência Brasil", em 2016, foram assassinadas 66 pessoas que atuavam na promoção e proteção dos direitos básicos individuais ou coletivos. Outros 64 defensores dos direitos humanos foram ameaçados ou se tornaram alvo de ações que visavam criminalizar atuações de abusividade;

O dossiê "Vidas em Luta: Criminalização e violência contra defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil", alerta quanto ao uso excessivo da força policial, violência estatal em relação a cidadãos em posição vulnerável e "tentativas de criminalização de movimentos sociais". Quanto este último elemento, deixemos registrada nossa preocupação mais do que pertinente, tendo-se em vista nossa presente conjuntura política e discursos áridos carregados de ideologia anti movimentos sociais provenientes de parte dos atuais mandatários governamentais.

Neste esteio, cumpre lembrarmos que Marielle Franco atuava com esse segmento de minorias vulneráveis que mais sofrem com a violência nominal em nosso País e que oferecia combate à milícia (e apoio a policiais honestos e vitimados). O fato de Marielle ser uma mulher negra, lésbica e da periferia não é ocasional, mas sintomático, deste quadro obscuro que aqui demonstramos, sobretudo pelo fato dela ser uma ativista de direitos humanos, o que ao compulsar relatórios, vemos como sendo perigoso em um país como o Brasil.

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Basta lembrarmos que lideranças quilombolas, como Francisca das Chagas (Maranhão) e Maria Trindade (Pará), também foram assassinadas em 2016 e 2017, respectivamente, e que Nilce de Souza Magalhães, a Nicinha, liderança do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), morreu defendendo direitos das comunidades atingidas pelas hidrelétricas no Rio Madeira, em Rondônia. Geovana Teododo, indígena Kaigang e Sônia Vicente Cacau Gavião, “Cry Capric” igualmente assassinadas enquanto lutavam pela demarcação de seus territórios.

Não olvidemos que, no ano de 2017, foram 179 assassinatos de travestis mulheres, transexuais e homens trans no Brasil, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais – Antra.

É judicioso analisarmos esses dados tendo-se em mente que, no Brasil, pessoas negras, pobres, quilombolas, indígenas, sem terra, lésbicas, gays, transexuais, travestis, moradoras e moradores em situações de rua são extremamente vulneráveis à violência e que agora vemos seus representantes sofrendo esta mesma violência tacanha que, saindo dos becos e periferias, chega às assembleias legislativas e ao Congresso Nacional.

Se os números apontados para o ano de 2017 em relação a cidadãos vulneráveis é angustiante, o que aponta uma reportagem do jornal "Estado de São Paulo", datado de 18 de março de 2018, é aterrador: 12 lideranças representativas de direitos humanos assassinadas, o dobro em relação ao ano anterior. Uma escalada da violência sem previsão de melhoras.

O informe anual "O estado dos Direitos Humanos no Mundo" traz mais números que capitalizam a vergonha e a preocupação em relação a segurança das minorias em nosso país, segundo Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional, ao comentar relatoria referente ao período 2017/2018 "O que acompanhamos com muita preocupação no último ano é que o Brasil tem liderado o número de assassinatos de diversos grupos: jovens negros do sexo masculino, pessoas LGBTI, defensoras e defensores de direitos humanos, grupos ligados à defesa da terra, populações tradicionais e policiais".

Temos a polícia que mais mata e que mais morre e a conclusão melancólica que se segue é que “Infelizmente o Brasil é o país do mundo onde ocorre o maior número de assassinatos destes grupos. Isso deixa evidente o quanto o Estado tem falhado na preservação da vida, na forma com que as forças de segurança atuam e na responsabilização pelas vidas perdidas ao longo de anos”.

É emblemático, mas previsível, que, em um país onde tais dados sejam uma constante, políticos que respaldam a luta por direitos de minorias, questões ambientais e Direitos Humanos sejam ameaçados, agredidos e mortos. Mas urge que atentemos quanto a esta torpe idiossincrasia de nossa nação a fim de que possamos reforçar nossos laços de fraternidade, dispormos de uma pátria com condições mínimas de segurança e bem estar e um meio ambiente sustentável - que tenhamos uma democracia saudável, na qual representantes políticos não precisem deixar o país para não terminarem vitimados.

Impõem-se reforçarmos as instituições republicanas para a contenção da corrupção, que está diretamente relacionada a esta realidade de violência e abusos. Segundo Ben Leather, coordenador de campanhas da Global Witness "um fator em comum entre os países com maior número de assassinatos são os altos índices de corrupção governamental. E embora se pudesse dizer que há menos ataques contra defensores em países mais democráticos, vale a pena examinar o papel dos países investidores que facilitam a entrada de suas empresas em contextos onde opositores e ativistas são atacados", dito em entrevista ao jornal "El País".

Se o Estado não atua de forma firme contra perpetradores de crimes contra minorias, se é conivente com a atuação de milícias, não cria leis para conter crimes de ódio e não dedica atenção a questões referentes ao meio ambiente e ao problema agrário, este teatro de tragédias não findará, onde os vulneráveis e seus defensores terminam anatemados graças a injustiça, a intolerância, a cobiça, ao preconceito, a corrupção e o descaso.

EXÍLIO COMPULSÓRIO

O dicionário Priberam traz ao verbete "exílio" o significado de "expulsão da pátria; desterro; deportação; degredo".

Jean Wyllys deixa o Brasil na condição de um exilado. Expulso da pátria que tanto violenta ativistas de Direitos Humanos e de defesa do Meio Ambiente. Representante de minorias, Jean, é desterrado pelo medo e deportado a despeito de eleito democraticamente. Temos um cidadão condenado ao degredo do medo e à insegurança. Mas, desterrados somos todos à medida que vemos o quanto estamos vulneráveis, desterrados nos tornamos se não podemos nos fazer representar no congresso por quem elegemos pelas vias legais e que é impedido de assumir por um clima de terror. Porém, dediquemos atenção à decrepitude ético-moral ao qual nossa nação é lançada ao vermos manifestações de escárnio, comemorações e piadas contaminando espaços públicos de comunicação.

Da mesma maneira que Platão foi resgatado e, junto a ele, a máxima da liberdade inerente aos cidadãos gregos também fora, urge que cada brasileiro solidarize de Jean Wyllys e condene este exílio compulsório. Que falemos a respeito deste fato com inconformismo, que cobremos as autoridades uma tomada enérgica de postura, não apenas quanto a este caso, mas quanto à crise humanitária pela qual passamos e o risco de defender em solo pátrio os Direitos Humanos - anote-se: direitos de todos.

Que possamos repudiar com veemência não apenas o fato em si, da ameaça sofrida por Jean, mas que deixemos clara a repulsa quanto à conduta de todos aqueles que saíram às redes sociais com gracejos e felicidade, por não gostarem de Jean, de seu partido ou mesmo de suas ideias (talvez por sua preferência sexual). O que está em pauta transcende a política.

Cada conversa, ato público e convite à discussões acerca da imoralidade de quem festeja o desterro de um cidadão não será debalde ou vazio. A conscientização quanto aos elementos ético morais é tarefa de todos nós. A tomada de consciência é ato subjetivo, mas igualmente coletivo. Que todo aquele saído da caverna tenha a coragem de retornar e trazer aos demais a visão das luzes. Sejamos luminares que não temem fazer do Mundo um lugar melhor. Em um país em que parece ser loucura, ou tarefa para um herói, eleger-se com a plataforma de minorias e vulneráveis, a ironia de Erasmo de Rotterdam quando dissera que "A vida inteira do herói é um divertimento da loucura" (Rotterdam, p. 41) é o que nos resta por um instante.

Jean Wyllys, desde seu primeiro mandato, lutou por aqueles que eram vulneráveis e sem voz. Nossa democracia não é das mais sólidas, a trajetória de nossa República é marcada por interrupções da democracia por regimes autoritários, políticos autocratas, regime militar e conseqüentemente nosso povo ainda não está afeto à democracia para além de seu nominalismo. Ainda assim, Jean foi eleito por vozes que jaziam emudecidas pelas forças beligerantes que controlam nosso corpo político.

Alguns simpatizantes de Jean no começo, atento ao bom trabalho parlamentar, todavia não pertencentes a tais minorias marginalizadas, no decorrer de seus dois mandatos deixaram-no. Alguns consideram algumas de suas pautas exageradas, algumas de suas propostas e reivindicações são impopulares e neste momento de reacionarismo, seu terceiro mandato deu-se com uma votação não tão expressiva. Com uma guinada conservadora no cenário político nacional também perdera apoio.

Jean não abandonaria sua pauta progressista, nem se afastaria de suas bases eleitorais. Ademais, em nossa frágil democracia o pensamento livre na intenção de liberdades e direitos, como já visto, é perigoso. Parafraseamos Nietzsche, para dizermos que Jean Wyllys tornou-se um incômodo, ao ponto de forças ocultas, reacionárias, desejarem a eliminação de tal incômodo e perseguirem-no por suas ideias, pela chaga aberta e dolorosa que a opinião livre causa, perturbando e torturando a orientação da existência, em nossas relações sociais (Nietzsche, p. 286-287).

A despeito de quaisquer divergências, colegas congressistas, ocupantes de cargos públicos, mandatários da República e população em geral, devem compadecer deste cidadão que deixa a pátria, seus ideais e seu mandato, por temer por sua própria vida. Alguém abandonar uma militância política toda dedicada não ao interesse de elites, não à manutenção do Status Quo, muito menos ao aumento das desigualdades é mais uma cifra negra para manchar nosso histórico quanto Direitos Humanos.

ÉTICA E COMPAIXÃO

O Homem é um animal moral. Nós atribuímos valor às nossas ações de forma que não vivamos para a mera sobrevivência do corpo. Os valores morais espraiam uma ética, esta, que hodiernamente dissipa-se desde normas com valores subjacentes referidas à profissões até o "sentido" de Ser de um povo. A política é um terreno da ética, daí termos regras que transbordam a esfera legal e encampam uma axiologia moral. Uma vida sem ética "ethos" é vazia, despossuída de um sentido, uma vida nua em que a qualquer momento poderia nos ser tirada. O Homem sem "ethos" é um corpo desterrado.

Há alguns valores morais que nos parecem universais, subsistindo em leis básicas que preconizam, por exemplo, que não devemos "matar" ou "roubar" nosso semelhante. Encontramos documentos normativos que encerram alguns destes princípios basilares, para dizer o mínimo, em todo o Ocidente. Atentemos que há regras de trato social que se imiscuem com algumas destas normas jurídicas e que perfazem um corpo ético de um povo. Há uma máxima moral ocidental que prescreve que não matemos ao outro, senão em circunstâncias específicas, como a legítima defesa; que tratemos ao próximo com civilidade; temos uma ideia abstrata sobre educação e uma intuição quanto a ser reprovável agredirmos outro ser humano (também os animas) gratuitamente.

Neste diapasão, vermos manifestações nas redes sociais de indivíduos que comemoraram o dilema vivido por Jean Wyllys é um atestado de degeneração moral. Felicitar-se quando alguém jaz ameaçado em sua integridade física contraria os preceitos morais básicos de nosso processo civilizatório. Não mostrar compadecimento e comoção nacional é traço de uma decadência ética que urge ser combalida.

Vamos submeter à análise a conduta daqueles que buscam justificar, por quaisquer razões, até comemorar a saída de Jean Wyllys do Brasil e sua renúncia ao mandato. Para tanto, comentaremos rapidamente acerca da noção moral de David Hume, a regra do "Imperativo Categórico" da ética kantiana e, por fim, deter-nos-emos quanto à noção de Schopenhauer de uma ética da compaixão, sinalizando para além desta, com uma mensagem de Nietzsche.

Não é nosso objetivo analisarmos detalhadamente as teorias pelas quais tais filósofos fundamentaram suas considerações, mas, tão somente, propor narrativas hábeis ao objetivo proposto de repudiar qualquer comportamento e postura jocosa quanto ao exílio de Jean Wyllys ou casos assemelhados.

David Hume, como empirista desconfiado da capacidade da Razão, sustentava que o valor moral seria o resultado de um sentimento que aprovaria ou não certas ações. Kant, no entanto, é conhecido pela formulação de uma ética normativa pela qual a Razão daria cabo de nos alertar quanto ao valor moral de determinadas condutas. O imperativo categórico seria resultado de uma operação do pensamento, ao universalizar uma conduta hipotética e checar os possíveis resultados, extraindo daí uma sentença ética normativa.

Por Hume, poderíamos concluir que desejar morte a alguém ou zombar-lhe das desventuras é moralmente reprovável. Fazê-lo por mera divergência de opiniões, uma antipatia devido orientação política ou por preconceitos como o referente a homoafetividade, só pode ser execrável. Nenhum sentimento positivo pode advir da ideia de que pessoas possam confabular a morte de outrem, discriminar quem quer que seja, nem mesmo ficar satisfeito que alguém o faça. Um mau sentimento advém de tais ações. Uma Sociedade pensada tendo por modelo de conduta tais ações desperta um sentimento repulsivo e a impressão de que seria uma Sociedade com problemas éticos. Pessoas que agiriam por motivações advindas do ódio, preconceito e egoísmo perfazem uma extirpe capaz de despertar uma impressão negativa, o que permite entende-las como imorais.

Por Kant, teríamos como imperativo ético condenarmos não apenas a prática criminosa de ameaçar outrem de morte, mas também tripudiar e escarnecer de uma situação assaz dramática. Pensemos se todos resolvessem ser intolerantes ao ponto de desejar ou arquitetar assassinatos, seria tão absurdo e incompatível com a vida possível quanto pensarmos que todos poderiam incentivar ao felicitarem-se por aqueles que o fizessem. É imperativo que não ameacemos de morte e que condenemos moralmente quem o faça. A Ética normativa kantiana é bem enfática para deblaterarmos contra os parcimoniosos da ignomínia.

Agora vejamos Schopenhauer. Nossa escolha por este autor é devido à reflexão que nos permite o seu sistema ético no sentido de um convite à introdução de uma carga empática neste árido terreno das discussões políticas. Que uma compaixão refletida possa reforçar nossos laços de cidadãos e estabelecer um sustentáculo a nossa preocupação para com a integridade democrática de nossa nação. Pensarmos a ética e a conduta moral pelo panorama da compaixão parecem-nos um meio pelo qual poderíamos propor uma reflexão sobre nós mesmos e nossa condição enquanto cidadãos brasileiros, todos, vulneráveis, e uns ainda mais.

Para além de toda metafísica e a ontologia imbricada que permeia o edifício filosófico de Arthur Schopenhauer, a leitura que fazemos aqui é uma leitura pragmática e perfunctória, uma leitura de inspiração ao estilo que Richard Rorty faz do "Novo Testamento" e do "Manifesto do Partido Comunista" em seu artigo "Duas Utopias". Temos uma intenção programática: a de uma crítica refletida sobre nós mesmos e o estabelecimento de uma esperança enquanto ideal para a transmutação de nossa realidade, hoje pessimista, para outra mais alvissareira.

Em seu corpo metafísico Schopenhauer fala sobre uma "Unidade do Ser". Este princípio de unidade tomemos como uma analogia ao corpo da nação, embora pudéssemos também tomá-lo sob a ótica da espécie, todos nós humanos sujeitos às mesmas intempéries da existência.

Ora, da mesma maneira que assombrava aos gregos da antiguidade ver um cidadão livre escravizado, portanto destituído de seu "ethos", por que não deveríamos, nós, modernos, que assumimos todos como cidadãos e sujeitos de direitos, também compadecermos de quem deixa a pátria, ameaçado por facínoras? Somos obrigados a replicar a conclusão pela qual se um parlamentar eleito, ao qual estão disponíveis aparatos de segurança e recursos que nós não temos acesso, sente-se ameaçado, inseguro e deixa a nação, só podemos nos considerar, todos, igualmente exilados embora permaneçamos em nossa própria terra.

Apenas os agressores, os maledicentes dos direitos que ativistas como Marielle defendiam, poderiam estar seguros em uma espécie de "estado de exceção" e todos nós deveríamos ver este episódio como o absurdo que é e condená-lo com todas as forças e nos compadecermos de Jean, pois no lugar dele poderia ser qualquer um de nós!

Quem de nós não percebe o quanto vivemos em um lugar perigoso? Quem de nós poderia dizer que é tão privilegiado ao ponto de nenhuma política de inclusão ou ação afirmativa fazer jus aos nossos interesses básicos? Quantos de nós, quantos destes que tripudiam da saída de um parlamentar que sempre enfrentou as forças timocráticas de nosso congresso, poderia dizer que não é um vulnerável? Quem haveria de dizer que esses estultos "trools" da internet pertencem às elites que governam segundo os próprios interesses e rechaçam interesses comuns a todos? Como poderíamos ignorar os dados estatísticos que mencionamos, os quais chancelam a ideia de que há uma guerra intestinal entre certas forças beligerantes contra cidadãos vulneráveis, o Meio Ambiente e os Direitos Humanos?

Aqui é pertinente deixar as palavras de Schopenhauer: "A unica coisa que nos é dada originária e imediatamente é a carência, isto é, a dor. (Schopenhauer, 2001, p.63). Isso é motivo para esperarmos que haja uma conscientização acerca de que devemos compadecermos-nos uns dos outros, pois todos somos de certa forma vulneráveis em um país tão desigual e que há minorias ainda mais desiguais às quais deveríamos acolher e não rechaçar. A escalada por direitos é uma tarefa humana, um ideal a nos unir, um princípio pelo qual devemos buscar inspiração à partir da ideia de que somos sobreviventes que pelejam pelo direito da vida e que hoje nos é possível pensar novos direitos.

A identificação com o outro pela via do sofrimento parece ser um apelo para que, para além de reflexões normativas, consigamos despertar uma empatia entre cidadãos. Que possamos ver mutuamente no outro as agruras cotidianas e o quanto vivemos em uma sociedade desigual. Que possamos tomar inspiração em um texto como "O Mundo como Vontade e Representação" de Schopenhauer de modo a percebermos que as minorias querem tão somente espaço para existir uma vida com "ethos", para além da mera sobrevivência e que em muitos casos até a mera sobrevivência do corpo está constantemente ameaçada. Jean Wyllys e Marielle Franco perceberam isso e por terem-no feito e falado muitos buscaram calá-los. Marielle, pela morte e Jean pelo desterro.

A compaixão que leva a um agir ético é meio pelo qual o indivíduo torna-se capaz de "tomar para si as dores de todo o mundo. (...) Vê, para onde olha, a humanidade e os animais sofredores". Que cada um que fez troça do drama vivido por Jean recorde-se também do assassinato de Marielle, da ameaça ao Freixo ou da facada em Bolsonaro. Perceba assim a vulnerabilidade, o medo, a inexorável morte, sempre tão próxima e pujante perante a efêmera vida. Que cada um, antes de lembrar-se das divergências com Jean quanto propostas políticas e viés ideológico lembre-se do Jean corpo, do Jean humano, filho, amigo, do Jean presente em cada um de nós que neste exato momento poderia estar passando, como muitos estão por uma situação semelhante. Lembrem também do Jean que levantou voz por aqueles que por tanto tempo possuíram apenas o direito a ficarem calados - falamos de transsexuais, prostitutas, falamos de travestis cuja marginalização é quase folclórica, uma alegoria de dor, morte e abandono.

É legítimo e saudável à democracia que tenhamos divergências, múltiplos matizes ideológicos enriquecem a política. Que tenhamos valores morais diversos e que saibamos acolher a diversidade como um elemento enriquecedor da vida é fundamental, certamente uma conquista iluminista. Mas flertarmos com o escárnio perante a morte de alguém, com a perseguição política, com genocídios, preconceitos e intolerância, sob a escusa de estar acolhido por uma opinião, uma militância, uma divergência, é inaceitável sob a ótica de qualquer ética, seja empírica, racionalista, mas sobretudo uma ética fundamentada na ideia da compaixão.

Para além do sentido lúgubre das reflexões de Schopenhauer, devido, sobretudo, partir de um princípio pelo qual todos somos sofredores, lembremos que usamos aqui sua filosofia como uma literatura ensejadora de uma reflexão acerca da necessidade do cultivo da compaixão para o aperfeiçoamento de nossas relações na vida citadina. Não possamos nos esquecer que neste lastro de dor e sofrimento comum a todos, há os mais fragilizados, aqueles que morrem aos borbotões todos os anos e cujas lideranças são perseguidas. A estes, estendamos para além da compaixão o incentivo a tão nobres causas e o engajamento nesta luta que sendo por Direitos Humanos é inerente a todos nós que somos humanos. Aqui seria inspirador tomar a metafísica de Schopenhauer e entendermos a unidade quem encerra a todos enquanto Ser, o Ser-Humano.

Que mesmo nas mais longínquas charnecas deste Brasil, onde a anomia e o abandono possam aterrorizar os mais indefesos, que haja a certeza de que sempre haverá aqueles cuja vida será no sentido da ampliação de círculos de lealdade (Richard Rorty) por meio de laços de confiança na certeza que nenhum brasileiro será desterrado e de que nossa tão fértil terra não seja mais irrigada com o sangue dos que lutam por seus legítimos direitos.

Sejamos humanos, cidadãos brasileiros! Sejamos amigos, leais, compadecidos de suas dores, de seus anseios, sonhos e labores. Que possamos deixar ultrapassar a base melancólica onde se assenta a compaixão de Schopenhauer, enfim triunfantes, mais conscientes, mais humanos; que possamos estender a todos nossos amigos brasileiros, como aqueles a quem queremos bem, uma mensagem de incentivo que aqui extraio de Nietzsche, mas que nosso também amigo Jean Wyllys estendeu à sua maneira, a tantos cidadãos brasileiros que se sentiam não representados e que comungavam apenas sofrimento.

Para uma alegria possível e uma esperança vindoura, "quero torná-los mais corajosos, mais tolerantes, mais simples, mais alegres! Quero lhes ensinar aquilo que hoje tão pouca gente compreende e esses pregadores da compaixão, por sua vez, menos que ninguém: - não mais o sofrimento comum, mas a alegria comum" (Nietzsche, p.205). A redenção de nosso caminho de compreensão da dor para uma esperança na alegria do porvir. A necessidade de assumirmos toda a carga de melancolia decorrente do reconhecimento de nossas misérias, problemas e fragilidades para que, em outro momento, nossa República jamais tenha outros desterrados, que jamais partamos sozinhos para além da fronteira e que nossa Democracia realize seu sublime florescer!


BIBLIOGRAFIA:

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/12/policia-intercepta-plano-para-matar-deputado-marcelo-freixo-psol-no-rio.shtml

https://catracalivre.com.br/cidadania/depois-de-abandonar-o-brasil-jean-wyllys-continua-a-ser-ameacado/

https://oglobo.globo.com/brasil/depois-de-abrir-mao-de-mandato-jean-wyllys-continua-recebendo-ameacas-meu-maior-desejo-te-decapitar-23408827

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Sobre o autor
Fernando Lopes Marim Pereira

Advogado com experiência em grandes empresas, atuando com outros profissionais especialistas em áreas como Direito Civil; Trabalhista; Ações Indenizatórias (inclusive quanto a defesa dos direitos das minorias); Direito de Família; Direito de Imagem; Direito Penal (foco em Tráfico de Drogas, Roubo, Furto E Estelionato) Confira nosso site: https://www.lopesadvogadoseconsultores.com/

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Fernando Lopes Marim. O exílio da moral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5694, 2 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71789. Acesso em: 29 mar. 2024.

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