O pedido de recuperação judicial do grupo Odebrecht, protocolado no último dia 17, é o maior já registrado no país. Foram incluídas na proteção contra credores 21 empresas do grupo, incluindo a holding, com dívidas de R$ 98,5 bilhões.
É relevante, embora potencialmente controverso, o posicionamento do Tribunal de Contas da União, que decidiu por um bloqueio de R$ 1,1 bilhão dos sócios para honrar o pagamento do acordo de leniência celebrado com o governo, agora ameaçado pelo pedido de recuperação.
A quebra da personalidade jurídica da empresa decorre da percepção do TCU de que houve desvio de finalidade no uso dela pelos controladores, que se beneficiaram pessoalmente de sua conduta fraudulenta e por isso devem responder pela reparação de danos com seus patrimônios pessoais.
Os estragos trazidos pela Lava-Jato às empresas envolvidas num dos maiores escândalos políticos já vistos no Brasil chegam a olhos vistos.
A que ponto chegamos?
A maior construtora do país, que já chegou a empregar 193 mil pessoas e a faturar R$ 132 bilhões em um ano, foi dragada num processo grave de corrupção sistêmica, envolvendo promíscuas relações entre o público e o privado, que alimentou um famigerado projeto de poder.
Por 4 x 1, o Tribunal declarou a desconsideração da personalidade jurídica da construtora e da Odebrecht S.A. e decretou por um ano a indisponibilidade de bens necessários para garantir o ressarcimento do débito (no valor de R$ 1,141 bilhões) - incluindo dos herdeiros Emilio e Marcelo Odebrecht.
O revisor, ministro Bruno Dantas, propôs voto-vista no qual considera a superveniência do pedido de recuperação judicial da Odebrecht. Conforme S. Exa., tal situação “coloca em risco” a efetividade dos acordos de leniência do Grupo com o Poder Público.
O ministro apontou a falta de “colaboração efetiva” da empresa perante o Tribunal de Contas, “mesmo em processos nos quais a Construtora Norberto Odebrecht se prontificou a colaborar com este TCU, a exemplo do TC 009.504/2018-4, apartado do TC 016.991/2015-0, que apura danos nas obras de montagem eletromecânica da Usina Termonuclear de Angra III, do qual sou relator”.
O ministro Bruno Dantas destacou a importância de estabelecer a responsabilidade dos acionistas da companhia
que agiram dolosamente para se beneficiar desses atos de corrupção que eram praticados pela empresa executora do contrato, no caso a Construtora Norberto Odebrecht, ou ainda, que tenham se omitido de exercer o controle das atividades.
Não há que se confundir a natureza de sua responsabilidade com a responsabilização direta pela participação em atos de corrupção. Trata-se, aqui, de atos de gestão que se consubstanciaram na utilização da sociedade empresária com finalidade indevida, o que autoriza o levantamento do véu da personalidade jurídica. (...) A forma como a companhia controladora era conduzida e como todo o grupo era utilizado para fins fraudulentos pode ser percebida em diversos processos em curso nesta Corte.
A quebra da personalidade jurídica da empresa decorre da percepção do TCU de que houve desvio de finalidade no uso dela pelos controladores, que se beneficiaram pessoalmente de sua conduta fraudulenta e por isso devem responder pela reparação de danos com seus patrimônios pessoais.
Não há que se confundir a natureza de sua responsabilidade com a responsabilização direta pela participação em atos de corrupção. Trata-se, aqui, de atos de gestão que se consubstanciaram na utilização da sociedade empresária com finalidade indevida, o que autoriza o levantamento do véu da personalidade jurídica. (...) A forma como a companhia controladora era conduzida e como todo o grupo era utilizado para fins fraudulentos pode ser percebida em diversos processos em curso nesta Corte.”
O ministro se disse convicto de que o desvio de finalidade e abuso de personalidade jurídica não ocorre pontualmente, por empreendimento, mas sim “verdadeiro modus operandi” de gerir a empresa.
Especificamente no que se refere aos presentes autos, não é razoável supor ou alegar que que práticas ilícitas adotadas em um contrato que atingiu a cifra de R$ 2,4 bilhões, a preços de 2007, não fossem do conhecimento das controladoras da CNO ou de seus dirigentes. Aliás, todos os indícios conduzem ao entendimento que a orientação do grupo era nesse sentido.
Disse o ministro naquele julgamento:
Insta destacar que a Construtora Norberto Odebrecht não foi incluída no rol de empresas do grupo Odebrecht que requereu recuperação judicial. Nesse contexto, a medida de constrição patrimonial pode ser adotada diretamente por este Tribunal.
Aplica-se aqui a desconsideração da personalidade jurídica, a disregard doctrine
É sabido que o patrimônio da pessoa jurídica não se confunde com o da pessoa física.
Desconsidera-se a separação patrimonial existente entre o capital de uma empresa e o patrimônio de seus sócios para os efeitos de determinadas obrigações, com a finalidade de evitar sua utilização de forma indevida, ou quando este for obstáculo ao ressarcimento de dano causado ao consumidor.
Sabe-se que o mais curioso é que a disregard doctrine não visa anular a personalidade jurídica, mas somente objetiva desconsiderar no caso concreto, dentro de seus limites, a pessoa jurídica, em relação às pessoas ou bens que atrás dela se escondem. É o caso da declaração de ineficácia especial da personalidade jurídica para determinados efeitos, prosseguindo, todavia, a mesma incólume para outros fins legítimos.
Wormeser, jurista americano, desde 1912, versou a doutrina, procurando delinear o seu conceito, professando que "quando o conceito de pessoa jurídica(corporate entity) se emprega para defraudar os credores, para subtrair-se a uma obrigação existente, para desviar a aplicação de uma lei, para constituir ou conservar um monopólio ou para proteger velhacos ou delinquentes, os tribunais poderão prescindir da personalidade jurídica e considerar que a sociedade é um conjunto de homens que participam ativamente de tais atos e farão justiça entre pessoas reais".
Pedro Batista Martins(Abuso do direito e o ato ilícito) resumiu essa situação de abuso da seguinte forma: "O titular de um direito que, entre vários meios de realizá-los, escolhe precisamente o que, sendo mais danoso para outrem, não é o mais útil para si, ou mais adequado ao espírito da instituição, como, sem dúvida, um ato abusivo, atentando contra a justa medida dos interesses em conflito e contra o equilíbrio das relações jurídicas".
Daí virou, nos tribunais americanos e nos tribunais germânicos, uma constante que entendeu pelo levantamento do véu da personalidade jurídica, pela aplicação dessa teoria estudada. Mas ela tem um verdadeiro caráter excepcional.
É certo que o artigo 350 do Código Comercial é assim visto:
Art. 350 - Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados todos os bens sociais.
Ora, como ensinou Rubens Requião(obra citada, pág. 72), " o direito, enfim, foi criado em atenção ao indivíduo, tendo por objeto ordenar sua convivência com outros indivíduos. O exercício de seus direitos, embora privados, deve atender a uma finalidade social. A função social do direito, que se refere, sobretudo aos contratos e à propriedade, deve pelo indivíduo ser atendida".
O artigo 50 do Código Civil de 2002 dá dois requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica: abuso de personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou a confusão patrimonial. Assim, somente estas situações justificariam a desconsideração, que deve ser reconhecida por decisão judicial.
Desvio indica o “uso indevido ou anormal”, visto que “o sócio que detém a liberdade de iniciativa de se servir de uma personalidade jurídica, distinta dos membros que compõem a pessoa jurídica, emprega seus esforços para dar outro destino à tal personalidade. Observa-se assim que, para que ocorra o desvio de finalidade, o exercício da personalidade jurídica deve ser abusivo, direcionado a um fim estranho à sua função.
Fábio Konder Comparato (O poder de controle na sociedade anônima, 1976, pág. 293/294) ensina que:
A confusão patrimonial entre controlador e sociedade controlada é, portanto, o critério fundamental para a desconsideração da personalidade jurídica externa corporis. E compreende-se, facilmente, que assim seja, pois a pessoa jurídica nada mais é, afinal, do que uma técnica de separação patrimonial. Se o controlador, que é o maior interessado na manutenção desse princípio, descumpre-o na prática, não se vê bem porque os juízes haveriam de respeitá-lo, transformando-o, destarte, numa regra puramente unilateral.
Ainda pode-se ter a desconsideração da personalidade jurídica, mediante a execução fiscal em todos os âmbitos, matéria regida pela Lei 6.830/80.
Já em relação ao Código de Defesa do Consumidor, os requisitos estão apresentados no art. 28, quais sejam: abuso de direito; excesso de poder; infração da lei; ato e fato ilícito e; violação dos estatutos e contratos. Há também a modalidade de desconsideração trazida pela má administração da empresa que seria: falência; insolvência; encerramento e; inatividade.