Em 12 de novembro passado, o Superior Tribunal de Justiça rejeitou o recurso de um homem denunciado por matar a esposa estrangulada após uma festa. O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogerio Schietti Cruz repudiou o argumento da defesa segundo o qual a vítima teria adotado "atitudes repulsivas" e provocativas contra o marido, o que justificaria o reconhecimento de legítima defesa da honra e a absolvição sumária do réu.
De acordo com o processo, durante uma festa, a vítima teria dançado e conversado com outro rapaz, o que gerou a ira e despertou os ciúmes do marido, que estaria alcoolizado. Ela também teria dito que queria romper o relacionamento. Em casa, o homem pegou uma corda e laçou o pescoço da mulher, matando-a por asfixia.
Após a instrução processual, o magistrado proferiu decisão determinando que o réu seja julgado no tribunal do júri pela prática de homicídio qualificado (motivo fútil, asfixia, recurso que dificultou a defesa da vítima e feminicídio). A decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que rejeitou o pedido de absolvição sumária com base em legítima defesa da honra.
No recurso dirigido ao STJ, a defesa alegou que as atitudes da vítima ao longo de muitos anos causaram danos graves à honra do marido, deixando-o abalado psicologicamente e fazendo despertar a impulsividade e a violenta emoção que levaram à prática de "atos primitivos".
Ainda segundo a defesa, muito embora a materialidade do crime e a autoria sejam indiscutíveis, haveria uma causa excludente de ilicitude, na modalidade legítima defesa da honra. Por isso, pediu o reconhecimento dessa excludente e, consequentemente, a reforma da decisão que mandou o réu ao júri.
O ministro Rogerio Schietti disse que razões processuais impedem o conhecimento do recurso (Súmula 182 do STJ). Ainda assim, ele lembrou que, pelo menos desde 1991, o tribunal refuta com veemência a tese de legítima defesa da honra como fundamento para a absolvição em casos de homicídio cometido pelo marido contra a esposa.
A propósito, a tese da legítima defesa da honra é bem antiga. Os mais velhos se recordam, por exemplo, do emblemático caso Doca Street ocorrido no final da década de 70. Em apertada síntese, Raul Fernando do Amaral Street (o playboy Doca Street) namorou por 4 meses com Ângela Maria Fernandes Diniz (uma socialite brasileira).
Em 30 de dezembro de 1976, eles estavam em Búzios (RJ) para passar o ano novo, quando tiveram uma forte discussão em decorrência do ciúme de Doca em relação ao comportamento de Ângela Diniz.
Angela chegou a terminar o relacionamento com Doca, mas ele, de joelhos, chorando, suplicou pelo seu amor, quando então ela lhe faz uma imposição:
Eu te perdoo, mas você terá que me dividir com homens e mulheres.
Inconformado, Doca simplesmente lhe respondeu: "Se você não vai ser minha, não será de mais ninguém e, ato contínuo, desferiu-lhe 4 tiros a queima roupa”.
No 1º julgamento do Tribunal do Júri (outubro de 1979), Doca é defendido pelo Ilustre advogado Evandro Lins e Silva (ex-Ministro do Supremo cassado pelo AI-5) que sustentou em plenário a tese da: legitima defesa da honra devido ao comportamento "libertário" da vítima.
Réu confesso ele pegou a pena de 2 anos de prisão. Apenas no 2º julgamento, Doca foi condenado a 15 anos em regime fechado, onde se levantou a celebre tese de: “Quem ama não mata".
Com base nas situações acima, são cabíveis algumas ponderações:
Em primeiro lugar, não se pode olvidar o direito de toda pessoa ser defendida por um advogado (art. 5, LXIII), profissão, aliás, indispensável à administração da justiça (art. 133, CF). Além disto, é direito fundamental da pessoa acusada o direito ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LV), com muito mais reforço e ênfase nos casos de crimes dolosos contra a vida, visto que a plenitude de defesa constitui um dos dogmas do Tribunal do Júri (art. 5º, XXXVIII, "a", da CF).
Por outro lado, é triste e inegável o ciclo histórico de violência e brutalidade contra a mulher. São sempre as mesmas circunstâncias: ciúmes, sentimento de posse e perpetração de violência do homem em relação à mulher. Detalhe: violência que independe de classe social, isto é, retrata a infeliz realidade sofrida pelo gênero feminino, sejam pessoas ricas ou pobres.
É verdade que o nosso Código Penal, em seu art. 121, §2º já punia os casos de homicídio qualificado com as penas de 12 a 30 anos. Posteriormente, no ano de 2015, houve a inserção pela Lei federal n.º 13.104 da figura de uma nova forma de homicídio qualificado chamada “Feminicídio” (assassinato de mulheres por razões de gênero), contendo, inclusive, causas específicas de aumento de pena nos termos do §7º do art. 121 do mesmo Código Penal.
Jamais podemos nos esquecer também da valiosa e indispensável conquista trazida pela chamada “Lei Maria da Penha” no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher.
Encaminhando-me à conclusão, destaco que na semana retrasada (06/11/19), o Senado Federal manifestou parecer favorável à PEC n.º 75/2019 que prevê a imprescritibilidade dos crimes de feminicídio. Noutras palavras, com a mudança pretende-se que o assassinato de mulheres por razões de gênero seja um crime que nunca prescreva, isto é, possa ser apurado independentemente do prazo e período em que foi praticado.
Em suma, fica aí um desafio para a nossa reflexão, não apenas advogados, promotores e juízes, mas todas as pessoas da sociedade que, no final das contas, estão “expostas” a essas práticas, até mesmo porque, refletir e discutir democraticamente constitui um exercício de cidadania.