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A empresa na pandemia coronavírus:

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21/03/2020 às 10:50
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Apresentam-se recomendações de medidas trabalhistas e também de prorrogação de dívidas das empresas causadas pela pandemia coronavírus.

1. INTRODUÇÃO

O mundo passa por um evento avassalador. A Coronavírus (COVID-19) é uma pandemia (enfermidade com ampla disseminação internacional) que atinge indiscriminadamente toda a população. Embora tenha taxa de letalidade relativamente baixa, é altamente contagiosa. O principal efeito, do ponto-de-vista econômico, está no impacto que provoca no sistema de saúde, que não tem estrutura para suportar o alto volume da demanda.

E não é apenas a fase dos resultados negativos (contágio, doença e morte) que tem efeitos nefastos, mas a fase antecedente, de prevenção, já é terrivelmente lesiva. Isto porque a principal medida é o isolamento social, e isto implica a ausência de pessoas nos locais de trabalho, produzindo, ou ainda nos locais de comércio, consumindo.

Em suma, o que se tem é a paralisação generalizada da maior parte da força econômica do país. Por certo que qualquer empresa que seja forçada a paralisar suas atividades por alguns dias, talvez semanas ou meses, dificilmente resistirá ao revés daí decorrente. A quebra é iminente, a não ser que medidas compensatórias sejam promovidas. Este artigo propõe algumas soluções na seara trabalhista e com relação às relações com credores, no que diz respeito às dívidas da empresa.

Trata-se de uma situação anormal, de extrema gravidade, que caracteriza o que se denomina juridicamente “força maior”, evento imprevisível e independente da vontade humana. A situação comporta a aplicação de excepcionalidades da lei.

Em virtude deste contexto, recomenda-se algumas medidas imediatas, sem prejuízo de outras no decorrer deste período.


2. MEDIDAS GERAIS

Em caso de empregado infectado, este deverá ser submetido imediatamente a isolamento, que nos termos da lei é a “separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus”.

Já a quarentena é, pela lei, a “restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus.”

A lei prevê ainda que pode ser determinada a realização compulsória de exames e tratamentos. Mas estas medidas coercitivas são prerrogativas de autoridades de saúde, no âmbito das empresas isto não é possível desta forma. O que a empresa pode fazer, para preservar a incolumidade dos trabalhadores e a saúde geral, é proibir a presença de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção, no ambiente de trabalho compartilhado com outras pessoas, sempre cuidando de respeitar a dignidade humana.

Vale ressaltar: a lei exige que qualquer pessoa que tenha informação sobre caso de infecção ou suspeita tem a obrigação de informar as autoridades de saúde.

A empresa deve seguir rigorosamente as orientações das autoridades de saúde, especialmente orientando e informando a todos sobre os procedimentos adequados.

Não apenas por uma questão de humanidade, afinal, nem tudo se circunscreve a interesses econômicos, mas também porque a empresa pode ser responsabilizada em caso de danos materiais ou morais a quem vier a ser lesado por conta de inobservância das regras.


3. MEDIDAS TRABALHISTAS

3.1. DEFINIÇÃO DA ESTRATÉGIA

De início a empresa deve avaliar os prós e contras e definir o caminho a seguir. São algumas opções, todas baseadas na lei, que vão ser mais ou menos adequadas conforme cada caso.

Tem-se como base normativa para essas hipóteses a Constituição Federal (CF), especialmente o art. 170, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em especial arts. 2° e 8°, e a lei 13.979/2020, que trata de medidas emergenciais relativas ao Coronavírus.

Depois de escolhidas as alternativas, devem ser colocadas em prática, sempre com ampla documentação e registro de tudo o que for feito, como forma de minimizar riscos e garantir ao máximo a segurança jurídica da empresa.

3.2 FÉRIAS INDIVIDUAIS

É possível dar férias individuais, e o momento fica a critério da empresa (CLT, art. 136). Embora a lei imponha uma antecedência de 30 dias para a comunicação ao empregado (CLT, art. 135), isto pode ser relativizado em face das circunstâncias e prevalência do interesse público (CLT, art. 8°), desde que haja real necessidade para a empresa, devendo constar a motivação no aviso de férias. Demais obrigações continuam vigentes, como o pagamento antecipado.

3.3 FÉRIAS COLETIVAS

Da mesma forma, as férias podem ser concedidas coletivamente, seja para todo o conjunto de empregados, seja para determinados setores, sempre conforme a necessidade da empresa. O período mínimo de dez dias (CLT, art. 139, § 1°) e o aviso com antecedência (CLT, art. 139, § 2°) podem ser flexibilizados.

3.4 INTERRUPÇÃO REMUNERADA COMPENSADA

Caso a empresa não possa ou não pretenda conceder férias individuais ou coletivas e os empregados deixem de comparecer, esta ausência poderá ser considerada justificada. A interrupção do contrato, motivada pela pandemia, pode ser compensada no retorno dos empregados, com a realização de duas horas extras por dia durante até 45 dias, o que totaliza 90 horas de compensação (CLT, art. 61, § 3°). Mas esta opção só será adotada se a empresa não preferir o sistema de banco de horas.

3.5 COMPENSAÇÃO POR BANCO DE HORAS

O banco de horas semestral é realizado diretamente entre empresa e empregado. Já o anual depende de acordo ou convenção coletiva. E ainda há a compensação de jornada, no período mensal, por acordo individual.

 3.6 TELETRABALHO (HOME OFFICE)

O teletrabalho (CLT, art. 75-A e seguintes) pode ser adotado neste período, quando possível. Deve ser formalizado, por escrito, em aditamento ao contrato de trabalho. O empregado não pode se recusar sem uma séria justificativa. No aditivo deve constar o compromisso do empregado em seguir as instruções da empresa.

3.7 AFASTAMENTO POR DOENÇA

Em caso de empregado infectado, o afastamento será considerado como motivado por doença decorrente de atividade profissional. Assim, aplica-se a sistemática do auxílio previdenciário, com responsabilidade da empresa pelos primeiros quinze dias e pelo INSS a partir de então.

3.8 RESCISÃO DO CONTRATO

Há entendimentos de que, considerando o contexto da pandemia, a rescisão contratual poderia ser realizada com redução de metade da multa, por força – e forçando a hermenêutica – do art. 501 e 502 da CLT.

Prefere-se, contudo, não adotar esta via, já que o dispositivo mencionado é aplicável para a hipótese de extinção da empresa ou estabelecimento, e o escopo deste trabalho é a verificação de medidas para empresas em atividade.


4. MEDIDAS COMERCIAIS

4.1 REBUS SIC STANTIBUS

Existe um instrumento jurídico no Código Civil que permite a resolução ou modificação das condições de um contrato, desde que seja de prestação diferida (ou seja, não à vista) ou continuada.

Esta resolução por onerosidade excessiva está prevista nos arts. 478 a 480 do Codex e é velha conhecida do mundo jurídico, muito antes do Código Civil (CC), como Teoria da Imprevisão, que tem por base a cláusula rebus sic stantibus (enquanto as coisas estão assim).

Como este texto não tem por escopo aprofundar o tema, basta dizer que esta cláusula resolutiva, que já se empregava antes mesmo de estar prevista em lei e que se aplica ainda que não prevista no contrato, exige alguns requisitos. São eles: a) o diferimento ou a sucessividade na execução do contrato; b) alteração nas condições circunstanciais objetivas em relação ao momento da celebração do contrato; c) excessivas onerosidade para uma parte contratante e vantagem para outra; d) imprevisibilidade daquela alteração circunstancial; e) o nexo causal entre a onerosidade e vantagem excessivas e a alteração circunstancial objetiva; f) a inimputabilidade às partes pela mudança circunstancial; g) a imprevisão da alteração circunstancial.

Dito isto temos que “rebus sic stantibus pode ser definida como a cláusula que permite a revisão das condições do contrato de execução diferida ou sucessiva se ocorrer em relação ao momento da celebração mudança imprevista, razoavelmente imprevisível e inimputável às partes nas circunstâncias em torno da execução do contrato que causem desproporção excessiva na relação das partes, de modo que uma aufira vantagem exagerada em detrimento da desvantagem da outra.” (Zunino Neto, Nelson. Pacta sunt servanda x rebus sic stantibus: uma breve abordagem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 31, 1 maio 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/641. Acesso em 16 mar. 2020.)

A pandemia Coronavírus (COVID-19) é certamente, na mais singela avaliação, uma hipótese de força maior.

O Código Civil trata da irresponsabilidade do devedor em casos de força maior e a conceitua como fato necessário e inevitável. Embora este dispositivo não se refira à imprevisibilidade, tal característica é absolutamente reconhecida na doutrina e na jurisprudência como essencial.

A cláusula rebus sic stantibus não está necessariamente atrelada à força maior, mas a fatos extraordinários, o que de qualquer modo se faz presente.

Em se tratando de obrigações, em especial aquelas obrigações ordinárias das empresas, é preciso verificar se a cláusula resolutiva (rebus sic stantibus) terá força bastante para se sobrepor à obrigatoriedade dos contratos (pacta sunt servanda).

Não há dúvida de que estão presentes os requisitos objetivos, como a ocorrência de fato extraordinário imprevisto e imprevisível. Mas é preciso verificar, caso a caso, se na relação das partes haverá reflexo que possa tornar desproporcional a execução do contrato, resultando em vantagem/desvantagem exagerada. Pois bem.

Para uma empresa que tenha saúde financeira íntegra, alta liquidez e sólida conjuntura no momento da ocorrência, é possível que não haja desproporção, ou onerosidade excessiva para o cumprimento da obrigação. Já para uma empresa que, embora em dia com suas obrigações, vá ficar com saldo devedor ou desprovida de recursos para a manutenção ordinária de suas atividades, o cumprimento da obrigação será afetado a ponto de se caracterizar a excessividade. Não se poderia admitir, por exemplo, que a empresa deixasse de cumprir suas obrigações trabalhistas, que são prioritárias não apenas por imposição legal mas pela natureza humanitária.

Mas é claro que a incidência da teoria da imprevisão não tem o condão de afastar as obrigações em definitivo. Trata-se de uma aplicação proporcional e, para tanto, invoca-se aqui dois conhecidos princípios, razoabilidade e proporcionalidade, este último mais como instrumento de ponderação. A função da rebus sic stantibus é manter o equilíbrio, o que não aconteceria com a mera desobrigação.

No caso de uma dívida em que estejam presentes as condições para a cláusula referida, o equilíbrio poderá ser alcançado com a dilação do prazo para cumprimento da obrigação. O que se tem aqui, portanto, é a suspensão da exigibilidade da obrigação.

Num primeiro momento se tende a pensar que a prorrogação do prazo poderia ser exatamente proporcional ao tempo de duração do evento extraordinário. Assim, estaria suspensa a exigibilidade enquanto persistente a pandemia. Entretanto, a questão não se restringe ao período, porque as consequências da paralisação são mais complexas.

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A pandemia tem diversos desdobramentos, desde a perda de vidas humanas até a paralisação total de atividades, com bloqueio de faturamento. Os efeitos, portanto, se dão em cadeia e se estendem por mais tempo que a duração da causa.

Não por acaso instituições bancárias concederam prorrogação de vencimento de débitos para pessoas físicas, e micro e pequenas empresas, por 60 dias. A par de representar uma medida elogiável, sinaliza que os bancos reconhecem a onerosidade decorrente da pandemia e que entendem que os seus efeitos tem um prazo bem maior que o inicialmente estimado para sua duração.

Não há uma fórmula matemática para definir o prazo da moratória, e isto deve ser resolvido a cada caso, mas desde logo é possível buscar na legislação um parâmetro que possa balizar o cálculo. Trata-se do disposto no art. 916 do Código de Processo Civil, que permite ao devedor o parcelamento da dívida em seis meses, desde que paga uma parcela inicial de 30% do montante.

Considerando que esta é uma viabilização prevista em lei para situação de normalidade, não há porque desconsiderá-la como alternativa em situações extraordinárias.

Assim, pode-se concluir, como uma base para a aplicação da teoria da imprevisão, pela possibilidade de suspensão da exigibilidade da obrigação pelo prazo da pandemia, com a possibilidade de seu parcelamento em até seis prestações atualizadas a partir do fim do evento, desde que presentes todos os requisitos da cláusula, especialmente as condições das partes.

É imprescindível, claro, considerar a função social do contrato e o inafastável princípio da boa-fé, que serve tanto para aplicação da cláusula em questão quanto para impedir o abuso por parte de devedor que eventualmente não tenha sido realmente afetado com gravidade. Não há previsão específica na lei, e inexistindo acordo a questão só poderá ser resolvida judicialmente.

Apenas para registro, a prescrição da dívida não correrá durante a suspensão da exigibilidade da obrigação, considerando-se, obviamente, que a regra não poderá beneficiar indevidamente uma das partes quando justamente incide para reequilibrar. Neste sentido é possível aplicar o disposto no art. 199, I, do CC, que considera a pendência de condição suspensiva, já que a cláusula rebus sic stantibus tem aplicabilidade justamente como elemento de condição contratual.

O que se apresenta é uma proposição, baseada no conceito jurídico da teoria da imprevisão, da cláusula da resolução por onerosidade excessiva e respectiva possibilidade de alteração nas condições contratuais, conforme prevê o Código Civil. É um norte, um parâmetro inicial para quem está perdido em meio a esta calamidade pública que afetou o mundo inteiro. O que se recomenda é cautela e muita negociação.

4.2 DÍVIDAS FISCAIS E BANCÁRIAS

Os poderes públicos estão editando medidas legais para corrigir os efeitos econômicos da pandemia com relação a dívidas tributárias, como é o caso da Portaria 103/2020, do Ministério da Economia, que trata de suspensão e prorrogação de cobrança de dívida ativa da União.

Outros atos certamente serão publicados nos próximos dias. Mas tudo o que há sobre rebus sic stantibus a respeito de dívidas comuns se aplica a esses débitos tributários e também às dívidas fiscais.

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Sobre o autor
Nelson Zunino Neto

Advogado, pós-graduado em Direito Eleitoral e em Direito Ambiental, atuante principalmente em Direito Eleitoral, Empresarial, Administrativo e Civil. Autor do livro Tempo mínimo de propaganda eleitoral em rádio e tv, 2020.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZUNINO NETO, Nelson. A empresa na pandemia coronavírus:: o que fazer com empregados e dívidas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6107, 21 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80298. Acesso em: 16 abr. 2024.

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