O COVID-19, popularmente conhecido como Coronavírus, atualmente tem sido o ator principal de todos os cenários da sociedade, isso porque, seus efeitos atingem não apenas a saúde pública, mas também afetam a economia de modo geral em razão de sua alta transmissibilidade e da necessidade de reclusão dos cidadãos, para que nos mantenhamos afastados do convívio social e, assim, evitemos que o contagio tome proporções ainda maiores.
A OMS – Organização Mundial da Saúde, registra até o momento mais de 350 mil casos da doença, desse total, há quase 17.000 casos em que a doença levou a óbito.¹
Deste modo, o momento se mostra delicado e requer muitos cuidados para que possamos resolver este problema de proporções globais que ameaça a saúde de todos e, apenas com a união de esforços e solidariedade, será possível mantermos a nossa sobrevivência e a daqueles que amamos.
Assim, será necessário deixar para o futuro a resolução de diversas outras questões relacionadas ao trabalho, estudo, treinamento, lazer, enfim, qualquer coisa que não esteja relacionada à proteção contra o risco iminente de contágio.
Entretanto, considerando que este ainda não seja o fim da humanidade no Planeta Terra e que, em algum momento as coisas voltarão ao normal, surge o seguinte questionamento: Como será possível cumprir as obrigações contratuais pactuadas antes da Pandemia se instalar sendo que as condições para seu cumprimento se mostram absolutamente diversas daquelas determinadas no momento da contratação?
AVALIANDO AS REVISÕES CONTRATUAIS
Primeiramente, para responder a questão é necessário definir quais contratos podem ser revistos ou resolvidos. Assim, é importante ressaltar que apenas os contratos de execução continuada, que são aqueles em que a obrigação é cumprida através de atos reiterados e sucessivos podem ser beneficiados por esses institutos, isso porque, o pacto contratual de longo prazo entre as partes levará em consideração para sua interpretação, as condições estabelecidas no ato da contratação projetando-as para o futuro, determinando assim, qual será a lei em vigor entre as partes durante o período em que o contrato produzir efeitos.
Isto decorre do princípio da força vinculante dos contratos, representada pela expressão em latim Pacta Sunt Servanda, que significa “Os pactos devem ser respeitados” e prestigia a autonomia da vontade das partes e garante segurança jurídica ao negócio celebrado. Ocorre que, fatos imprevisíveis como a pandemia do COVID-19 que assola o mundo atualmente, podem tornar o contrato extremamente oneroso a uma das partes fazendo com que a outra aufira lucro indevido diante das circunstâncias
Diante disso, o princípio da força vinculante dos contratos é relativizado pela cláusula REBUS SIC STANTIBUS, expressão em latim que traduzida representa algo como “Estando as coisas assim”, isso significa que enquanto as condições estabelecidas no momento do pacto se mantiverem, o contrato será obrigatório naqueles termos, mas, se as condições mudarem, o pacto também deverá mudar.
Assim, para que a teoria da imprevisão tenha aplicabilidade ao caso concreto, em tese, é necessária a presença de três elementos constitutivos que se complementam, são eles:
1-) A ocorrência de um fato superveniente a celebração do contrato que seja absolutamente imprevisível;
2-) O fato superveniente e imprevisível deve gerar a alteração da base econômica objetiva do contrato;
3) A alteração da base econômica objetiva do contrato deve gerar onerosidade excessiva a uma das partes, entretanto, este elemento pode ser relativizado se compararmos o Código Civil e o Código de Defesa;
A título de exemplo, imagine um contrato de locação empresarial entre determinado lojista e algum Shopping Center de sua cidade, é fato notório que todos os espaços públicos estão fechados neste período para evitar o contágio pelo COVID-19, os lojistas estão proibidos de trabalhar e, portanto, não tem qualquer lucro. Em contrapartida, o proprietário do imóvel onde está instalado este Shopping Center tem direito a receber pelo aluguel mensal, porém, sem que o bem locado esteja disponível ao locador, situação que demonstra quebra do sinalagma contratual e merece adequação, sendo perfeitamente aplicáveis os conceitos abordados até aqui para que se restabeleça o equilíbrio em o bônus e o ônus contratual.
A REVISÃO CONTRATUAL NO CÓDIGO CIVIL
O Código Civil Brasileiro traz no artigo 317 a afirmação de que “quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”.
Ainda neste sentido, os artigos 478 e 479 apontam duas alternativas para resolver a questão e trazem os seguintes dizeres respectivamente “nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.” e “a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato”, assim, o entendimento que se extrai da interpretação dos artigos acima é que em todas as oportunidades em que um contrato de execução continuada sofrer desequilíbrio por conta de um fato imprevisível as partes, poderá a parte prejudicada suscitar a resolução do contrato ou a sua revisão de modo a garantir os seus interesses a longo prazo, uma vez que a manutenção pode ser interessante considerando que passamos por uma fase ou, se você é mais pessimista, pode querer resolver o contrato e não ter mais qualquer obrigação, sendo que ambas as possibilidades são plenamente possíveis, não apenas para contratos de locação, mas para qualquer contrato de longa duração que tenha sofrido tal desequilíbrio por conta da Pandemia que estamos atravessando
A REVISÃO CONTRATUAL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
O Código de defesa do consumidor, por sua ver, traz a aplicação da teoria da onerosidade excessiva em favor do consumidor, pois, diante da dispensável imprevisibilidade apontada no artigo 6º, inciso V do referido diploma, a doutrina e a jurisprudência denominam-na desta maneira.
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(…)
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
A REVISÃO CONTRATUAL E LEI DA LIBERDADE ECONÔMICA (LEI 13.874/19)
Diante da alteração legislativa imposta pela Lei da Liberdade Econômica 13.874/19 à interpretação dos contratos foi alterada a fim de prestigiar novos princípios alterando o dispositivo do artigo 421 do Código Civil lhe acrescentando o parágrafo único que estabelece o princípio da intervenção mínima nos contratos em obediência à sua força vinculante, entretanto, prevê que excepcionalmente será possível a revisão contratual. Vejamos:
Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
É certo que a Pandemia do Corona vírus irá afetar a execução de diversos contratos, deste modo, a revisão contratual torna-se fundamental para a manutenção do vínculo em muitos casos e, ainda que cada caso mereça uma análise minuciosa e específica, não se pode negar que as circunstâncias são excepcionais e absolutamente imprevisíveis.
Assim, o art. 421-A que também foi inserido no Código Civil pela Lei da Liberdade Econômica 13.874/19, estabelece que há a possibilidade de revisão contratual de forma excepcional e limitada. Vejamos:
Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:
III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.
Nestes termos, a revisão ou resolução contratual sob o argumento de que a Pandemia do Corona Vírus se caracteriza como uma excepcionalidade absolutamente imprevisível pode ser comprovada diante das atuais políticas públicas para contenção do vírus que também são absolutamente excepcionais.
Enunciados da IV Jornada de Direito Civil:
Os enunciados 365 e 366 da IV Jornada de Direito Civil promovem a discussão sobre uma proposição interpretativa sobre o artigo 478 do Código Civil, resultando em enunciados que nos auxiliam em sua aplicação. Vejamos:
365 Art. 478. A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração de circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena.
366 Art. 478. O fato extraordinário e imprevisível causador de onerosidade excessiva é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação.
Por fim, a pandemia do Corona Vírus pode ser considerada como um fato absolutamente imprevisível e excepcional no que diz respeito à contratos e, portanto, pode dar ensejo a aplicabilidade da teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva, a depender do caso, revisando seus termos e o modificando o contrato equitativamente conforme o art. 421, parágrafo único, art. 421-A e, art. 479, do Código Civil e art. 6º,inciso V, do Código de Defesa do Consumidor ou, resolvendo o contrato nos termos do artigo art. 478 do Código Civil, garantindo assim, o restabelecimento da harmonia na relação entre as partes, da certeza do direito e da segurança jurídica.
¹https://noticias.r7.com/saude/oms-atualiza-numeros-da-pandemia-372-mil-casos-e-16231-mortos-24032020