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Acordo de não persecução penal na audiência de custódia:

uma necessária ponderação entre economicidade processual e garantias fundamentais do flagranteado

26/05/2020 às 16:10
Leia nesta página:

A precoce realização do ANPP na audiência de custódia, prática que já vem sendo adotada pelo Ministério Público, deixa de observar direitos fundamentais e pode ensejar nulidades.

O acordo de não persecução penal (ANPP), inicialmente previsto no art. 18 da Resolução no 181/2017 do CNMP e legalizado pela Lei 13.964/19 (Pacote Anticrime), que o inseriu no art. 28-A do CPP, é instituto de “justiça negociada”, cuja proposta cabe ao Ministério Público.

O ANPP já começou a ser celebrado, apesar de enormes dúvidas acerca de seus requisitos e de sua aplicabilidade. Dentre elas, está a criticável realização do acordo já na audiência de custódia[1], que enseja o sopesamento entre economicidade processual e garantias fundamentais do preso. E é objeto deste artigo.

A audiência de custódia, inicialmente regulamentada pela Resolução n. 213 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e agora sistematizada pelo Pacote Anticrime (art. 310 do CPP), consiste na apresentação imediata do preso em flagrante ao juiz, na presença de um defensor (público, dativo ou constituído) e do representante do MP. Sua finalidade pode ser retirada da simples leitura do art. 310/CPP, mas, especifica Renato Brasileiro[2]:

Em prática em inúmeros países, dentre eles Peru, Argentina e Chile, a audiência de custódia tem 2 (dois) objetivos precípuos: 1) coibir eventuais excessos como torturas e/ou maus tratos, verificando-se o respeito aos direitos e garantias individuais do preso, 2) conferir ao juiz das garantias, no caso da prisão em flagrante, uma ferramenta mais eficaz para fins de convalidação judicial (...) (BRASILEIRO, 2020, p. 1.018). 

Nota-se estar a audiência de custódia voltada à análise da legitimidade do flagrante e à garantia dos direitos do flagranteado, devendo o juiz, de acordo com o caso, relaxar a prisão ilegal, decretar a prisão preventiva (ou temporária) ou conceder liberdade provisória. Daí, extrai-se o primeiro e mais genérico argumento para a impossibilidade de realização do ANPP neste primeiro momento: ele, simplesmente, não está incluído na finalidade nem no processamento da audiência de custódia.

Além disso, indispensável lembrar que os presos em flagrante chegam para apresentação ao juízo, na maioria das vezes, em condições precárias. Bêbados, sujos, inconscientes, incapazes de entender o que está acontecendo e, obviamente, totalmente impossibilitados de firmar qualquer tipo de acordo com o Estado (representado, no caso, pelo MP). Recorrer a institutos negociais neste momento, portanto, fere frontalmente o princípio constitucional da dignidade humana.

Agride também o direito indisponível e irrenunciável à defesa técnica, pois a precária estrutura da Defensoria Pública em nosso país inviabiliza que os muitos flagranteados[3] sejam devidamente assistidos e tenham seus autos de prisão em flagrante (APF) estudados, em tempo hábil, antes da audiência de custódia – que, conforme art. 310/CPP deve ocorrer em até 24 (vinte e quatro) horas após a prisão.

Esse prazo é notório e extremamente exíguo para que o preso escolha por quem quer ser assistido e para que a defesa reflita sobre as melhores estratégias a serem adotadas. Pode ser, por exemplo, que, após a entrevista, o defensor identifique uma excludente de culpabilidade, de ilicitude ou qualquer outra tese defensiva, muito mais favorável ao réu que os compromissos a serem por este assumidos com a celebração de um ANPP.

Ou seja, um acordo de justiça negociada exige tempo (com certeza superior a vinte e quatro horas), exige atenção, cuidado e respeito aos direitos do preso. Realizá-lo já nesta fase inicial, como já tem sido feito pelo parquet, confere enorme discricionariedade ao MP e coloca a defesa em posição muito inferior, deixando de observar o contraditório e a ampla defesa, obrigatórios no âmbito do devido processo penal constitucional.

Esta necessidade de paridade de armas está, inclusive, implícita na própria natureza de um “acordo” que, além disso, pressupõe bilateralidade, orientação e vontade, consciente e manifesta, de ambas as partes. Requisitos difícil, para não dizer impossivelmente, observados no âmbito de uma audiência de custódia.

Os argumentos daqueles que se posicionam pela compatibilidade dos institutos baseiam-se na economia processual, já que não seriam necessários outros atos processualistas diante da precoce e apressada conciliação entre acusação e defesa. 

Ocorre que o desrespeito aos direitos fundamentais do preso e a falta de defesa devem implicar nulidade absoluta do processo quando evidenciado o prejuízo (é este, inclusive, o teor da súmula 523 do STF). E, a depender do momento de reconhecimento da nulidade, haverá não economicidade, mas um alto gasto de recursos, humanos e financeiros, pelo Estado.

Refutado o argumento dos que entendem de outra forma, conclui-se pela inviabilidade, desproporcionalidade e inadequação da celebração do ANPP durante a audiência de custódia, seja por possuírem naturezas jurídicas incompatíveis, seja por requererem diferentes lapsos temporais, seja pelo previsível e extremamente gravoso resultado acarretado à defesa. Conciliar os institutos é permitir uma situação na qual a balança certamente pende para o lado mais fraco.

 

 

 

 

 


Notas

[1] https://www2.mppa.mp.br/noticias/promotoria-celebra-1-acordo-de-nao-persecucao-em-audiencia-de-custodia.htm

[2]  BRASILEIRO, Renato. Manual de Processo Penal, volume único. 8ª ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020. p. 1.018.

 

[3] Em levantamento de 2019, a Defensoria Pública da Bahia constatou que, apenas em Salvador, a média é de 9 (nove) presos em flagrante por dia, sendo a maioria deles homens, pretos e pobres. https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/salvador-tem-9-presos-em-flagrante-por-dia-maioria-sao-homens-pretos-e-pobres/

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTANA, Blenda Henriques. Acordo de não persecução penal na audiência de custódia:: uma necessária ponderação entre economicidade processual e garantias fundamentais do flagranteado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6173, 26 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82475. Acesso em: 2 nov. 2024.

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