É sabido que situações excepcionais exigem soluções excepcionais. Porém, isto não permite que o gestor público aja de maneira arbitrária ou para gerar danos, de maneira inconsequente, aos cofres públicos. Tanto que se tem observado diversos administradores, de primeiro escalão do executivo, inclusive, serem investigados pela polícia, mediante a necessária ordem judicial, por suposta malversação de recursos públicos durante contratações no período de calamidade pública.
A pandemia de covid-19, com reflexos sociais e econômicos graves, exigiu a adoção de modelo jurídico diferenciado durante este evento catastrófico. Foram publicadas diversas normas, nos mais diversos entes federativos, inovando no ordenamento jurídico neste período calamitoso. Mas, para o intento do presente artigo, destaca-se a Medida Provisória nº 961 e a Lei nº 13.979/20. A primeira possibilitou, explicitamente, além de aumentar o limite de dispensa de licitação em razão do valor[1],o pagamento antecipado[2], e a segunda, por sua vez, criou nova hipótese de dispensa de licitação, com vistas a viabilizar a aquisição de bens e insumos de saúde “destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata esta Lei”[3].
Tais ajustes normativos, deveras, possibilitaram maior flexibilidade nas contratações públicas, mas não afastaram, em hipótese alguma, a necessidade de motivação dos atos, da explicitação de quais razões levaram à compra de determinados bens ou a contratação de determinada prestação de serviços. Tampouco autorizaram que a contratações sejam realizadas sem, por exemplo, pesquisa ao mercado e a justificativa de preços. Se tais eventos acontecem, compras ou serviços sem justificativas, tanto de natureza técnica como econômica, então existe o risco de os responsáveis serem penalizados, nas esferas administrativa, civil e penal.
No Tribunal de Contas da União – TCU – foi proferida decisão que deixa claro que “os processos de contratação relacionados ao enfrentamento da crise do novo coronavírus (covid-19) devem ser instruídos com a devida motivação dos atos, por meio, no mínimo, de justificativas específicas acerca da necessidade da contratação e da quantidade dos bens ou serviços a serem contratados, com as respectivas memórias de cálculo e com a destinação a ser dada ao objeto contratado (art. 4º-E, § 1º, da Lei 13.979/2020)”[4].
Ora, as contratações públicas devem, de fato, ser rápidas, sem a burocracia desnecessária, principalmente em áreas críticas, como a da saúde, em que o tempo corre contra a vida dos pacientes. Todavia, não podem ser feitas sem estudos técnicos adequados e sem uma mínima pesquisa de preços, com vistas a verificar se o preço proposto é razoável e vantajoso para a Administração Pública.
A pandemia de covid-19 não é um cheque em branco ou um cartão de crédito sem limites para o gestor fazer o que quiser. A motivação dos atos praticados e o respeito aos princípios basilares que regem a Administração pública, tais como a legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência, devem ser observados. Do contrário, os órgãos de controle podem e devem agir para inibir abusos.
De outra banda, cabe ponderar que a legislação ordinária e os entendimentos já pacificados dos órgãos de controle sobre o tema já garantiam ao gestor mecanismos ágeis para sua atuação no momento de crise.
Isso porque não se pode olvidar que a Lei nº 8.666/93 já traz em seu bojo a hipótese de dispensa de licitação em razão de situações emergenciais ou de calamidade, como a vivenciada por conta do covid-19, bem como o TCU, em diversas decisões, já admitia o pagamento antecipado em determinadas situações. Vale dizer, as novas normas citadas, ainda que positivas, não são indispensáveis para que o gestor possa realizar contratações rápidas para enfrentar a crise, salvo o aumento de limite da dispensa em razão do valor.
Com efeito, o art. 24, inciso XV, da Lei nº 8.666/93 dispõe:
XV - em situações de emergência, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contado da ocorrência da emergência, vedada a prorrogação dos respectivos contratos, observado o disposto no § 2º ;
Sobre o tema, Marçal Justen Filho[5] sobre o assunto leciona:
A hipótese merece interpretação cautelosa. A contratação administrativa pressupõe atendimento às necessidades coletivas e supraindividuais. Isso significa que a ausência da contratação representaria um prejuízo para o bem público. Se inexistisse um interesse em risco, nem caberia intervenção do Estado. A atividade pública não pode ser suprimida ou diferida para o futuro. Afinal, essas são características inerentes à Administração Pública.
De acordo com esse doutrinador, na contratação emergencial deve-se atender a dois requisitos: demonstração concreta e efetiva da potencialidade do dano e demonstração de que a contratação é via adequada e efetiva para eliminar o risco.
O TCU também já delineou bastante como devem ser realizadas as contratações emergenciais. Seguem abaixo alguns acórdãos sobre a matéria:
(i) somente dispensar por emergência o certame licitatório nos casos previstos no inciso IV do art. 24 da Lei 8.666/93, ou seja, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento de situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos.[6]
(ii) Nas contratações diretas não há que se falar em direcionamento ilícito, pois a escolha do contratado é opção discricionária do gestor, desde que satisfeitos os requisitos estabelecidos no art. 26 da Lei 8.666/1993: justificativa do preço, razão da escolha do contratado e, se for o caso, caracterização da situação emergencial.[7]
(iii) A situação prevista no art. 24, IV, da Lei n° 8.666/93 não distingue a emergência real, resultante do imprevisível, daquela resultante da incúria ou inércia administrativa, sendo cabível, em ambas as hipóteses, a contratação direta, desde que devidamente caracterizada a urgência de atendimento a situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares[8].
(iv) A caracterização de situação emergencial, que autoriza o procedimento de dispensa de licitação, deve estar demonstrada no respectivo processo administrativo, evidenciando que a contratação imediata é a via adequada e efetiva para eliminar iminente risco de dano ou de comprometimento da segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares. Não se presta a esse fim a presença de pronunciamento técnico apontando a existência de graves problemas estruturais, se a interdição do local, por si só, suspenderia eventual risco à segurança dos frequentadores, e descaracterizaria a situação de urgência, possibilitando a realização do devido procedimento licitatório[9].
Para o Relator da decisão mencionada na alínea IV, acima, “há que se separar a ausência de planejamento da contratação emergencial propriamente dita, tratando-as como questões distintas”. Nesse quadro, a contratação emergencial ocorreria “em função da essencialidade do serviço ou bem que se pretende adquirir, pouco importando os motivos que tornam imperativa a imediata contratação”. Assim, “na análise de contratações emergenciais não se deve buscar a causa da emergência, mas os efeitos advindos de sua não realização”.
Além disso, no Acórdão do TCU nº 1130/2019 – 1ª Câmara, de relatoria do Ministro Bruno Dantas, ficou consignado que “cabe ao gestor demonstrar a impossibilidade de esperar o tempo necessário à realização de procedimento licitatório, em face de risco de prejuízo ou comprometimento da segurança de pessoas e de bens públicos ou particulares, além de justificar a escolha do fornecedor e o preço pactuado”.
Em suma, consoante com a jurisprudência acerca do tema, para se proceder à contratação emergencial, deverão estar presentes os seguintes requisitos: a) situação emergencial ou calamitosa que não possa ser imputada à desídia do administrador; b) urgência de atendimento; e c) risco de sérios danos a pessoas ou bens.
Em outros termos, ainda que não houvesse previsão da nova dispensa de licitação para comprar insumos e serviços para enfrentar a pandemia, a contratação emergencial se mostraria possível juridicamente, afastando a necessidade de previamente licitar nesta situação de calamidade.
De igual modo ocorre no que toca ao pagamento antecipado. Mesmo antes da MP nº 961, comprovada a vantajosidade da medida e adotadas cautelas, para a hipótese do bem não ser entregue ou o serviço não ser prestado, o pagamento antecipado já era juridicamente admissível, ainda que em caráter excepcional.
Veja o entendimento do Tribunal de Contas da União sobre o tema:
Contratações com indícios de irregularidades: 4 - Pagamento antecipado. No âmbito dos contratos administrativos, é defeso realizar pagamentos anteriores à prestação dos serviços sem que tal procedimento seja tecnicamente justificável e que esteja previsto no instrumento convocatório, nos termos do art. 38 do Decreto nº 93.872/86, c/c os arts. 62 e 63 da Lei nº 4.320/64 e art. 65, II, “c”, da Lei nº 8.666/93. Com base nesse entendimento, o relator entendeu presente irregularidade suscitada na gestão da SPRF/GO a respeito de pagamentos antecipados em contrato de prestação de serviços de vigilância armada. Foi apurado que apenas três pagamentos mensais se deram de forma antecipada em dois, quatro e seis dias em relação ao prazo final de prestação dos correspondentes serviços, razão por que o relator propôs tão somente a expedição de determinação ao órgão, de modo a evitar tais práticas, no que foi acompanhado pelos demais ministros[10].
Para fins de responsabilização perante o TCU, pode ser tipificada como erro grosseiro (art. 28 do Decreto-lei 4.657/1942 – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) a realização de pagamento antecipado sem justificativa do interesse público na sua adoção e sem as devidas garantias que assegurem o pleno cumprimento do objeto pactuado[11].
São requisitos para a realização de pagamentos antecipados: i) previsão no ato convocatório; ii) existência, no processo licitatório, de estudo fundamentado comprovando a real necessidade e economicidade da medida; e iii) estabelecimento de garantias específicas e suficientes que resguardem a Administração dos riscos inerentes à operação[12].
Depreende-se, pois, que a MP em questão nada mais fez do que normatizar entendimento consolidado do TCU sobre a matéria, para o período do “estado de calamidade reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020”.
Por óbvio, a positivação de determinadas situações facilita a atuação do gestor, ao admitir situações que antes possuíam caráter de excepcionalidade. Se excepcionalidade já se encontra presente na norma, o gestor não precisa se preocupar com esta justificativa, sem descurar, claro, das outras justificativas alhures citadas.
Em suma, conclui-se que inovações legislativas são salutares para viabilizar soluções jurídicas adequadas para que o gestor possa enfrentar com celeridade a pandemia de covid-19, muito embora já existisse o permissivo jurídico em alguns casos. Contudo, não se pode realizar contratações públicas de maneira injustificada, sem amparo técnico e econômico adequados, e sem o respeito aos princípios basilares da Administração Pública, notadamente a impessoalidade, moralidade e eficiência. Não se pode ter uma pandemia de contratações por conta do covid-19 sem motivação plausível, sob pena de o gestor sofrer as consequências jurídicas, nas esferas administrativa, civil e penal, em caso de abusos.
Notas
[1] Art. 1º Ficam autorizados à administração pública de todos os entes federativos, de todos os Poderes e órgãos constitucionalmente autônomos:
I - a dispensa de licitação de que tratam os incisos I e II do caput do art. 24 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, até o limite de:
a) para obras e serviços de engenharia até R$ 100.000,00 (cem mil reais), desde que não se refiram a parcelas de uma mesma obra ou serviço, ou, ainda, para obras e serviços da mesma natureza e no mesmo local que possam ser realizadas conjunta e concomitantemente; e
b) para outros serviços e compras no valor de até R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) e para alienações, desde que não se refiram a parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior vulto que possa ser realizada de uma só vez;
[2] Art. 1º, II, Medida Provisória nº 961/20.
[3] Art. 4º da Lei nº 13.979/20.
[4] Acórdão nº 1335/2020 – Plenário (Acompanhamento, Relator Ministro Benjamin Zymler).
[5] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 16ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, pág. 404.
[6] Acórdão TCU nº 628/2005 – 2ª Câmara.
[7] Acórdão TCU nº 1157/2013 – Plenário.
[8] Acórdão TCU nº 1138/2011 – Plenário.
[9] Acórdão TCU nº 1162/2014 – Plenário.
[10] Acórdão nº 589/2010 – 1ª Câmara, Relator: Min-Subst. Marcos Bemquerer Costa.
[11] Acórdão nº 185/2019 – Plenário. Relator: Ministro Benjamin Zymler.
[12] Acórdão nº 2856/2019 – Primeira Câmara. Relator: ministro Walton Alencar Rodrigues.