Caros amigos do MERCADO SEGURADOR,
Recentemente, comentei sobre a carta-protesto (art. 754 do Código Civil) neste tempo extraordinário de pestilência.
No comentário (opinião legal) defendi que os procedimentos de emissão e apresentação da carta-protesto podem e devem ser mais flexíveis, sendo admissível sua formalização por meio de correio eletrônico.
Como ajuda-memória, convém reproduzir parte da opinião legal:
Abro aspas
Sinto-me bem à vontade para dizer que a carta-protesto pode ser formalizada por e-mail.
Aliás, sempre o defendi, mesmo fora do presente cenário: crise pandêmica com isolamento social.
A lei não especifica como a carta-protesto tem de ser efetivada, logo todo e qualquer meio idôneo é válido e eficaz. Tal afirmação reside na natureza ontológica do protesto e no princípio constitucional fundamental da legalidade: tudo o que não é expressamente proibido pela lei, pode ser feito.
Em outras palavras: se não há uma forma ideal, toda e qualquer forma, idônea, é possível.
O mundo atual é o da Quarta Revolução Industrial, da tecnologia de informática. Assim, não há motivo para não aceitar o correio eletrônico como veículo hábil para o protesto do recebedor.
Antes da crise, eu recomendava que o interessado em usar o protesto do recebedor por correio eletrônico se valesse de algum dispositivo capaz de identificar o recebimento (e, sendo possível, a certificação de visualização). Hoje, com a crise e a necessidade de isolamento, entendo que isso não se mostra tão importante.
Tratava-se, pois, de um cuidado a mais, um procedimento formal para evitar alegações de seu não recebimento. Diante da crise e da necessidade de novos comportamentos, sinto-me confiante em afirmar que o simples encaminhamento do e-mail é bastante para caracterizar o cumprimento do art. 754, CC.
Então, reafirmo, tenho certo para mim que a carta-protesto pode ser apresentada por e-mail, independentemente de maiores formalidades.
E vou além: não só pode, como deve, evitando a circulação de papel e respeitando mais o isolamento recomendado e por vezes exigido pelas autoridades. Minha afirmação se funda nos princípios fundamentais e gerais do Direito, constitucionais ou supraconstitucionais, da proporcionalidade, da razoabilidade, da transparência, da regularidade das formas, da não surpresa, da isonomia e, nestes tempos difíceis, diferentes, extraordinários, até mesmo da dignidade da pessoa humana.
Fecho aspas
Reitero tudo o que escrevi, ainda mais convicto.
Ontem, 17 de junho, fui indagado por um importante profissional do mercado segurador: se a decadência prevista no art. 754 do Código Civil seria alcançada pela recentíssima Lei Federal nº 14.010, de 10 de junho.
A indagação foi precisamente sobre o teor do §2º do art. 3º.
Considerando a importância do tema, entendo conveniente compartilhar com todo os amigos e colegas do mercado segurador aquilo que, em nome da parceria MCLG-SMERA-BSI, respondi.
Evidentemente que o faço com algumas adaptações.
Vamos lá.
Sobre o que foi indagado a respeito desta nova lei, abaixo parcialmente copiada:
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 1º Esta Lei institui normas de caráter transitório e emergencial para a regulação de relações jurídicas de Direito Privado em virtude da pandemia do coronavírus (Covid-19).
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se 20 de março de 2020, data da publicação do Decreto Legislativo nº 6, como termo inicial dos eventos derivados da pandemia do coronavírus (Covid-19).
Art. 2º A suspensão da aplicação das normas referidas nesta Lei não implica sua revogação ou alteração.
CAPÍTULO II
DA PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA
Art. 3º Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020.
§ 1º Este artigo não se aplica enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional.
§ 2º Este artigo aplica-se à decadência, conforme ressalva prevista no art. 207 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
Tenho a dizer o que segue:
O §2º do art. 3º da nova lei, que é temporária, autoriza-nos a entender que, sim, a decadência prevista no art. 754 do Código Civil (carta-protesto) é alcançada.
Mas, como toda lei feita de afogadilho, há um problema a ser considerado.
Infelizmente, a dialética do Direito sempre tem um “mas”, não?
Falo do aposto, “conforme o caso”, na cabeça do artigo. Poderá gerar dúvida e motivar discussões.
Por se tratar de algo muito específico, a carta-protesto, artigo que integra a parte do Código Civil que dispõe sobre o contrato de transporte, é possível que se alegue no futuro que a lei não o visava, mas apenas as decadências propriamente ditas.
Note que o art. 754 não trata da decadência em si, mas da carta-protesto e da responsabilidade civil do transportador de carga. O tema decadência é secundário, porque tratado como causa da não apresentação, formal e tempestiva, do protesto.
Por isso considero arriscado colocar todas as fichas na lei e apostar na interpretação literal do §2º do art. 3º.
Como a lei nasceu com prazo curto de validade, não é possível um prognóstico seguro e nem haverá tempo hábil para a discussão do assunto.
Escreverei um artigo defendendo a incidência da lei com a ressalva que lhe faço prudentemente agora, para formar opinião jurídica visando o futuro.
Minha recomendação é manter a política de endereçamento da carta-protesto por e-mail, dentro do prazo de dez dias.
Uma boa notícia, porém. A lei fortalece meu argumento de flexibilização dos procedimentos, dado o caráter extraordinário da pandemia.
Por isso, vejo como possível o endereçamento mesmo sem aviso de recebimento.
Normalmente, concordaria e endossaria a afirmação feita por colega dessa Seguradora, até porque essencialmente correta: “mas que para ser válido tem que ser enviado com AVISOS DE RECEBIMENTO e DENTRO DO PRAZO LEGAL”.
Não obstante, penso que ela se ajusta aos casos em geral e em tempos normais. Enquanto a pestilência estiver entre nós, entendo sinceramente pelo abrandamento procedimental.
A lei servirá como poderoso argumento de reforço.
Espero ter ajudado e me coloco à disposição para explicar com maiores detalhes por meio de videoconferência.
Em suma: é certo entender que a lei alcança a regra da carta-protesto, mas por excesso de cautela, considerando que a law in books quase nunca é como a law in action, recomendo que se continue a prática de orientar o segurado a protestar dentro do prazo de dez dias, mas por e-mail e sem maiores formalidades. Se porventura a lei não atingir a decadência do art. 754 do CC, ao menos será forte argumento para se defender a sugerida flexibilização.
Abraços e obrigado pela confiança.