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Água, tributos e tarifas:

Uma análise dos regimes tributário e tarifário desse bem econômico indispensável à saúde, a partir de julgados do STF

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3. A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA DAS COMPANHIAS DE ÁGUA E SANEAMENTO BÁSICO

Nos referidos julgados sobre a não incidência do ICMS sobre o serviço público de fornecimento de água potável, um dos argumentos deduzidos consistia no fato de que essa tributação oneraria esse serviço público e poderia conduzir ao amesquinhamento da desejável universalização do amplo acesso à água e ao saneamento básico. Cuide-se que para o Tribunal as companhias de água e de saneamento básico devem ser destinatárias do privilégio constitucional da imunidade tributária.

Com efeito, no voto condutor nos autos do RE 763.000[26], em julgamento da 1ª Turma do STF, o ministro Luís Roberto Barroso[27] assinalou na ementa do acórdão:

É firme o entendimento desta Corte no sentido de que a imunidade recíproca é aplicável às sociedades de economia mista prestadoras de serviço de distribuição de água e saneamento, tendo em vista que desempenham atividade de prestação obrigatória e exclusiva do Estado.

As instâncias ordinárias assentaram que a companhia é controlada pelo Governo do Estado do Espírito Santo e que tem por finalidade essencial os serviços de abastecimento de água e esgotos sanitários, razão pela qual as taxas cobradas a título de serviço teriam por escopo cobrir os custos operacionais, sem qualquer finalidade lucrativa.

Esse julgado repetiu a orientação da 2ª Turma da Corte estampada no acórdão do RE 631.309[28], cujo relator ministro Ayres Britto[29] assentou na ementa:

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende que a sociedade de economia mista prestadora de serviço público de água e esgoto é abrangida pela imunidade tributária recíproca, nos termos da alínea “a” do inciso VI do art. 150 da Constituição Federal.

Essas decisões se fundaram nas orientações estampadas no acórdão do RE 253.472[30]. Nesse julgamento, prevaleceram os argumentos do ministro Joaquim Barbosa[31] assim expostos:

  1. A imunidade tributária recíproca se aplica à propriedade, bens e serviços utilizados na satisfação dos objetivos institucionais imanentes do ente federativo, cuja tributação poderia colocar em risco a respectiva autonomia política. Em consequência, é incorreto ler a cláusula de imunização de modo a reduzi-la a mero instrumento destinado a dar ao ente federado condições de contratar em circunstâncias mais vantajosas, independentemente do contexto.
  2. Atividades de exploração econômica, destinadas primordialmente a aumentar o patrimônio do Estado ou de particulares, devem ser submetidas à tributação, por apresentarem-se como manifestações de riqueza e deixarem a salvo a autonomia política.
  3. A desoneração não deve ter como efeito colateral relevante a quebra dos princípios da livre-concorrência e do exercício de atividade profissional ou econômica lícita. Em princípio, o sucesso ou a desventura empresarial devem pautar-se por virtudes e vícios próprios do mercado e da administração, sem que a intervenção do Estado seja favor preponderante.

Esse julgamento apreciou pretensão na qual se discutia se empresa estatal estadual seria alcançada pela imunidade tributária contida no art. 150, inciso VI, alínea “a”, da Constituição Federal, que veda a instituição de impostos sobre o patrimônio, a renda ou serviços da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, denominada de imunidade tributária recíproca.

O relator originário do feito, ministro Marco Aurélio[32], votou contra o reconhecimento da imunidade tributária pelos seguintes argumentos:

A regra da imunidade da alínea “a” do inciso VI do artigo 150 da Constituição Federal está restrita a instituição de imposto sobre patrimônio ou renda ou serviços das pessoas jurídicas de direito público.

Sendo pacífico como fato imponível o domínio e a posse e como contribuintes aqueles que os detenham em patrimônio e envolvida sociedade de economia mista a explorar atividade econômica, não é dado, por verdadeiro empréstimo, cogitar da imunidade. Vale frisar que o § 3º do referido artigo 150 revela que as vedações do inciso VI, alínea “a”, do mesmo artigo não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços relacionados com a exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação e pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exoneram o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel. Ora, no caso, a recorrente possui o domínio útil do imóvel e atua na exploração de atividade econômica, sujeitando-se, ante o disposto no § 2º do artigo 173 da Constituição Federal, à incidência tributária.

Essa linha argumentativa foi acompanhada pelos ministros Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski. Os outros ministros do STF placitaram o voto do ministro Joaquim Barbosa no sentido da imunidade recíproca.  

Todavia, à luz dos preceitos constitucionais, especialmente do art. 150, § 3º, combinado com o art. 173, § 2º, não deveria ser reconhecida a imunidade tributária de empresa estatal. Porém, há aturada, ainda que equivocada, jurisprudência do STF estendendo a empresas estatais esse privilégio constitucional fiscal[33], assim como reconhecendo a empresas estatais o privilégio de honrar suas dívidas judicialmente reconhecidas utilizando o instituto dos precatórios judiciários[34]. Conquanto, nos termos do art. 100, CF, esse citado comando normativo seja exclusivo para as pessoas jurídicas de direito público. A justificativa para contornar esses comandos constitucionais consiste na ausência na suposta ausência de exploração de atividade econômica mediante livre concorrência e livre competição, bem como na ausência de finalidade lucrativa das empresas estatais judicialmente agraciadas com esses favores constitucionais.

Cuide-se, no entanto, que o Tribunal, no julgamento do RE 938.837[35], ignorou o caráter autárquico de Conselho Profissional e afastou o regime de precatórios judiciários para essas autarquias. O principal fundamental para essa decisão decorreu da ausência de participação dos conselhos nos orçamentos públicos, pressuposto para o precatório judiciário. Sucede, todavia, que as empresas públicas e sociedades de economia mista também não estão incluídas na legislação orçamentária, mas ainda assim lhe foi estendido regime de precatórios. O STF tem de manter a coerência argumentativa.

Nada obstante, no voto vencedor proferido pelo ministro Edson Fachin[36], nos autos da ACO 2.730[37], a orientação pró imunidade foi mantida, como se vê em trechos da ementa do acórdão:

1. A imunidade tributária recíproca pode ser estendida a empresas públicas ou sociedades de economia mista prestadoras de serviço público de cunho essencial e exclusivo. Precedente: RE 253.472, Rel. Min. Marco Aurélio, Redator para o acórdão Min. Joaquim Babosa, Pleno, DJe 1º.02.2011.

2. Acerca da natureza do serviço público de saneamento básico, trata-se de compreensão iterativa do Supremo Tribunal Federal ser interesse comum dos entes federativos, vocacionado à formação de monopólio natural, com altos custos operacionais. Precedente: ADI 1.842, de relatoria do ministro Luiz Fux e com acórdão redigido pelo Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 16.09.2013.

3. A empresa estatal presta serviço público de abastecimento de água e tratamento de esgoto, de forma exclusiva, por meio de convênios municipais. Constata-se que a participação privada no quadro societário é irrisória e não há intuito lucrativo. Não há risco ao equilíbrio concorrencial ou à livre iniciativa, pois o tratamento de água e esgoto consiste em regime de monopólio natural e não se comprovou concorrência com outras sociedades empresárias no mercado relevante. Precedentes: ARE-AgR 763.000, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe 30.09.2014 (CESAN); RE-AgR 631.309, de relatoria do Ministro Ayres Britto, Segunda Turma, DJe 26.04.2012; e ACO-AgR-segundo 2.243, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, DJe 27.05.2016.

4. A cobrança de tarifa, isoladamente considerada, não possui aptidão para descaracterizar a regra imunizante prevista no art. 150, VI, “a”, da Constituição da República. Precedente: RE-AgR 482.814, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, DJe 14.12.2011.

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Tenha-se, no entanto, que nem sempre as empresas estatais de água e saneamento conseguem lograr sucesso no STF, como ocorreu no julgamento da ACO 1.460[38], no qual o Tribunal não reconheceu a postulada imunidade tributária por entender que a empresa busca o lucro e o distribui entre os seus acionistas. Nesse citado julgamento, a Corte entendeu que não estavam preenchidos os parâmetros traçados para a extensão da imunidade tributária recíproca. Do voto do relator, ministro Dias Toffoli[39], devem ser recordadas as seguintes teses vencedoras:

2. A Corte já firmou o entendimento de que é possível a extensão da imunidade tributária recíproca às sociedades de economia mista prestadoras de serviço público, observados os seguintes parâmetros: a) a imunidade tributária recíproca se aplica apenas à propriedade, bens e serviços utilizados na satisfação dos objetivos institucionais imanentes do ente federado; b) atividades de exploração econômica, destinadas primordialmente a aumentar o patrimônio do Estado ou de particulares, devem ser submetidas à tributação, por apresentarem-se como manifestações de riqueza e deixarem a salvo a autonomia política; e c) a desoneração não deve ter como efeito colateral relevante a quebra dos princípios da livre concorrência e do livre exercício de atividade profissional ou econômica lícita. Precedentes: RE nº 253.472/SP, Tribunal Pleno, Relator para o acórdão o Ministro Joaquim Barbosa, DJe de 1º/2/11 e ACO 2243/DF, decisão monocrática, Relator Min. Dias Toffoli, DJe de 25/10/13.

3. A Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (CASAN) é sociedade de economia mista prestadora de serviço público de abastecimento de água e tratamento de esgoto. Não obstante, a análise do estatuto social, da composição e do controle acionário da companhia revelam o não preenchimento dos parâmetros traçados por esta Corte para a extensão da imunidade tributária recíproca no RE nº 253.472/SP (Tribunal Pleno, Relator para o acórdão o Ministro Joaquim Barbosa, DJe de 1º/2/11).

4. A pretendida desoneração tributária pela CASAN – que, a despeito de prestar serviço público, desempenha atividade econômica com persecução e distribuição de lucro – beneficiaria os agentes econômicos privados que participam de seu capital social, gerando risco de quebra do equilíbrio concorrencial e da livre iniciativa, o que não se pode admitir, sob pena de desvirtuamento da finalidade da imunização constitucional.

Essa decisão plenária corrige, parcialmente, uma orientação equivocada do STF, no sentido de conceder, indevidamente, o privilégio constitucional da imunidade tributária recíproca para empresas estatais, quando, a rigor, essa imunidade é exclusiva das pessoas jurídicas de direito público.

Com efeito, todas as vezes que decisões judiciais substituem as decisões políticas do legislador, como essas que estendem privilégios normativos fiscais, como sucede com os institutos de exoneração tributária (imunidades, isenções, redução de alíquotas etc.), elas causam desequilíbrios financeiros e orçamentários, além de provocar o favorecimento dos setores alcançados pelos benefícios em desfavor dos outros setores ou atividades econômicas. Ademais, sempre que a administração pública, mormente a tributária, tem perda de receita ou de arrecadação, essa perda deverá ser compensada ou com o aumento de tributos ou com a redução de despesas. O aumento de tributos onera os setores não privilegiados pelas exonerações tributárias. A redução de despesas tende a sacrificar os setores mais necessitados de intervenção estatal e com menos força persuasiva junto à administração pública. [40]

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. Água, tributos e tarifas:: Uma análise dos regimes tributário e tarifário desse bem econômico indispensável à saúde, a partir de julgados do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6209, 1 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83593. Acesso em: 23 abr. 2024.

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