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Água, tributos e tarifas:

Uma análise dos regimes tributário e tarifário desse bem econômico indispensável à saúde, a partir de julgados do STF

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4. AS TAXAS E AS TARIFAS DA ÁGUA E DO SANEAMENTO BÁSICO           

O STF, nos autos do RE 847.429[41], reconheceu a repercussão geral da questão constitucional relativa à possibilidade de delegação, mediante contrato de concessão, do serviço de coleta e remoção de resíduos domiciliares, bem como a natureza jurídica da remuneração de tais serviços, no que diz respeito à essencialidade e à compulsoriedade. A controvérsia diz respeito à prestação de serviço público, se diretamente prestado pela administração pública, ou se indiretamente prestado, via delegação (concessão ou permissão ou autorização), e como deve ser dar a remuneração por essa prestação, se por meio de tarifa (ou preço público) ou se por meio de taxa. Ou seja, se o fundamento constitucional será o art. 145, inciso II, ou se será o art. 175, e incisos I a IV. Eis os citados preceitos constitucionais:

Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:

...

II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;

...

Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único. A lei disporá sobre:

I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

II – os direitos dos usurários;

III – política tarifária;

IV – a obrigação de manter serviço adequado.

Em sua manifestação preliminar, o relator do feito, ministro Dias Toffoli[42], assinalou:

As características comuns entre taxa e tarifa tornam difícil estabelecer uma linha de diferenciação nítida e perfeita entre elas. Na jurisprudência da Corte a orientação acolhida é no sentido de que a classificação não pode tomar apenas um elemento para distinguir taxa de tarifa, mas há que se tomar um conjunto dos elementos que caracterizam a exação que está sendo cobrada por determinado serviço. Nos julgados que analisavam a retribuição pelos serviços de saneamento, por exemplo, restou assentados que o critério da obrigatoriedade seria insuficiente para caracterização da natureza tributária de uma exação. Com essa orientação, nada obstante a compulsoriedade da denominada taxa de água e esgoto, sempre se entendeu que a contraprestação pelo serviço de saneamento básico não tem caráter tributário, revestindo-se da natureza de tarifa e, portanto, não dependeria da edição de lei específica para sua instituição ou majoração.

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A orientação que tem prevalecido mais recentemente é no sentido de que a distinção entre o preço público e taxa (de natureza tributária) está na compulsoriedade da exigibilidade do pagamento da taxa que como fato gerador o exercício do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, na forma do art. 145, inciso II, da Constituição.

....

Como se vê, a exigência da taxa se dá pela efetiva ou potencial utilização de serviço público ou pelo exercício do poder de polícia. Ou seja, uma vez posto o serviço à disposição, quer o administrado a utilize ou não, terá que pagar a referida taxa. Daí a natureza tributária, pois independe de correspondente contraprestação, bastando que esteja elencado como sujeito passivo da obrigação em face da simples possibilidade de utilização do serviço colocado à sua disposição. A tarifa, por sua vez, é devida sempre pela efetiva prestação do serviço.

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Como recordado, essa discussão acerca do regime remuneratório da prestação dos serviços públicos, mormente de água e de saneamento básico, não é nova na jurisprudência do STF. Com efeito, ainda sob a égide da Constituição de 1946, nos atávicos RREE 54.491[43] e 54.194[44], o Tribunal analisou se a remuneração pelos serviços públicos de água e esgoto deveriam ser por meio de taxa ou de tarifa, e aprofundaram as discussões para saber em que circunstâncias os pagamentos deveriam ser de um modo ou de outro, levando em consideração o tipo de serviço público prestado, se o pagamento era compulsório ou contratual, e se haveria necessidade de lei específica cuidando do tema e dos valores cobrados. Nesses julgados, restou pacificado que se cuida de tarifa (preço público) e não de taxa (tributo) os valores cobrados pelos serviços de água e de saneamento básico.  

Nesses citados debates, o ministro Luiz Gallotti[45] defendendo o caráter tributário da taxa de águas e esgotos, e a necessidade de lei específica para instituir, cobrar e aumentar esse tributo, arrematou:

Por último, sr. Presidente, quero pedir a atenção do Tribunal para o seguinte: estamos vivendo um período de voracidade tributária que, em certos casos, atinge extremos que levam ao aniquilamento. Se isso não for facultado apenas ao Poder Legislativo, mas também ao Executivo, e num caso em que o caráter tributário é incontestável, porque a taxa é exigida também dos que não usam o serviço, não sei a que ponto poderemos chegar.

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O conceito de taxa é um conceito sabido de todos.

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Todos os mestres dizem o que é taxa. Porque a nossa Constituição inovou, exigindo a cobrança dos tributos (impostos extras) prévia autorização orçamentária, devemos subverter o conceito de taxa consagrado na doutrina?

...

O ministro Victor Nunes Leal[46] se manifestou contrário à necessidade de se reconhecer o caráter tributário da discutida taxa de água e esgoto, que na avaliação dele se tratava de tarifa (preço público), conquanto fosse obrigatório o seu pagamento e assinalou:

Estou dando exemplos de casos de pagamento obrigatório, onde não podemos falar em taxa, no sentido próprio. O seguro aéreo é obrigatório, mas não é taxa. Se for explorado pelo Estado ou por companhia sua, não passará a ser taxa.

...

O que se discute é precisamente isso: saber quando um pagamento obrigatório é taxa ou não é taxa. Não estou sustentando que não possa haver taxa que não seja obrigatória; o que estou sustentando é que há pagamentos obrigatórios, os quais, não obstante, não são taxas.

 ...

O que há no problema que estamos discutindo, sr. Presidente, em relação a certas atividades, é que elas podem ser remuneradas, indiferentemente, por taxa ou por preço público, dependendo da opção do legislador. O legislador pode, em determinado momento, transformar em serviço remunerado por taxa ou em serviço remunerado por preço público. E não há qualquer vantagem em se retirar essa opção do legislador.

Dir-se-á que, ao dar à remuneração do serviço o caráter de preço público, tira-se do legislador o direito de aprovar a “taxa”. Não, porque se lhe conserva nas mãos o direito de instituir o serviço de um ou de outro modo, de não permitir que o serviço se transforme, de exigir que continue a ser remunerado por taxa, e não por preço público. Como, em nome das prerrogativas do Poder Legislativo, se pode dizer que lhe foi subtraída uma prerrogativa menos, quando se lhe deixa a maior? O próprio Legislativo quis que o Executivo ficasse com a atribuição de fixar o preço do serviço. O problema fundamental não é dizer se é taxa ou não é taxa. O problema fundamental é determinar de que maneira vai ser explorado determinado serviço.

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Na essência, os votos divergentes se distanciam no tocante à necessidade ou não de ser instituída uma taxa para a cobrança dos serviços de água e de esgoto, mas convergem no sentido de que as taxas são tributos e como tal devem ser instituídas por lei.

Em decorrência desses julgados, o STF editou a Súmula 545 vazada no seguinte sentido: Preços de serviços públicos e taxas não se confundem, porque estas, diferentemente daqueles, são compulsórias e têm sua cobrança condicionada à prévia autorização orçamentária, em relação à lei que a institui”. E na mesma toada, a Corte julgava válida a suspensão do fornecimento de água por força do inadimplemento do pagamento de tarifa de água (RREE 81.163[47] e 85.268[48]).

Nessa perspectiva, à luz dos julgados do STF, fica ao alvedrio do legislador escolher se a remuneração dos serviços de águas e de esgoto será realizada ou por taxa (tributo) ou por tarifa (preço público), sendo ambas as opções igualmente válidas, e que não desnaturam o caráter essencial e obrigatório desses serviços públicos (ADI 1.842[49], RE 117.809[50] e ACO 2.730[51]).  No entanto, as taxas devem se submeter ao regime jurídico dos tributos, com todas as consequências normativas e operacionais advindas desse regime, enquanto que as tarifas não necessitam seguir esse mesmo regime normativo, como enunciado na aludida Súmula 545.


5. CONCLUSÕES

O STF, ao excluir o ICMS das cobrança dos serviços públicos de água encanada, sob a justificativa de que “água” não é mercadoria, mas bem público essencial e de valor econômico, invade competência política do Poder Legislativo, visto que não há explícita vedação constitucional nesse sentido, com impactos financeiros e orçamentários para a administração pública, conquanto seja alívio para os consumidores e contribuintes.

No tocante à imunidade tributária recíproca das companhias de água e de saneamento básico, bem como a extensão do regime de precatórios judiciários, as decisões do STF reconhecendo esses privilégios também vão além dos comandos constitucionais, pois a letra do texto normativo dispõe ser regime exclusivo das pessoas jurídicas de direito público interno, enquanto que essas empresas estatais são pessoas jurídicas de direito privado, portanto não alcançadas pelos citados benefícios constitucionais.

Quanto ao regime de remuneração, se por meio de taxas ou de tarifas, o entendimento do STF é certeiro, deixando à administração pública a liberdade de escolher o melhor regime, segundo seus interesses e peculiaridades, arcando com as consequências dessas escolhas políticas e operacionais.

O fato concreto é que as decisões judiciais devem ser instrumentos normativos que favoreçam à ampliação desses serviços públicos de água potável e de saneamento básico, levando em consideração às necessidades vitais básicas da população e as complexidades operacionais e financeiras para que esses bens jurídicos (água potável e saneamento básico), de altíssimos custos econômicos, sejam viabilizados para todos e para cada um que esteja em solo brasileiro.

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. Água, tributos e tarifas:: Uma análise dos regimes tributário e tarifário desse bem econômico indispensável à saúde, a partir de julgados do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6209, 1 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83593. Acesso em: 26 abr. 2024.

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