Capa da publicação O veto ilimitado do Presidente
Artigo Destaque dos editores

Não cabe ao Presidente da República vetar material legislativo já sancionado, promulgado e publicado

07/08/2020 às 18:40
Leia nesta página:

Examina-se caso incomum de veto a lei, objeto de ADPF, que constituiu patologia do sistema de formação da norma jurídica.

1. O FATO

Observo do Consultor Jurídico (Vetos extemporâneos) publicado no dia 3 de agosto do corrente ano:

“As normas que disciplinam o processo constitucional de formação das leis não são mera formalidade dispensável. A aposição de veto tem natureza terminativa. Admitir que ele seja feito sobre material legislativo já sancionado, promulgado e publicado seria reconhecer que uma sanção recaia não em um projeto de lei, mas em uma lei.

Com esse entendimento, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, deferiu parcialmente medida cautelar pleiteada em três ações de descumprimento de preceito fundamental contra vetos trazidos pela republicação da Lei 14.019/2020, de 2 de julho.

No caso, houve discussão sobre as Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 714, 715 e 718.

Com a decisão, a norma passa a obrigar o uso de máscara de proteção individual nas prisões e nos locais de cumprimento de medidas socioeducativas (parágrafo 5º do artigo 3-B). Também obriga órgãos e estabelecimentos a afixar cartazes informativos sobre a forma de uso correto de máscaras e o número máximo de pessoas permitidas ao mesmo tempo (art. 3-F).”

"A inusitada situação dos autos — o exercício do poder de veto em uma lei já promulgada e publicada — gera forte insegurança jurídica; dificulta até mesmo a identificação de qual é o direito vigente", destacou o ministro Gilmar Mendes, que destacou a relevância inconteste das normas que foram vetadas e, agora, voltam a ter validade.


2. O PODER DE VETO NÃO PODE SER OBJETO DE RETRATAÇÃO

Disse o ministro Gilmar Mendes naquela decisão:

“Heterodoxia procedimental que inviabiliza o não conhecimento dos pedidos deduzidos pelas partes autoras (ou pelo menos a maior parte deles) com apoio no fundamento de que a controvérsia constitucional que se coloca articula matéria circunscrita à intimidade do exercício do poder político, uma political question, a recomendar, por isso, uma autocontenção do Poder Judiciário: seja nos termos inaugurados por Luther v. Border (1849), na experiência jurisprudencial da Suprema Corte norteamericana, seja na linha da ADPF 1/DF-QO:

EMENTA: Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Lei nº 9882, de 3.12.1999, que dispõe sobre o processo e julgamento da referida medida constitucional. (...) 8. No processo legislativo, o ato de vetar, por motivo de inconstitucionalidade ou de contrariedade ao interesse público, e a deliberação legislativa de manter ou recusar o veto, qualquer seja o motivo desse juízo, compõem procedimentos que se hão de reservar à esfera de independência dos Poderes Políticos em apreço. 9. Não é, assim, enquadrável, em princípio, o veto, devidamente fundamentado, pendente de deliberação política do Poder Legislativo – que pode, sempre, mantê-lo ou recusá-lo, – no conceito de "ato do Poder Público", para os fins do art. 1º, da Lei nº 9882/1999. Impossibilidade de intervenção antecipada do Judiciário,– eis que o projeto de lei, na parte vetada, não é lei, nem ato normativo, – poder que a ordem jurídica, na espécie, não confere ao Supremo Tribunal Federal, em via de controle concentrado. (QO na ADPF/DF, Relator Ministro NÉRI DA SILVEIRA, Tribunal Pleno, julgado em 03/02/2000, DJ de 07/11/2003.”

Disse, ainda, o ministro Gilmar Mendes:

“A controvérsia constitucional que aqui se aborda versa exatamente sobre uma preclusão: aquela ocorrida na etapa da deliberação executiva, cuja consumação põe fim à fase constitutiva de formação da lei ao mesmo tempo em que inaugura a fase complementar, ou integratória da eficácia da lei – promulgação e publicação (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do Processo Legislativo. São Paulo: Saraiva, 1968, p. 62).

As Constituições brasileiras do período republicano guardam a noção de que a lei (grosso modo e via de regra) é resultado da conjugação da manifestação do Congresso Nacional com aquela do Chefe do Poder Executivo, materializada pela sanção. Na feliz síntese da Ministra Cármen Lúcia, “a lei, no Brasil, tem sido tradicionalmente e salvo exceções expressas previstas no próprio texto constitucional, resultado da vontade compósita dos órgãos do legislativo e do executivo” (ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Constituição e Constitucionalidade. Belo Horizonte: Editora Lê, 1991, p. 173)”.

Ora, com o veto, o Presidente da República nega a aquiescência à formação da lei, por entendê-la inconstitucional ou contrária ao interesse público.

“O poder de veto, quando usado pelo executor, não pode ser retratado”, para negar a possibilidade, ao então Governador de Pernambuco de proceder à sanção de Projeto de Lei que, dois dias antes, fora enviado à Assembleia Legislativa com mensagem de veto. (Representação 432/PE, Rel. Ministro ARY FRANCO, Tribunal Pleno, julgado em 22/01/1960).

Da leitura do art. 66, CF/88, José Afonso da Silva conclui que, uma vez manifestada a aquiescência do Poder Executivo com o Projeto de Lei que lhe fora enviado, pela aposição da sanção, ocorre exatamente uma preclusão – na forma divisada pelo Ministro Sepúlveda Pertence, no trecho do julgamento da ADI 1254/RJ supra transcrito – suficiente para conferir ao ao veto um caráter terminativo:

“(...) a sanção, uma vez dada, escapa ao controle do outorgante, para integrar o ato complexo – a lei –, como um todo, passando, em consequência, a ser elemento da lei, que não pode ser retirado ou revogado, senão com a revogação da lei. É irretratável.” (ênfase nossa) (SILVA, José Afonso da. Processo Constitucional de Formação das Leis. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, pp. 214-215).

Colhe-se a posição do Ministro Celso de Mello: “O veto é irretratável. Uma vez manifestado, e comunicadas as razões ao Legislativo, torna-se o veto insuscetível de retratação” (José Celso de Mello Filho. Constituição Federal Anotada. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 224).

Ele, por absurdo, não poderá vetar a lei.


3. O VETO NO BRASIL

O veto, que pode ser total ou parcial, é a recusa do Presidente da República de sancionar o projeto de lei. Sendo antítese da sanção, ele visa a coibir os excessos do Poder Legislativo, obrigando-o a reexaminar a matéria impugnada.

Com o veto, o Presidente da República nega a aquiescência à formação da lei, por entendê-la inconstitucional ou por contrária ao interesse público.

Aliás, desde 1891(Constituição Federal, artigo 37, § 1§), restringem-se os casos de veto: a) a inconstitucionalidade do projeto; b) a ofensa aos interesses nacionais.

Ensinou Paulino Ignácio Jacques (Curso de Direito Constitucional, 9ª edição, pág. 263) que é uma instituição própria do governo presidencial, que se desenvolveu e se aperfeiçoou nos Estados Unidos. Afasta-se o veto do modelo antigo romano, exercido pelos tribunos plebei, e com o qual invalidaram o senatus consultus.

Trata-se de poder e direito porque o seu exercício depende da vontade do Presidente da República, que é manifestada de acordo com a Constituição.

O veto é a recusa do presidente da República de sancionar o projeto de lei. Antítese da sanção, ele visa a coibir os excessos do Poder Legislativo, obrigando-o a examinar a matéria impugnada. É uma instituição própria do presidencialismo que se desenvolveu e que veio a se aperfeiçoar nos Estados Unidos, como disse Mason (The veto power).

Historicamente, ainda ensinou Paulino Jacques (obra citada, pág. 264), foram conhecidos três espécies de veto: o absoluto, o suspensivo e o restitutório. O absoluto, vigente ao tempo do tribunato romano, consistia na oposição irrevogável dos tribunos aos decretos do Senado; o segundo, o suspensivo, foi fruto do constitucionalismo anglo-americano (1689 – 1776), suspendia a vigência da lei até nova deliberação; o restitutório, que foi inaugurado na República de Weimar, submetia ao povo, em plebiscito a solução da controvérsia.

No Brasil, o veto pode ser suprimido pelo Legislativo, por maioria absoluta de cada uma das Casas reunidas em sessão conjunta, no prazo de trinta dias, contados de seu recebimento pelo Presidente do Senado (artigo 66, § 4º). É o caso de veto relativo, e não de veto absoluto, como já observara Celso Ribeiro Bastos (Curso de direito constitucional, 11ª edição, pág. 314).


4. O PODER DE VETO NO SISTEMA CONSTITUCIONAL PORTUGUÊS

Vejamos a prática em Portugal.

O Presidente não é, contudo, obrigado a promulgar, pelo que pode, em certos termos, ter uma verdadeira influência indireta sobre o conteúdo dos diplomas.

Com efeito, uma vez recebido um diploma para promulgação, o Presidente da República pode, em vez de o promulgar, fazer outras duas coisas: se tiver dúvidas quanto à sua constitucionalidade, pode, no prazo de 8 dias, suscitar ao Tribunal Constitucional (que terá, em regra, 25 dias para decidir) a fiscalização preventiva da constitucionalidade de alguma, ou algumas, das suas normas (exceto no caso dos Decretos Regulamentares) - sendo certo que, se o Tribunal Constitucional vier a concluir no sentido da verificação da inconstitucionalidade, o Presidente estará impedido de promulgar o diploma e terá de o devolver ao órgão que o aprovou.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Ou pode - no prazo de 20 dias, no caso de diplomas da Assembleia da República, ou de 40 dias, no caso de diplomas do Governo, a contar, em ambos os casos, ou da recepção do diploma na Presidência da República, ou da publicação de decisão do Tribunal Constitucional que eventualmente se tenha pronunciado, em fiscalização preventiva, pela não inconstitucionalidade - vetar politicamente o diploma, isto é, devolvê-lo, sem o promulgar, ao órgão que o aprovou, manifestando, assim, através de mensagem fundamentada, uma oposição política ao conteúdo ou oportunidade desse diploma (o veto político também pode assim ser exercido depois de o Tribunal Constitucional ter concluído, em fiscalização preventiva, não haver inconstitucionalidade).

O veto político é absoluto, no caso de diplomas do Governo, mas é meramente relativo, no caso de diplomas da Assembleia da República. Isto é: enquanto o Governo é obrigado a acatar o veto político, tendo, assim, de abandonar o diploma ou de lhe introduzir alterações no sentido proposto pelo Presidente da República, a Assembleia da República pode ultrapassar o veto político - ficando o Presidente da República obrigado a promulgar, no prazo de 8 dias se reaprovar o diploma, sem alterações, com uma maioria reforçada: a maioria absoluta dos Deputados, em regra, ou, a maioria da 2/3 dos deputados, no caso dos diplomas mais importantes (leis orgânicas, outras leis eleitorais, diplomas que digam respeito às relações externas, e outros).

Assim, em Portugal, no caso do Tribunal Constitucional se pronunciar pela inconstitucionalidade, o Presidente da República, os Ministros da República, como ensinou J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional, Teoria da Constituição, 4ª edição, pág. 999), devem vetar os diplomas que previamente forem considerados inconstitucionais (o veto por inconstitucionalidade), e devolvê-los ao órgão que os tiver aprovado (Assembleia da República, Governo, Assembleias Regionais), nos termos do artigo 279, º/1). Por sua vez, o veto do PR ou dos Ministros da República é um veto suspensivo que pode ser superado pela expurgação da norma considerada constitucional e pela confirmação do decreto, pela maioria de dois terços dos deputados presentes.

Ora, em Portugal, há um sistema governamentalista e um regime semi-presidencialista. Tal não ocorre no Brasil, onde a figura que trouxemos acima não se aplica.

Sob a Constituição de Portugal de 1822, havia um veto real. Limitada às leis (ou outras atribuições das Cortes, não dependiam da sanção real), a sanção do rei traduzia-se não num verdadeiro direito de sanção, mas num direito de veto unicamente suspensivo (o veto era suspenso por nova deliberação maioritária das Corte, e desta segunda decisão confirmadora das Cortes, o Rei daria “logo sanção”, nos termos do artigo 110. A eventual possibilidade de veto de bolso era resolvida estipulando-se que, se no prazo de um mês, “O Rei não der sanção à lei, ficará entendido que, a deu, e se publicará”, e se o Rei recusar a assiná-la, as Cortes manda-las ao publicar em nome dele(artigo 114).

O sistema constitucional do Brasil desconhece o veto por inconstitucionalidade dos Ministros da República, que é superado, em Portugal, por expurgação ou confirmação por maioria de 2/3 dos deputados das assembleias regionais, se se entender haver um regime paralelo ao dos decretos da Assembleia da República. No sentido contrário – isto é, no sentido da admissibilidade de conformação pelas ARs de diplomas vetados – poderá lançar-se a inexistência de conformação pelas ARs de diplomas vetados – poderá invocar-se a inexistência de qualquer paralelismo entre a Assembleia da República e Tribunal Constitucional e ARS/TC no paralelogramo organizatório constitucionalmente definido.

Em Portugal, o veto de inconstitucionalidade pode ser superado por expurgação ou confirmação por maioria qualificada (artigo 279, º 2º).


5. CONCLUSÕES

De toda sorte, esse incomum veto à lei, que foi objeto de ADPF, é uma patologia do sistema de formação da norma jurídica no Brasil.

Fica para a matéria a lição de Pontes de Miranda:

“Não há dois vetos ao mesmo ato legislativo. (...) Se o Presidente da República veta, em parte, a lei, ou pelos fundamentos a ou b, não mais pode promulgar a lei na parte vetada, nem pretender que se atenda a qualquer fundamento c ou d. Nem, a fortiori, vetar toda a lei e, depois, promulgá-la. Se publica a lei como promulgada (sanção positiva), no todo ou em parte, a publicação posterior com a indicação de veto de alguma parte, ou de outra parte, é juridicamente inexistente. O que foi publicado é lei; o poder sancionador do Presidente da República exauriu-se. Para se declarar que a nova publicação é inexistente, não se precisa de maioria absoluta dos juízes do tribunal (art. 116 [da Emenda Constitucional n. 1/1969]), porque não se trata de ato existente e nulo. Lei é o que se promulga. Se o Presidente da República veta a lei, no todo, ou em parte, não pode mais promulgar o que vetou. O Congresso Nacional não deve, sequer, levar em consideração fundamentos novos para vetar. O poder sancionador exerce-se de um acto, punctualmente. Não cabe publicarem-se pela segunda vez, ou outra vez, os textos, porque não se admitem correções às leis que não sejam de revisão (erros tipográficos, ou de cópia), em relação à letra do projeto que foi à sanção.”

(PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n. 1 de 1969. Tomo III (arts. 32-117). 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, pp. 187-188).

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Não cabe ao Presidente da República vetar material legislativo já sancionado, promulgado e publicado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6246, 7 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84463. Acesso em: 16 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos