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A proteção da imagem da menor diante de fato concreto

19/08/2020 às 15:55
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A garota de dez anos que foi estuprada pelo tio, entre os seis e dez anos, e que estava grávida, foi submetida, no Recife, a um procedimento cirúrgico para abortar. E, mais uma vez, o extremismo religioso fez seu teatro.

A garota de dez anos, que foi estuprada pelo tio, entre os seis e dez anos, e que estava grávida, foi submetida, no Recife, a um procedimento cirúrgico para abortar. Trata-se de um crime de estupro, na forma continuada, cometida contra vulnerável. Será caso de prisão preventiva (artigo 312 do CPP) desse homem que se encontra foragido.

O hospital onde foi feita a cirurgia é uma referência para o caso.

O que admirou foi a forma de pressão contra a família da menina para que ela não fizesse o aborto, por conta de pessoas que se apresentavam como religiosas.

Incitou-se o protesto na porta do hospital com palavras agressivas contra os profissionais de saúde, envolvidos no aborto, e ainda a família da menor.

No Espírito Santo, os médicos se recusaram a fazer a operação, apesar de uma autorização judicial para tal, na forma do Código Penal, cuja constitucionalidade foi referendada pelo STF. 

Deveriam, certamente, pressionar as autoridades para que esse criminoso fosse preso.

A chegada da menina em Recife causou protestos pró e contra o aborto em frente ao hospital no domingo, dia 15/8. Grupos cristãos fizeram rodas de oração e chamaram os médicos do hospital de “assassinos”. A Polícia Militar precisou intervir para encerrar o tumulto.

Segundo a Folha de São Paulo, em seu site, no dia 18 de agosto de 2020, “o homem suspeito de estuprar e engravidar uma menina de 10 anos foi preso na madrugada desta terça (18) na cidade de Betim, região metropolitana de Belo Horizonte (MG), segundo o governador do Espírito Santo, estado onde o crime aconteceu.”

Não se pune o aborto:

a) se não há outro meio para salvar a vida de gestante (aborto necessário);

b) se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Pois bem.

A extremista bolsonarista Sara Giromini, conhecida como Sara Winter, e os demais que divulgaram a identificação da criança capixaba de dez anos que teve o aborto autorizado pela Justiça devem ser investigados por ilícitos cometidos diante do ECA e do Código Penal.

O artigo 17 do ECA (lei nº 8.069 de 13 de Julho de 1990) afirma que o "direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais".

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) veda a veiculação de notícias que permitam a identificação de adolescentes infratores, inclusive nas hipóteses em que o texto forneça elementos isolados que, ao serem conjugados, possibilitem a identificação indireta do menor.

Com base nesse entendimento, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça condenou a revista Veja Brasília por ter publicado uma reportagem com elementos capazes de identificar menores infratores.

De acordo com o ministro Og Fernandes, a vedação prevista no ECA proíbe a divulgação de qualquer elemento que permita a identificação direta ou indireta do adolescente que tenha cometido ato infracional. O ministro disse que o entendimento do STJ é de que a proteção ao adolescente infrator vai além do nome ou da imagem, devendo sua identidade ser preservada de forma efetiva e integral.

É de se notar que a norma não afirma a necessidade de a identificação ser viabilizada ao público em geral; ao contrário, bastaria que a informação divulgada tivesse o potencial de, por exemplo, permitir a um vizinho, colega, professor ou parente do adolescente infrator, o eventual conhecimento de seu envolvimento em situações de conflito com a lei para configurar-se a violação da garantia do ECA”, explicou.


O julgamento se deu no REsp 1.636.815.

Ainda podem ser apontados para o caso os artigos 143 e 247 do ECA, que dizem expressamente que nenhuma pessoa está autorizada a mencionar o nome ou imagem de uma criança sem autorização.

O parágrafo único do artigo 143 daquele diploma determina que:

“Qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança ou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco, residência e, inclusive, iniciais do nome e sobrenome”. (Redação dada pela Lei nº 10.764, de 12.11.2003).

Tem ainda o artigo 247 do ECA que determina pena(preceito secundário) para tal conduta:

Art. 247. Divulgar, total ou parcialmente, sem autorização devida, por qualquer meio de comunicação, nome, ato ou documento de procedimento policial, administrativo ou judicial relativo a criança ou adolescente a que se atribua ato infracional:

Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.

§ 1º Incorre na mesma pena quem exibe, total ou parcialmente, fotografia de criança ou adolescente envolvido em ato infracional, ou qualquer ilustração que lhe diga respeito ou se refira a atos que lhe sejam atribuídos, de forma a permitir sua identificação, direta ou indiretamente.

§ 2º Se o fato for praticado por órgão de imprensa ou emissora de rádio ou televisão, além da pena prevista neste artigo, a autoridade judiciária poderá determinar a apreensão da publicação ou a suspensão da programação da emissora até por dois dias, bem como da publicação do periódico até por dois números.

(Expressão declarada inconstitucional pela ADIN 869).

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É preciso ainda investigar se Sara Giromini pode ter cometido crimes contra a honra tanto da menina quanto dos médicos que chama de "aborteiros".

Poder-se-á ainda alegar que não houve crime de incitação ao crime, pois o que se fez foi incitar para protesto, algo diverso da conduta criminal.

O crime de incitação, crime contra a paz pública, pode ser praticado por qualquer meio idôneo de transmissão de pensamento (palavra, escrito ou gesto). Não basta uma palavra isolada ou uma frase destacada de um discurso ou de um escrito. A incitação deve referir-se à prática de um crime (fato previsto pela lei penal vigente como crime) e não mera contravenção. Deve a incitação se referir a um fato delituoso determinado, exigindo o dolo genérico, sendo crime formal que se consuma com a incitação pública, desde que seja percebida ou se torne perceptível a um número indeterminado de pessoas, independentemente de qualquer outro resultado ou consequência da incitação.

Repita-se que é indispensável que se trate de fato determinado (e não de instigação genérica a delinquir)

O crime é formal e se consuma como incitação pública que seja percebida ou se torne perceptível a um número indeterminado de pessoas independente de qualquer outro resultado ou consequência da incitação. É possível a tentativa quando se trata de incitação oral. Assim, consuma-se o crime com a simples incitação, com a incitação pública (RT 718/378). Mas, repita-se: é indispensável, porém, que um número indeterminado de pessoas tome conhecimento da incitação, ainda que seja dirigida a pessoas determinadas.

O crime é de perigo presumido.

O dolo é genérico que consiste na vontade conscientemente dirigida à incitação à prática de um crime determinado, já que não exige um especial fim de agir. Tal consciência corresponde a sua seriedade, que é elemento indispensável e fundamental para que a pessoa possa reconhecer o fato, bastando que o agente saiba poder causá-lo e assuma o risco de produzi-lo.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A proteção da imagem da menor diante de fato concreto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6258, 19 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84728. Acesso em: 28 mar. 2024.

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