Ecoam, no mundo jurídico, os contornos traçados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 3.807, a respeito da constitucionalidade do art. 48, §3º, da Lei 11.343/06[1], onde restou assentada a premissa de que “o termo circunstanciado não tem natureza investigatória” e, nessa linha, “a sua lavratura não seria função privativa de polícia judiciária”, podendo ser realizada, inclusive, pelo próprio juiz.
Inicialmente, destacamos um equívoco interpretativo quando se nega a natureza investigatória do termo circunstanciado, tendo em vista que a sua função é exatamente a de substituir o inquérito policial, formalizando atos à apuração da responsabilidade penal pela prática de infrações penais de menor potencial ofensivo. Não raras vezes, aliás, se torna imprescindível a requisição de perícia técnica, dados cadastrais ou outros atos de cunho investigatório que são tipicamente de polícia judiciária.
Não há dúvidas de que o termo circunstanciado ingressou no ordenamento jurídico em substituição ao inquérito policial nos casos definidos pela Lei 9.099/95, não perdendo a sua essência de formalização prévia do fato, demandando uma valoração jurídico-penal, baseada em um juízo de tipicidade penal, o que deve ser desempenhado pelo delegado de polícia, uma vez que, no sistema acusatório, durante a persecução penal extrajudicial, essa função jamais pode ser exercida pelo juiz.
O termo circunstanciado, assim, trata-se de outro procedimento previsto em lei para materializar uma investigação de natureza criminal, mesmo que perfunctoriamente, e, sendo assim, deve ser presidido pelo delegado de polícia. Aliás, o art. 92 da Lei 9.099/95 refere que “aplicam-se subsidiariamente as disposições do Código Penal e de Processo Penal, no que não forem incompatíveis com esta Lei”. E, a natureza dos atos que compõem um procedimento prévio de todo e qualquer processo-crime, no ordenamento constitucional vigente, não é incompatível com a lei dos Juizados Especiais, pelo contrário, hermeuticamente é sistemático. Em outras palavras, aquilo que é investigação criminal não deixa de ser, apenas por seguir o rito sumaríssimo.
O próprio Supremo Tribunal Federal, em decisões passadas, já havia definido que à Polícia Militar, v.g., não incumbe a apuração de infrações penais comuns, não podendo, portanto, instaurar o termo circunstanciado ou realizar quaisquer atos de polícia judiciária[2]. Ainda, em outro julgado, havia se fixado o entendimento de que a atividade de polícia judiciária compete à Polícia Civil, sendo dela a atribuição para o termo circunstanciado, sob pena de usurpação de sua função[3].
Nessa linha, em que pese a conclusão do STF no julgamento da ADI 3.807, é certo que a confecção do termo circunstanciado por qualquer órgão que não seja a polícia judiciária é um fato grave e que afronta o Estado Democrático de Direito, haja vista tratar-se de um procedimento investigatório, ainda que simplificado. E, sendo um procedimento investigatório, o fato de ser lavrado por um juiz, avilta as bases de todo o sistema acusatório, notadamente após as alterações do pacote anticrime, onde o juiz está impedido de praticar qualquer ato de ofício na fase preliminar.
Não se verifica compatível com a Constituição que o julgador final seja o responsável pela instauração do procedimento apuratório ou gestão da prova. O caminho mais lógico a ser seguido pelo STF, até em respeito a sua própria jurisprudência, seria decidir pela inconstitucionalidade da lei de drogas no que se refere ao permissivo para atuação do juiz na confecção do termo circunstanciado ao usuário de drogas.
E não se diga que esse procedimento já é preconizado na Lei 9.099/95, pois lá, o legislador determina que a autoridade policial lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao JECrim, providenciando-se as requisições necessárias. Não há previsão de atuação positiva do juiz nesse momento da persecução penal, nem poderia haver, conforme referimos, pois a opção do legislador constitucional foi a de dividir claramente todas as funções da persecução penal.
É certo que os parágrafos do art. 48 da Lei de Drogas parecem dar ênfase ao consumo pessoal enquanto problema de saúde pública, daí a vedação da prisão em flagrante (mas não da captura[4]). Entretanto, a despeito de não ostentar pena privativa de liberdade (mote do não encarceramento), o tipo penal referido ainda é incriminador, tanto é que o próprio legislador, ciente da realidade estrutural do Poder Judiciário no Brasil, previu expressamente uma exceção que viraria regra, i.e., a apresentação do autor do fato a desde sempre presente autoridade de polícia judiciária.
Ademais, o próprio Poder Judiciário já foi instado a manifestar-se nesse sentido, isso diante de um já esperado arremedo de conflito negativo sobre o tema, decidindo a Juíza de Direito do Plantão da 1ª Região do Estado do Estado do Espírito Santo (após requerimento formal do Centro Integrado de Operações e Defesa Social) que diante da realização do Plantão Ordinário de forma remota (o que é regra), estaria a autoridade policial autorizada a lavrar o competente Termo Circunstanciado com as cautelas de estilo[5], o que sempre foi feito, independente da existência de prévia manifestação do STF.
No entanto, ainda que exista notável balizamento constitucional das atribuições institucionais e cristalino apontamento principiológico acerca do sistema acusatório, o Supremo decidiu que não há ofensa aos mandamentos constitucionais na instauração do procedimento preliminar da persecução penal pelo juiz, e, mais, quando se tratar do usuário de drogas, o juiz possui primazia sobre a autoridade policial nesse mister.
Não bastasse isso, há outro erro primário de ordem técnica e prática, qual seja, a definição da tipificação inicial de quando se configura porte de drogas para consumo e quando se configura tráfico, no momento do registro do fato, compete ao delegado de polícia, pois é este quem detém informações sobre eventuais investigações em andamento sobre tráfico ilícito de drogas.
É necessário lembrar que a pequena quantidade de droga não é o único requisito legal a ser observado para a classificação jurídica do fato, de modo que a própria lei das drogas apresenta extenso rol de critérios que as autoridades devem levar em conta, i.e., quantidade e natureza da substância apreendida, o local e as condições da ação criminosa, as circunstâncias da prisão, a conduta, a qualificação, circunstâncias sociais e pessoais do imputado e os seus antecedentes.
Além disso, deve-se fazer a imprescindível verificação sobre a existência de suspeição de envolvimento do agente com o tráfico de drogas ou, mais, sobre a existência de investigação criminal já em andamento pela polícia judiciária, sob pena de se autuar como usuário pessoa com envolvimento na traficância, lavrando-se erroneamente termo circunstanciado e apreendendo-se a droga que seria a materialidade do tráfico.
Repetimos, é o delegado de polícia a única autoridade que tem permissão constitucional e acesso a dados investigatórios imprescindíveis para fazer a correta adequação típica inicial. Ademais, realisticamente falando, ainda que a pessoa flagrada com drogas não seja traficante, certamente possui ricas e valiosas informações sobre o tráfico, sendo o momento da formalização do registro da ocorrência, na Delegacia de Polícia, uma oportunidade ímpar para que o delegado, ou seus agentes, tenham a oportunidade de obter detalhes da traficância.
Nessa esteira, para nós, além de conter vícios de interpretação quanto à natureza do termo circunstanciado e das atribuições do Poder Judiciário no sistema acusatório, a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 3.807 demonstra nítido desconhecimento dos seus ministros da realidade fora de seus gabinetes, por acreditar que a distinção entre usuário e traficante será eficazmente feita pelo agente que realizar a abordagem ou, então, pelo juiz, no ato da sua apresentação imediata[6].
Notas
[1] Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2425065. Acesso em 13/08/20.
[2] STF, Tribunal Pleno, ADI 3.614, Rel. Min. Carmen Lúcia, DJ 23/11/2007.
[3] STF, RE 702.617, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 31/08/2012.
[4] “Não pode e não deve a autoridade, além do tempo necessário àquelas providências de polícia judiciária (edição de termo circunstanciado e de compromisso, apreensão da droga, requisições de exames), manter o indivíduo na delegacia de polícia, constituindo-se o seu prolongamento desnecessário na sobredita detenção, explicitamente defesa” (Considerações Sobre a Nova Lei 11.343/2006: Nova Lei de Drogas – Seminário da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra” – 2006).
[5] Processo: 0009161-32.2020.8.08.0035 (Poder Judiciário do Espírito Santo – Plantão 1ª Região).
[6] Lembre-se que nem o agente da abordagem e nem o juiz possuem acesso a dados, informações e eventuais investigações criminais em andamento na polícia judiciária, pelo que o delegado de polícia é a única autoridade capaz de, nesse momento, verificar com maior propriedade a situação jurídica daquele que for flagrado portando drogas.