INTRODUÇÃO
Nos termos do artigo 71, inciso I, da Carta de Outubro, cuja simetria tem sido respeitada pelas Constituições Estaduais, as Instituições Constitucionais de Controle apreciam as contas dos Chefes do Executivo por meio da emissão de parecer prévio.
A prevalência deste parecer é regra, cuja exceção depende da manifestação expressa de dois terços dos Membros das Câmaras Municipais em sentido contrário.
Nesta quadratura, estudo elaborado por servidores do Tribunal de Contas do Estado da Paraíba[1] concluiu que 78% dos pareceres prévios emitidos por aquela Corte foram acolhidos pelo Poder Legislativo. Ademais, sugestionou-se a possível nulidade dos outros julgados, não aderentes, notadamente pela distância de qualquer fundamentação fática e jurídica:
“Aos Legislativos, no momento de finalizar o processo de julgamento das contas de Governo do Executivo, não é dado simplesmente o poder de não aceitar de forma a ignorar o Parecer Prévio, omitindo-se de julgá-lo ou desprezar seu conteúdo sem expressar, motivada e tecnicamente, as razões pelas quais o fazem. Em qualquer destas duas hipóteses, a conduta do Parlamento será ilícita (FERRAZ, 1999).”
“A real fundamentação de um julgamento é requisito essencial da decisão, pois sua ausência acarreta a sua nulidade, tendo em vista afronta ao sistema de garantias contido na Constituição Federal.”
As razões daquele apontamento (inexistência de fundamentação ao ato que veta o parecer técnico do Tribunal de Contas) são robustas a ponto de seduzir o estudo a respeito da forma como a “não prevalência” do parecer prévio, grafada no texto constitucional, deve se dar. Teria o ato das Câmaras a necessidade de ser motivado? Caso assim não se proceda, quais as consequências do ato que imotivadamente não adere ao trabalho técnico elaborado pelo TCE?
PARECER PRÉVIO E INELEGIBILIDADE
O artigo 14, da Constituição Federal, estabeleceu que a inelegibilidade necessita de regulamentação específica:
Art. 14. (...) § 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.
Trata-se da Lei Complementar Federal n.º 60/90 (com alterações produzidas pela Lei Complementar n.º 135/2010) que, naquilo que importa aos Tribunais de Contas e a toda celeuma que se instala sobre as consequências de seus pareceres prévios, orientou no artigo 1.º, I, “g”, que as irregularidades insanáveis, as quais configurem ato doloso de improbidade administrativa, resultam em inelegibilidade.
Em que pese a tentativa de se esclarecer a distinção existente entre os atos de gestão e os atos de governo (Incisos I e II do artigo 71, da CF/88) e apesar de isto ter sido perfeitamente compreendido por alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal, a maioria daquela Corte entendeu que qualquer das hipóteses imaginadas pelo constituinte originário para a apreciação das contas dos Chefes de Executivo deveria ser definitivamente decidida pelo respectivo Poder Legislativo (RE 1.231.883 e RE 848.826)
Restou dito, ainda, que os Tribunais de Contas não teriam competência para se debruçar sobre o mérito de o ato ser ou não doloso e, ademais, sobre a possibilidade de o Prefeito estar ou não inelegível. Para o STF, as hipóteses devem ser identificadas pelo Poder Judiciário.
Registre-se que nenhum retoque foi feito sobre o envio de simples listas ao Tribunal Regional Eleitoral, contendo os nomes dos Prefeitos e Governador cujas contas se entendam eivadas de irregularidade insanável e irrecorrível.
Estabelecidos os limites de atuação, e mesmo tendo em conta as elogiáveis tentativas de se manter determinadas atribuições (verificações incidentais diante da existência de precedentes junto às Cortes Superiores, por exemplo), entende-se que a melhor solução é aceitar o cenário imposto pelo STF, passando a buscar a aderência dos pareceres prévios, voltando os olhos para a nulidade do ato que injustificadamente o contraria.
Relembre-se que diversas distinções já foram imaginadas e buscadas pelos Tribunais de Contas e também pela ATRICON. Cite-se como exemplo a bipartição de um ato administrativo entre Parecer Prévio (inelegibilidade) e Acórdão de Julgamento (imputação de multa e ressarcimento) e atualmente a diretriz para que o documento volte a ser único, sem prejuízo da abertura de cadernos autônomos de apuração de responsabilidade (Res. n.º 002/2020-Atricon).
Todas as preocupações são válidas (inclusive aquela que se debruça sobre a politização dos pareceres prévios), mas insista-se que os fundamentos adotados pela Suprema Corte e toda a intenção daquele Colegiado são claros. Os Tribunais de Contas devem se debruçar sobre a técnica da prestação, deixando a cargo do Poder Judiciário e Legislativo as questões da improbidade dolosa e inelegibilidade, inclusive no que tange ao necessário referendo pela Câmara Municipal dos julgamentos proferidos pelos TC´s aos Chefes do Executivo. Esforçar-se na contramão será absolutamente contraproducente.
ATO POLÍTICO, ADERÊNCIA, MOTIVAÇÃO E DEFERÊNCIA
Quanto aos pareceres prévios, portanto, considerando que a última palavra quanto às contas do Chefe do Executivo será das Câmaras e Assembleias, deve-se partir para a análise dos atos advindos do Legislativo, em específico sobre aqueles atos políticos imotivadamente contrários ao entendimento técnico dos Tribunais.
Perceba que a ideia de atos políticos desprovidos de motivação é no mínimo estranha, devendo-se distinguir os conceitos de discricionariedade e arbitrariedade. Acredita-se que apesar de o ato político ter um viés discricionário, não pode ser realizado sem motivação, sobretudo quando contrário a um ato técnico.
A motivação é exigência no atual ordenamento, buscando examinar se as intenções estão condizentes com o interesse público ou representam, no mínimo, uma pré-compreensão equivocada do agente, contrária às atribuições de seu cargo.
Os atos políticos, desta maneira, devem passar por um controle superficial de sua proporcionalidade e razoabilidade. Sendo verdadeira a afirmação de que não se pode determinar qual e quando o ato político deve ser editado, há a necessidade de analisar se ele obedeceu a parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade, tornando-o compatível com a ordem jurídica[2].
Nesse contexto, a simples ausência de fundamentação (que já implica em falta de transparência no tocante às razões de fato e de direito que embasam o comportamento do Estado) nega vigência a garantias constitucionais basilares, comprometendo a necessária publicidade, justamente como no caso da rejeição por Câmaras Municipais aos pareceres prévios emitidos pelos Tribunais de Contas (relembre-se que se está a tratar sobre aquelas rejeições sem qualquer motivo).
O descumprimento do dever de indicar os motivos significaria ofensa da autoridade ao direito subjetivo público de todo cidadão ver revelados os pressupostos de fato ou de direito que permitiram ou exigiram o comportamento do agente, concluindo-se que, mesmo que a derrubada de um parecer prévio por parte das Câmaras seja um ato político, ele precisa ser motivado, até como forma de dar efetividade ao devido processo legal mencionado pela Suprema Corte no AgReg. no RE 414.908-MG[3] (o chefe do executivo precisa amplamente se defender e, por conseguinte, precisa igualmente saber quais as razões levaram o colegiado legislativo àquele entendimento).
Destaque-se, no mesmo sentido, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (n.º 2004459-16.2020.8.26.0000)[4] realizada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, donde também se pode retirar a ideia de que seria contrário à Carta de Outubro uma apreciação de parecer prévio despida de fundamentos. Esse afastamento da ordem jurídica seria igualmente ficto e, do mesmo modo, inconstitucional. Não há como se presumir quais as razões que levaram àquela conclusão (de aderência ou distanciamento ao parecer prévio).
Alerte-se, ainda, para a importância de se fundamentar frente ao princípio da deferência, qual seja, aquele que prega a prevalência da maior expertise, justamente como aquela que se vê destacada nos pareceres prévios.
Assim, em respeito à separação dos Poderes e a toda argumentação trazida pelo STF nos autos do já destacado Recurso Extraordinário, a opinião parlamentar quanto ao afastamento do trabalho técnico só prevalecerá quando devidamente motivada.
CONCLUSÃO
Deixando de lado as possíveis responsabilidades dos agentes políticos pela derrubada imotivada dos Pareceres Prévios emitidos pelos Tribunais de Contas, o que seria possível cogitar pela sistemática estabelecida entre o artigo 11, da Lei n.º 8.429/90 e o 7º, do Decreto n.º 201/67 (mesmo que a pretensão punitiva fique circunscrita à própria Câmara de Vereadores - consequência do artigo 29, inciso VIII, da Constituição Federal), é possível asseverar que o ato político do Poder Legislativo que opta pela não prevalência do Parecer Prévio do Tribunal de Contas é nulo nos casos em que ausente uma motivação.
Nesta senda, o artigo 2º, da Lei n.º 4.717/65: “São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de: (...) d) inexistência dos motivos;”. A obrigação também estaria disposta no artigo 20, parágrafo único, da LINDB.
Considerando que os pareceres prévios que desaprovam as contas dos Chefes do Executivo descortinam irregularidades que provocam, sem sombra de dúvidas, danos ao patrimônio público, não há como afastar a nulidade dos vetos operados pelas Câmaras Legislativas, contrários àquelas opiniões técnicas, quando o fazem, insista-se, sem motivação.
Com efeito, então, teria lugar a diretriz esculpida no artigo 71, inciso IX, da Constituição da República: “IX - assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;”
Verificados os prazos regimentais, previstos em leis orgânicas ou específicas, para que se conclua a apreciação do parecer prévio, os Tribunais de Contas se deparam com dois caminhos: a) determinar que as Câmaras Legislativas cumpram o prazo estabelecido pela própria edilidade para a apreciação; b) determinar, uma vez afastada a técnica do parecer prévio, que indique o motivo da discordância (art. 2º, da Lei n.º 4.717/65).
Em qualquer das hipóteses, a multa será a consequência por descumprimento e, nos casos em que não se motivar a derrubada, mesmo após advertência da Corte de Contas, a consequência será acionar sua capacidade judiciária para desconstituir os efeitos do ato de não prevalência do seu parecer prévio (notadamente nulo, mas que gera efeitos até a sua efetiva desconstituição)[5]. Outrossim, como se disse linhas atrás, provocar o Ministério Público para que verifique a apuração de responsabilidades.
REFERÊNCIAS
ALENCAR, Vania Cavalcante de. O controle jurisdicional dos atos políticos no Brasil - https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/o-controle-jurisdicional-dos-atos-politicos-no-brasil/
ANACOM – AUTORIDADE NACIONAL DE COMUNICAÇÕES. Legislação. Disponível em: <https://www.anacom.pt/>.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DO BRASIL. Texto Oficial. Planalto. Brasília. 2018.
JACOBY FERNANDES, J.U. Tribunais de Contas do Brasil: Jurisdição e competência. 4. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 4ª Ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2ª. Ed. São Paulo: Método, 2008.
PASCOAL, VALDECIR FERNANDES: Direito Financeiro e Controle Externo – Teoria, juris´rudência e 400 questões. 8. ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.
Notas
[1] A Aderência entre o parecer prévio do TCE-PB e o Julgamento das Câmaras Municipais: Um estudo no Estado da Paraíba. https://www.researchgate.net/publication/341373964_A_aderencia_do_julgamento_das_camaras_municipais_ao_parecer_previo_dos_tribunais_de_contas_um_estudo_no_Estado_da_Paraiba).
[2] O controle jurisdicional dos atos políticos no Brasil - Vania Cavalcante de Alencar https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/o-controle-jurisdicional-dos-atos-politicos-no-brasil/
[3] EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PREFEITO MUNICIPAL. CONTAS REJEITADAS PELA CÂMARA MUNICIPAL. DIREITO AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA. PRECEDENTES. 1. É pacífica a jurisprudência desta nossa Casa de Justiça no sentido de que é de ser assegurado a ex-prefeito o direito de defesa quando da deliberação da Câmara Municipal sobre suas contas. 2. Agravo regimental desprovido.
[4] “É inconstitucional o julgamento ficto das contas do Executivo”. Com esse entendimento, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo anulou parte de um artigo do Regimento Interno da Câmara Municipal de Ribeirão Pires, que estabelece que as contas anuais do prefeito devem ser julgadas em até 90 dias, considerando-se julgadas, nos termos do parecer do Tribunal de Contas, se a Câmara não deliberar nesse prazo.
[5] Curso de Direito Processual Civil, Vol. 01, pág. 227 – Jr, Fredie Didier.