3. O empoderamento e a visibilidade: os dois pressupostos imprescindíveis no lutar por reconhecimento e igualdade de gênero na pesca.
Antes de adentrarmos em um estudo mais aprofundado, para evitar interpretações antagônicas e não condizente com o real sentido por detrás de cada termo, é irrefutável a necessidade de alguns esclarecimentos, isso porque não existem palavras em vão, isto é, as palavras não são apenas justapostas para, no contexto, coadunar com a sonoridade ou algo do tipo, cada uma delas, ao ser colocada ao lado da outra, em um título de uma dissertação, de um artigo, ou outro estudo acadêmico-científico, carrega uma força significante avassaladora, quer seja para o bem, quer para o mal.
Não se estar aqui querendo atiçar ou defender uma visão tacanha e maniqueísta do mundo cientifico, dividindo-o no que é certo ou errado, muito pelo contrário, as pluralidades do pensamento devem ser respeitadas e estudas, pois só uma visão geral do assunto, a partir de uma ponderação multisciente, pode-nos levar a conhecer e entender a importância e força das palavras no processo do conhecimento ao qual se estar estudando.
Nesse entender, é imperioso trazer informação acerca de qual o método científico usado, isso porque, a presença do método científico, em qualquer trabalho que ambicione o status científico, é crucial, sendo assim, mesmo ao tratar de ciências humanas, sociais e jurídicas, o método científico é indispensável e sobre o assunto, podemos citar Zago (2013), que define o método dialético:
Atingir o concreto pelo pensamento, através da mediação, não significa aderir ao idealismo. O método materialista histórico dialético postula que apesar de o conhecimento ser construído pelo pensamento ele ainda assim é social [...] O método dialético irá justamente buscar as relações concretas e efetivas por trás dos fenômenos. Sobre esta posição marxiana escreveu Walhens (apud Kosik 1976 p.17): “O marxismo é o esforço para ler, por trás da pseudoimediaticidade do mundo econômico reificado as relações inter-humanas que o edificaram e se dissimularam por trás de sua obra.” ( ZAGO, 2013, p. 117 e 115).
A forte presença do método dialético, em nosso estudo, é inegável, contudo, o método dialético, per si, não é suficiente para conferir a metodologia cientifica necessária, por isso, destacamos também a necessidade de aplicação do método científico fenomenológico, que nos dizeres de Tourinho (2017), em linhas gerais, é definido como o método científico que dar a necessária importância aos fenômenos da consciência, os quais devem ser estudados em si mesmos, pois o saber do mundo resume-se, também, a esses fenômenos, a esses objetos ideais que existem na nossa mente, sendo que cada um é representado por uma palavra que traz a sua essência, a sua "significação". Tourinho (2017) continua ainda:
Conforme Husserl destaca, nas suas primeiras considerações a respeito do método fenomenológico, com a redução fenomenológica, passamos do fato individual para o que há nele de genérico. O exercício da redução fenomenológica assegura-nos a possibilidade de falarmos de uma eidética (ou de uma “doutrina de essências”). A redução fenomenológica exige-nos, como vimos, que tudo o que é transcendente possa ser submetido a um índice de nulidade, forçando-nos à abstenção de considerações sobre toda e qualquer posição de existência. Com isso, encontramo-nos em condições de exercer uma espécie de “técnica de variação imaginária dos objetos” (TOURINHO, 2017, p. 114 e 115).
Uma vez realizada as devidas considerações acerca dos métodos científicos empregados, nos concentramos, agora, no sentido de entender a importância do termo visibilidade para a temática do gênero na atividade pesqueira, ou seja, qual a importância da visibilidade da existência das mulheres pescadoras para a sua luta pela conquista de seus direitos sociais ou até mesmo de outras dimensões de direitos.
A visibilidade é de uma inexorável significância, porque traz a dimensão da existência, em outras palavras, o existir de fato, por si só, não é garantia de reconhecimento e conquista de direitos, pois é necessária o fenômeno da visibilidade. Existe um jargão que, mesmo sem aspirações cientificas, construído a partir de uma sabedoria popular, exprime de forma ilustrativa e alegórica, como fez Platão no Mito da Caverna, a informação que a falta de visibilidade causa no processo de luta por direitos, esse jargão é “quem não é visto, não é lembrado”.
Isso é um dos maiores prejuízo causados pela falta de visibilidade, que é não ser lembrado, ou melhor, que é não ter representatividade, seja na construção de políticas públicas, seja na criação de leis especificas para a categoria ou que a englobe respeitando suas peculiaridades. Nesse sentir, Soares (2012) deixar claro que:
Observamos que a luta pela existência civil das pescadoras no que tange à conquista de direitos não é algo específico do mundo da pesca. É inerente à própria organização histórica da sociedade, que engendra a exclusão e as desigualdades, excluindo não só as pescadoras, mas inúmeros outros segmentos, quer por etnia, cor ou gênero. (SOARES, 2012, p. 91).
Diante da afirmação esclarecedora da citada pesquisadora, bem como da leitura de sua dissertação de mestrado, somos levamos a constatar que a existência civil para as pescadoras estudadas por Soares, têm basicamente dois planos: um formal de existência enquanto pessoa natural, por meio de registro civil de nascimento (o que a todos são garantidos), e outros por meio de registros profissional e demais documentos associados a categoria de pescadora (que muitas vezes são lhes negados).
Nesse diapasão, é de grande valia trazermos à discussão que o plano da existência e visibilidade implicam, sobretudo, em como as pescadoras se veem, pois como elas irão se manifestar, tornando-se visíveis e pleiteando direitos, se elas mesmas não se veem como pescadoras ou permitem que lhes tirem seu título de existência enquanto pescadora, marginalizando-as como meras ajudadeiras. Corroborando essa argumentação Brasil (2015) e Almeida (2001), expõem que ainda que exercendo o papel principal ou atuando diretamente na pesca, o trabalho da mulher não é reconhecido, como o do homem. Para Almeida, geralmente por essas trabalhadoras serem esposas ou filhas de pescadores, seus trabalhos na limpeza e evisceração, na salga e comercialização do pescado, ou mesmo efetivamente pescando, é visto como ajuda, não como trabalho.
Para entendermos melhor essa dinâmica de invisibilidade é importante não olvidar que é um processo histórico e cultural, e conforme citado por Soares (2012), envolve, no entender de Simonian (1995), nos espaços dominantemente masculinos (como na pesca e seringal), a negação e o silêncio da participação feminina, ocorrendo um verdadeiro consenso de invisibilidade social realizado por parte tanto de atores locais, e pasmem, de estudiosos da área. Isso nos leva a considerar que, antes do processo de busca pela visibilidade, as mulheres pescadoras devem empreender um verdadeiro processo de empoderamento, autorreconhecimento e afirmação.
Adentrando mais detidamente nessa questão do empoderamente feminino, pode-se constatar que empoderamento é também um fenômeno social, sendo parte constitutiva de qualquer luta por igualdade seja de gênero ou não. É como uma espécie de embrião da visibilidade e luta, pois, para que as pessoas e sociedade, de um modo geral, prestem atenção em determinado fenômeno social existencial, é preciso VOZ, que seria a manifestação da existência, e as mulheres, ou qualquer outra categoria de atores sociais, só passam a ter essa voz, a partir do momento em que acreditam em si mesmos, em sua existência e se empoderam, sendo assim, a mulher pescadora amazônica de fato, só passa a ser ouvida quando ela mesma se reconhece como personagem principal trabalhadora da pesca.
Em um primeiro momento, esse autorreconhecimento pode aparentar ser um processo fácil, afinal, podem alguns argumentarem que, se elas de fato pescam, é normal que elas se definam como pescadoras, contudo, os fenômenos sociais não são simples, como os nossos estudos práticos irão demonstrar mais adiante, são dinâmicos e complexos e englobam uma série de variantes que não podem ser deixadas de lado na matemática social, daí a importância irrefutável dos métodos científicos dialéticos e fenomenológico.
Nesse proceder, dentre outros pontos, devemos ponderar que a mulher, como se demostrou em outro momento, vem sofrendo um processo histórico de dominação do gênero masculino, o que torna mais difícil o autorreconhecimento feminino e a consequente quebra com estigmas como a mulher não puder ser a principal provedora da família, isso ocorre porque o sexismo, infelizmente, ainda é forte e não deixa de ser cultural, tornando o processo de rompimento e quebra de paradigmas mais árduo e prolongado. Até porque existem contrafenômenos ou movimentos opostos ao empoderamento feminino, podemos, nesse assunto, citar Pinto (2011), que assim se manifesta:
Uma última noção antes de chegar ao reconhecimento: a de discriminação. Essa noção, em uma escala, é o ápice do desempoderamento – ou seja, a pessoa com menos poder é aquela mais discriminada. Ela é discriminada porque ela é mulher, porque é negra, porque é velha, porque é criança, porque é estrangeira. E o discriminado é exatamente aquele para quem o outro é que define a verdade sobre ele. Esse é o discriminado. (PINTO, 2011, p. 185).
Da leitura, podemos inferir que a discriminação é o ápice desse DESEMPODERAMENTO, ou seja, diante de argumentos e estudos como de Pinto (2011), podemos afirmar que há um movimento contrário a luta das mulheres por igualdade de gênero e direitos. Podemos e devemos, ainda, ir além, no sentido de constatarmos e afirmarmos que, diante da atual política governamental federal do Presidente Bolsonário, esse processo de desempoderamento feminino nunca esteve tão forte em nosso País desde a promulgação de nossa Constituição Cidadão de 1988, ou seja, esse sexismo tem ganhado espaço e colocando em perigo as lutas já dificultosas de grupos sociais como as mulheres pescadoras da Amazônia, seja por serem mulheres, seja porque também envolve questões socioambientais, e, como, mundialmente se alerta, a política governamental federal hodierna brasileira está em um processo de esvaziamento dos órgãos e consciência socioambiental.
Deixando, por hora, o triste cenário governamental federal, que não é nosso objeto principal, devemos esclarecer que o empoderamento feminino, no caso das mulheres pescadoras da Amazônia, é também um verdadeiro empoderamente das próprias comunidades ribeirinhas, e isso é tratado por Manesch et al. (2012), que afirma que:
As reivindicações de mulheres por reconhecimento de seus vários papéis – econômicos, sociais, políticos – tendem a significar empoderamento das comunidades no tocante ao controle dos recursos de que dependem. Isso porque tratam de trazer a gestão pesqueira para o nível local [...] em grande parte, esse reconhecimento depende de se explicitarem as desigualdades internas e externas às comunidades. Assim, quando as mulheres se dão conta de sua relevância como agentes econômicos e se constituem em agentes políticos, também criam ou reforçam as identidades de suas comunidades. (MANESCH et al., 2012, p. 722).
Diante dessas constatações, é nítido que a luta das mulheres pescadoras da Amazônia por direitos, reflete diretamente no desenvolvimento sustentável das próprias comunidades ribeirinhas da Amazônia. Isso ocorre, porque mulheres empoderadas que se impõem e explicitam a sua relevância para a comunidade local, bem como para economia do País, conquistam, inclusive, a ocupação dos espaços políticos de ampla dominação masculina. Fica claro que esse nosso entendimento coaduna com o pensar de Maneschy et al. (2012).