Resumo: Este artigo é uma breve análise crítica acerca do processo de luta pelo reconhecimento, igualdade de gênero e direitos das mulheres pescadoras da Amazônia, bem como da importância conclamativa do reverberar acadêmico-jurídico para essa luta, revelando que, ao longo da história, as mulheres têm passado por um processo de inferiorização e dominação por parte dos homens que ecoa, hodiernamente, nesse grupo social, sendo assim, indaga-se até que ponto essa evolução histórica está relacionada com a luta por igualdade e direitos dessas mulheres. Além disso, é uma reflexão social, legal e constitucional sobre o grau em que estamos nesse processo, expondo a dívida acadêmica do Direito, consubstancia-se, assim, em uma verdadeira conclamação científico-acadêmica, mormente para os estudiosos e pesquisadores das ciências jurídicas.
Palavras-chave: Reconhecimento. Igualdade. Mulheres pescadoras amazônicas.
Sumário: 1.Introdução. 2. A evolução histórica que ocupa a mulher na sociedade à luz do viés da igualdade de gênero e direitos. 3. O empoderamento e a visibilidade: os dois pressupostos imprescindíveis no lutar por reconhecimento e igualdade de gênero na pesca. 4. O reflexo da legislação brasileira em uma realidade prática Amazônica. 5. Em que grau estamos: a luta por igualdade de gênero e direitos das mulheres pescadoras amazônicas e a importância conclamativa do reverberar científico-acadêmico. 6. Considerações finais. 7. Referências.
1. Introdução.
Tratar de um tema que envolve uma realidade interdisciplinar complexa é um tanto quanto desafiador, pois é necessário expor o todo, sem ser vago demais. Nesse sentir, por escopo geral, tencionamos trazer uma breve análise crítica, porém, relativamente completa, acerca da luta pelo reconhecimento, igualdade de gênero e direitos das mulheres pescadoras da Amazônia e a importância conclamativa do reverberar científico-acadêmico.
Antes de tratar especificamente dessas mulheres pescadoras amazônicas, é forçosa a exposição de um estudo sobre a posição feminina, de forma geral, ao longo da história, verificando-se, assim, que historicamente as mulheres têm passado por um processo de inferiorização e dominação por parte dos homens, que ecoa hodiernamente nesse grupo social que estudamos, sendo assim, indaga-se até que ponto essa evolução histórica está relacionada com a luta por igualdade e direitos dessas mulheres pescadoras.
Uma vez realizado esse estudo histórico, direcionamos os nossos esforços a analisar especificamente as mulheres pescadoras da Amazônia, sobretudo, os dois pressupostos imprescindíveis do processo de luta dessas mulheres no que tange à busca por reconhecimento e direitos, bem como explicitar qual a importância desses pressupostos para esse fenômeno social, compreendendo melhor o significante de cada um deles, fazendo isso à luz do método científico dialético- fenomenológico, de grande valia para os estudos sejam eles sociais ou jurídicos.
Em seguida, por derradeira, objetivamos empreender uma análise acerca do grau em que estamos nesse processo de luta por igualdade de gênero e direitos dessas mulheres pescadoras da Amazônia, expondo algumas das possíveis reverberações desse conquistar, trazendo à discussão as nossas possíveis dívidas existentes para com essas mulheres, posicionando-se, então, de forma crítica e embasada, reverberando e conclamando, assim, os olhares de toda a comunidade cientifica para esse existir feminino na pesca, sobretudo o olhar das ciências jurídicas.
2. A evolução histórica que ocupa a mulher na sociedade à luz do viés da igualdade de gênero e direitos.
Antes de quaisquer comentários acerca das mulheres pescadoras amazônicas, é indeclinável que se empreenda um estudo, em linhas gerais, acerca da evolução da situação ocupada pela mulher na sociedade, bem como da conquista dos seus direitos ao longo das décadas, a fim de constatarmos o fosso expressivo entre o trabalho e direito da mulher em comparação com os homens. Esse estudo histórico, se faz necessário porque não se pode olvidar que o lutar pelos direitos é produto da história e, conforme entende Martins (2000), somente a partir de estudos histórico-culturais é que compreendemos com mais acuidade os problemas atuais.
O trabalho distinto de homens e mulheres não é coisa das sociedades modernas, podemos entender isso a partir de Barbugiani e Barbugiani (2014), que ao discorrerem sobre a mulher e a posição por ela ocupada, define que essa distinção de gênero vem desde os tempos primórdios da humanidade, isto é, essa configuração social hodierna é herança de um longo processo de seccionamento. Para a mulher caberia as funções domésticas, zelando pelo bem-estar de sua família ou cultivo de alimentos, no exercício da agricultura, ao passo que aos homens competiam a realização das funções públicas, políticas e econômicas para o sustento da família ou desempenho da caça e da pesca, no âmbito do campo.
Pode-se verificar, então, que desde as sociedades mais primitivas já havia divisão por gênero, contudo, podemos dizer, antagonicamente, que na Antiguidade, existiram civilizações com mais direitos e igualdade para as mulheres em relação aos homens, do que em sociedades mais modernas e “evoluídas” (entre aspas, pois devemos questionar qual seria realmente o critério para definir uma sociedade como mais evoluída).
Nesse diapasão, não obstante haverem muitos casos em que a mulher estava em posição inferior ao homem como na sociedade ateniense da Grécia Antiga, também há registros de situações em que as mulheres tinham uma situação bastante equitativa para a época, como, por exemplo, no caso das mulheres espartanas que tinham o direito de possuir e administrar bens, chegando a controlar dois quintos da terra[1]. As espartanas ainda gozavam da preocupação do Estado, elas tinham direito à educação, aprendiam a ler, a escrever, a tocar música e a dançar. Sendo que ainda tinham treinamento físico, praticavam esportes e participavam de competições.
No que tange à Antiga Roma, fica nítido que a mulher tinha uma posição relativamente boa em relação ao homem se comparada a outras civilizações da época ou mesmo a civilizações que vieram posteriormente. Acerca desse assunto João Arruda assim se manifesta:
[...] conseguiram as mulheres romanas a isenção de qualquer trabalho servil, e, particularmente, não eram obrigadas, no serviço doméstico, aos trabalhos da cozinha e da moagem. Façamos o paralelo da mulher romana com a mulher grega: enquanto a romana, na deductio in domun mariti, levava consigo a roca e o fuso, porque ela só se dedicava aos trabalhos de fiar e aos trabalhos domésticos elevados, e não servis, — a mulher grega, quando ia para a casa do esposo, levava consigo um utensílio de cozinha, para mostrar que ela iria trabalhar em todos os serviços da casa, e, particularmente, no serviço da cozinha, que era julgado vil pela mulher romana. A obrigação das romanas era fiar e tecer no atrium, criar os filhos, e dirigir, na qualidade de senhora, todos os serviços domésticos (ARRUDA, 1941, p. 196).
Prosseguindo na História, temos as sociedades medievais, que têm como marco inicial de sua Era a queda do Império Romano do Ocidente, no século V, e como marco final a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos em 1453. Além desses importantes marcos históricos, é preciso expor que, antes de quaisquer considerações acerca do papel da mulher nesse período, é crucial enfatizar que a partir de diversas leituras, pode-se perceber que os estudiosos e historiadores desse tema se dividem; uns possuem uma visão mais negativista sobre a posição da mulher medieval, e, na contramão, outros possuem um prisma mais positivo quanto a essa posição que ocupa a mulher na Idade Média.
Dito isto, dentre outros estudiosos da área, podemos fazer uso de Silva (2014), que analisou importantes historiadores como Le Goff[2] e Georges Duby[3], para entender melhor o papel da mulher medieval. E assim sendo, pode-se dizer que, segundo Le Goff a Idade Média compreendeu um período conhecido como Idade das Trevas, e também, ao mesmo tempo, a Idade da Luz. Já para Georges Duby, a Era da Idade Média era uma idade dos homens, isso porque o contar a História era coisa do sexo masculino, seja pelos seus testemunhos, seja nas páginas dos textos literários.
A leitura de Silva (2014) é de grande valia exatamente por essa ampla análise que ele faz da história da mulher na idade média a partir da visão de importantes historiadores como os citados. Nesse proceder, pode-se constatar que a mulher medieval, em determinado tempo, ocupa uma posição de extrema inferioridade em relação ao homem, sendo apenas tradicionalmente esposas, mães e filhas submissas, e em outro tempo, mormente a partir do século XII e XIII, ocupa uma posição mais de igualdade, pois há registros documentais da Paris do século XIII, nos quais mulheres são retratadas como exercendo profissões como professoras, médicas, boticárias, tintureiras, copistas, miniaturistas, encadernadoras, arquitetas, e até alguns papéis de liderança importantes, tais como abadessas e rainhas.
Sucedendo a Idade Média, tem-se a chamada Idade Moderna que se prolonga até a Revolução Francesa em 1789, nesse período, observa-se o detrimento do feudalismo e o surgimento do capitalismo e da burguesia. Essa transição de sistemas econômicos fundamenta grandes mudanças na situação ocupada pela mulher na sociedade, nesse sentir, o que se observa é que a posição da mulher moderna na sociedade e em sua família estava diretamente associado sua classe social.
Nesse norte, os historiadores, a partir da análise de documentos da época, qualificam as mulheres da Idade Moderna, de modo geral, em quatro estamentos sociais, a saber: as princesas, as burguesas, as nobres e as camponesas. As princesas eram submissas, e basicamente serviam como meio de alianças entre reinos. Já as mulheres burguesas ajudavam na economia familiar e trabalhavam nas oficinas têxteis. E as mulheres pobres eram as chamadas camponesas que faziam o trabalho doméstico e trabalhavam na agricultura e não possuíam basicamente nenhum direito. Diferentemente das nobres e aristocratas que administravam as suas casas, além de frequentar as cortes.
Diante das mudanças significativas ocorridas nesse período moderno, mormente a decadência do feudalismo, o surgimento da produção capitalista, o crescimento das cidades e da atividade comercial, pode-se constatar que a situação da mulher pobre camponesa se agravou, pois ela, só possuía sua mão de obra para ofertar. Nesse entender Campagnoli et al (2003), afirma que:
A valorização do homem e das ciências aumentou a exclusão social da mulher. Nesse contexto, as mulheres no mercado de trabalho tiveram oportunidades restritas. A necessidade de sobrevivência que as mulheres pobres enfrentaram não permitiu que estas deixassem de participar do mercado de trabalho. Em outras palavras, o trabalho da mulher, valorizado ou não, não deixou de existir. O quadro de desvalorização do trabalho da mulher agravou-se com o capitalismo, que submeteu a exploração da força de trabalho feminina ao processo de acumulação capitalista. (COMPAGNOLI et al, 2003, p. 140).
Corroborando o argumento de que as mudanças citadas anteriormente causaram uma verdadeira conflagração na vida da mulher contemporânea, pode-se dizer, sem medo de errar, que a Revolução Industrial é uma das grandes culpadas por essa conflagração. As mulheres passaram, junto com as crianças, a serem usadas massivamente como mão de obra disponível e barata para as fábricas, ficando mais evidente a diferenciação por gênero, assim, a luta da mulher não é só pelo direito de poder trabalhar em postos antes só ocupados por homens, mas, sobretudo, de poder trabalhar e ter os mesmo direitos dos homens.
Nesse proceder, a contemporaneidade é marcada pela luta da mulher por essa igualdade de gênero, seja no âmbito do direito do trabalho, seja nos demais campos como a política e o direito de votar e ser votada. Nas informações trazidas por Souza (2009) em seu artigo “Os direitos humanos das mulheres sob o olhar das Nações Unidas e o Estado Brasileiro”, podemos concluir que, com o advento das Nações Unidas, no pós- guerras, e com a Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948, o labor em prol dos direitos das mulheres ganharam dimensão e força mundial, conquistando uma relativa igualdade nunca antes vista, sobretudo com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, aprovada pela ONU em 1979.
Observa-se que até agora não se fez distinção de direitos em gerações (ou dimensões), não se deixou claro qual grupo de direitos as mulheres mais almejavam nesse processo histórico de luta, isso ocorre, porque essa discussão de Direitos de Primeira que são os ligados à liberdade, de Segunda que são os associados à igualdade e os de Terceira geração que são os ligados à fraternidade, é uma discussão realizada, sobretudo, a partir da criação da ONU em 1945.
Além disso, o que se verifica é que os direitos estão, direta ou indiretamente, uns ligados aos outros, isso, no nosso entender, significa que quando se tem os direitos de uma categoria resguardados, normalmente se busca os de outra, isto é, se a pessoa já é livre, não faz sentido ela lutar por liberdade, mas se sendo livre não é tratada de forma equânime, ela irá pleitear não mais a liberdade, mas sim a igualdade, da mesma forma podemos dizer que se uma pessoa é livre e é tratada de forma simétrica, ela irá não mais reivindicar a igualdade, mas sim a fraternidade.
Nessa direção, podemos dizer que, historicamente, a mulher tem buscado todos os direitos, pois com uma história dominadora masculina, até os direitos mais básicos como o uso do próprio corpo, não raras vezes, lhe foi ceifado. O que teremos, então, é, dependendo do momento histórico, a preponderância na luta por alguns direitos, e em outros momentos, por outros direitos.
No caso do nosso País, desde o seu “descobrimento”[4] a luta em prol dos direitos das mulheres, em linhas gerais, reflete o que estava ocorrendo no mundo, até porque foi o Reino de Portugal, uma nação do continente europeu, que aqui chegou em 1500. Contudo, não podemos esquecer que as lutas das mulheres brasileiras tinham um certo atraso se comparadas com as mulheres europeias, por exemplo, na questão do sufrágio, as origens do movimento sufragista feminino encontram-se na França do século XVIII, sendo que em 1893, a Nova Zelândia se tornou o primeiro país a garantir o sufrágio feminino, graças ao movimento liderado por Kate Sheppard[5]. Em comparação, em nossa sociedade brasileira, as mulheres só passaram a votar, em âmbito nacional, em 1932. Sendo que, até em relação a outras sociedade americanas, temos um atraso, pois, por exemplo, nos Estados Unidos, já em 1919 foi garantido o direito de voto para as mulheres, através da Emenda Dezenove[6].
É forçoso destacar ainda, que correlacionando com a evolução histórica exposta, é perceptível que a luta por direitos femininos, no que se refere aos específicos direitos sociais e trabalhistas, bem como a conquista desses direitos específicos, não são hegemônicas, em outras palavras, as conquistas de direitos sociais e trabalhistas das mulheres urbanas empregadas andam em ritmo diferente das conquistas da mulheres rurais e ribeirinhas.
Isso ocorre porque as mulheres rurais e ribeirinhas se encontram mais afastadas dos centros de decisão, de pensamento, conscientização e educação como as universidades, sendo que tal fato reflete diretamente no processo de luta, tornando-o mais espinhoso e árduo. Nesse entender, podemos constatar, por exemplo, que as trabalhadoras da indústria de São Paulo e do Polo Industrial de Manaus têm muito mais dos seus direitos resguardados do que mulheres pescadoras do interior da Amazônia e as quebradeiras de coco de babaçu dos Estados do Pará, Tocantins, Maranhão e Piauí[7].
3. O empoderamento e a visibilidade: os dois pressupostos imprescindíveis no lutar por reconhecimento e igualdade de gênero na pesca.
Antes de adentrarmos em um estudo mais aprofundado, para evitar interpretações antagônicas e não condizente com o real sentido por detrás de cada termo, é irrefutável a necessidade de alguns esclarecimentos, isso porque não existem palavras em vão, isto é, as palavras não são apenas justapostas para, no contexto, coadunar com a sonoridade ou algo do tipo, cada uma delas, ao ser colocada ao lado da outra, em um título de uma dissertação, de um artigo, ou outro estudo acadêmico-científico, carrega uma força significante avassaladora, quer seja para o bem, quer para o mal.
Não se estar aqui querendo atiçar ou defender uma visão tacanha e maniqueísta do mundo cientifico, dividindo-o no que é certo ou errado, muito pelo contrário, as pluralidades do pensamento devem ser respeitadas e estudas, pois só uma visão geral do assunto, a partir de uma ponderação multisciente, pode-nos levar a conhecer e entender a importância e força das palavras no processo do conhecimento ao qual se estar estudando.
Nesse entender, é imperioso trazer informação acerca de qual o método científico usado, isso porque, a presença do método científico, em qualquer trabalho que ambicione o status científico, é crucial, sendo assim, mesmo ao tratar de ciências humanas, sociais e jurídicas, o método científico é indispensável e sobre o assunto, podemos citar Zago (2013), que define o método dialético:
Atingir o concreto pelo pensamento, através da mediação, não significa aderir ao idealismo. O método materialista histórico dialético postula que apesar de o conhecimento ser construído pelo pensamento ele ainda assim é social [...] O método dialético irá justamente buscar as relações concretas e efetivas por trás dos fenômenos. Sobre esta posição marxiana escreveu Walhens (apud Kosik 1976 p.17): “O marxismo é o esforço para ler, por trás da pseudoimediaticidade do mundo econômico reificado as relações inter-humanas que o edificaram e se dissimularam por trás de sua obra.” ( ZAGO, 2013, p. 117 e 115).
A forte presença do método dialético, em nosso estudo, é inegável, contudo, o método dialético, per si, não é suficiente para conferir a metodologia cientifica necessária, por isso, destacamos também a necessidade de aplicação do método científico fenomenológico, que nos dizeres de Tourinho (2017), em linhas gerais, é definido como o método científico que dar a necessária importância aos fenômenos da consciência, os quais devem ser estudados em si mesmos, pois o saber do mundo resume-se, também, a esses fenômenos, a esses objetos ideais que existem na nossa mente, sendo que cada um é representado por uma palavra que traz a sua essência, a sua "significação". Tourinho (2017) continua ainda:
Conforme Husserl destaca, nas suas primeiras considerações a respeito do método fenomenológico, com a redução fenomenológica, passamos do fato individual para o que há nele de genérico. O exercício da redução fenomenológica assegura-nos a possibilidade de falarmos de uma eidética (ou de uma “doutrina de essências”). A redução fenomenológica exige-nos, como vimos, que tudo o que é transcendente possa ser submetido a um índice de nulidade, forçando-nos à abstenção de considerações sobre toda e qualquer posição de existência. Com isso, encontramo-nos em condições de exercer uma espécie de “técnica de variação imaginária dos objetos” (TOURINHO, 2017, p. 114 e 115).
Uma vez realizada as devidas considerações acerca dos métodos científicos empregados, nos concentramos, agora, no sentido de entender a importância do termo visibilidade para a temática do gênero na atividade pesqueira, ou seja, qual a importância da visibilidade da existência das mulheres pescadoras para a sua luta pela conquista de seus direitos sociais ou até mesmo de outras dimensões de direitos.
A visibilidade é de uma inexorável significância, porque traz a dimensão da existência, em outras palavras, o existir de fato, por si só, não é garantia de reconhecimento e conquista de direitos, pois é necessária o fenômeno da visibilidade. Existe um jargão que, mesmo sem aspirações cientificas, construído a partir de uma sabedoria popular, exprime de forma ilustrativa e alegórica, como fez Platão no Mito da Caverna, a informação que a falta de visibilidade causa no processo de luta por direitos, esse jargão é “quem não é visto, não é lembrado”.
Isso é um dos maiores prejuízo causados pela falta de visibilidade, que é não ser lembrado, ou melhor, que é não ter representatividade, seja na construção de políticas públicas, seja na criação de leis especificas para a categoria ou que a englobe respeitando suas peculiaridades. Nesse sentir, Soares (2012) deixar claro que:
Observamos que a luta pela existência civil das pescadoras no que tange à conquista de direitos não é algo específico do mundo da pesca. É inerente à própria organização histórica da sociedade, que engendra a exclusão e as desigualdades, excluindo não só as pescadoras, mas inúmeros outros segmentos, quer por etnia, cor ou gênero. (SOARES, 2012, p. 91).
Diante da afirmação esclarecedora da citada pesquisadora, bem como da leitura de sua dissertação de mestrado, somos levamos a constatar que a existência civil para as pescadoras estudadas por Soares, têm basicamente dois planos: um formal de existência enquanto pessoa natural, por meio de registro civil de nascimento (o que a todos são garantidos), e outros por meio de registros profissional e demais documentos associados a categoria de pescadora (que muitas vezes são lhes negados).
Nesse diapasão, é de grande valia trazermos à discussão que o plano da existência e visibilidade implicam, sobretudo, em como as pescadoras se veem, pois como elas irão se manifestar, tornando-se visíveis e pleiteando direitos, se elas mesmas não se veem como pescadoras ou permitem que lhes tirem seu título de existência enquanto pescadora, marginalizando-as como meras ajudadeiras. Corroborando essa argumentação Brasil (2015) e Almeida (2001), expõem que ainda que exercendo o papel principal ou atuando diretamente na pesca, o trabalho da mulher não é reconhecido, como o do homem. Para Almeida, geralmente por essas trabalhadoras serem esposas ou filhas de pescadores, seus trabalhos na limpeza e evisceração, na salga e comercialização do pescado, ou mesmo efetivamente pescando, é visto como ajuda, não como trabalho.
Para entendermos melhor essa dinâmica de invisibilidade é importante não olvidar que é um processo histórico e cultural, e conforme citado por Soares (2012), envolve, no entender de Simonian (1995), nos espaços dominantemente masculinos (como na pesca e seringal), a negação e o silêncio da participação feminina, ocorrendo um verdadeiro consenso de invisibilidade social realizado por parte tanto de atores locais, e pasmem, de estudiosos da área. Isso nos leva a considerar que, antes do processo de busca pela visibilidade, as mulheres pescadoras devem empreender um verdadeiro processo de empoderamento, autorreconhecimento e afirmação.
Adentrando mais detidamente nessa questão do empoderamente feminino, pode-se constatar que empoderamento é também um fenômeno social, sendo parte constitutiva de qualquer luta por igualdade seja de gênero ou não. É como uma espécie de embrião da visibilidade e luta, pois, para que as pessoas e sociedade, de um modo geral, prestem atenção em determinado fenômeno social existencial, é preciso VOZ, que seria a manifestação da existência, e as mulheres, ou qualquer outra categoria de atores sociais, só passam a ter essa voz, a partir do momento em que acreditam em si mesmos, em sua existência e se empoderam, sendo assim, a mulher pescadora amazônica de fato, só passa a ser ouvida quando ela mesma se reconhece como personagem principal trabalhadora da pesca.
Em um primeiro momento, esse autorreconhecimento pode aparentar ser um processo fácil, afinal, podem alguns argumentarem que, se elas de fato pescam, é normal que elas se definam como pescadoras, contudo, os fenômenos sociais não são simples, como os nossos estudos práticos irão demonstrar mais adiante, são dinâmicos e complexos e englobam uma série de variantes que não podem ser deixadas de lado na matemática social, daí a importância irrefutável dos métodos científicos dialéticos e fenomenológico.
Nesse proceder, dentre outros pontos, devemos ponderar que a mulher, como se demostrou em outro momento, vem sofrendo um processo histórico de dominação do gênero masculino, o que torna mais difícil o autorreconhecimento feminino e a consequente quebra com estigmas como a mulher não puder ser a principal provedora da família, isso ocorre porque o sexismo, infelizmente, ainda é forte e não deixa de ser cultural, tornando o processo de rompimento e quebra de paradigmas mais árduo e prolongado. Até porque existem contrafenômenos ou movimentos opostos ao empoderamento feminino, podemos, nesse assunto, citar Pinto (2011), que assim se manifesta:
Uma última noção antes de chegar ao reconhecimento: a de discriminação. Essa noção, em uma escala, é o ápice do desempoderamento – ou seja, a pessoa com menos poder é aquela mais discriminada. Ela é discriminada porque ela é mulher, porque é negra, porque é velha, porque é criança, porque é estrangeira. E o discriminado é exatamente aquele para quem o outro é que define a verdade sobre ele. Esse é o discriminado. (PINTO, 2011, p. 185).
Da leitura, podemos inferir que a discriminação é o ápice desse DESEMPODERAMENTO, ou seja, diante de argumentos e estudos como de Pinto (2011), podemos afirmar que há um movimento contrário a luta das mulheres por igualdade de gênero e direitos. Podemos e devemos, ainda, ir além, no sentido de constatarmos e afirmarmos que, diante da atual política governamental federal do Presidente Bolsonário, esse processo de desempoderamento feminino nunca esteve tão forte em nosso País desde a promulgação de nossa Constituição Cidadão de 1988, ou seja, esse sexismo tem ganhado espaço e colocando em perigo as lutas já dificultosas de grupos sociais como as mulheres pescadoras da Amazônia, seja por serem mulheres, seja porque também envolve questões socioambientais, e, como, mundialmente se alerta, a política governamental federal hodierna brasileira está em um processo de esvaziamento dos órgãos e consciência socioambiental.
Deixando, por hora, o triste cenário governamental federal, que não é nosso objeto principal, devemos esclarecer que o empoderamento feminino, no caso das mulheres pescadoras da Amazônia, é também um verdadeiro empoderamente das próprias comunidades ribeirinhas, e isso é tratado por Manesch et al. (2012), que afirma que:
As reivindicações de mulheres por reconhecimento de seus vários papéis – econômicos, sociais, políticos – tendem a significar empoderamento das comunidades no tocante ao controle dos recursos de que dependem. Isso porque tratam de trazer a gestão pesqueira para o nível local [...] em grande parte, esse reconhecimento depende de se explicitarem as desigualdades internas e externas às comunidades. Assim, quando as mulheres se dão conta de sua relevância como agentes econômicos e se constituem em agentes políticos, também criam ou reforçam as identidades de suas comunidades. (MANESCH et al., 2012, p. 722).
Diante dessas constatações, é nítido que a luta das mulheres pescadoras da Amazônia por direitos, reflete diretamente no desenvolvimento sustentável das próprias comunidades ribeirinhas da Amazônia. Isso ocorre, porque mulheres empoderadas que se impõem e explicitam a sua relevância para a comunidade local, bem como para economia do País, conquistam, inclusive, a ocupação dos espaços políticos de ampla dominação masculina. Fica claro que esse nosso entendimento coaduna com o pensar de Maneschy et al. (2012).