Capa da publicação Contramão legislativa: facilitação das penas restritivas de direitos para motorista alcoolizado
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A contramão legislativa: permissão das penas restritivas de direitos

09/11/2020 às 09:15
Leia nesta página:

Pela 37ª vez, o legislador altera nosso jovem Código de Trânsito brasileiro (CTB), fazendo inserir, por meio da Lei nº 14.071, de 14 de outubro de 2020, o contraditório art. 312-B, o qual dispõe sobre a permissão de penas restritivas de direitos.

Novamente, e da mesma forma tratada em artigo publicado preteritamente [1], no qual se discorreu sobre as inúmeras alterações perpetradas em nosso Jovem Código de Trânsito brasileiro (CTB), instituído pela lei 9.503/07 que, no interregno dos seus 23 anos de existência, já possui 36 alterações em seu texto[2], voltamos a comentar uma nova e anacrônica mudança perpetrada pelo parlamento, com a recente inserção do Art. 312-B ao referido Codex.

O artigo recém-inserido pela Lei nº 14.071/2020, publicada em 14 de outubro do corrente ano, e que possui uma vacatio legis de 180 dias, é assim redigido:

Art. 312-B. Aos crimes previstos no § 3º do art. 302 e no § 2º do art. 303 deste Código não se aplica o disposto no inciso I do caput do art. 44 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).[3]

Importante de início explicitar que a nova disposição legal se aplica a dois crimes também recentemente alterados pelo legislador com a edição da Lei nº 13.546, de 2017, quais sejam:

  • o crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor perpetrado pelo agente que se está sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência (art. 302 § 3º); e
  • o crime de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor em que o agente conduz o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime resultar lesão corporal de natureza grave ou gravíssima (art. 303, § 2º) [4].

Voltando à incipiente Lei nº 14.071/2020 e, ao efetuarmos análise textual da novel disposição legal, se observa que o legislador fez inserir vedação expressa à aplicação do inciso I, do Art. 44 do Código Penal, o qual dispõe sobre um dos requisitos que deve ser observado quando da conversão das penas privativas de liberdade em penas restritivas de direito.

Vejamos o que preleciona o caput e os incisos do Art. 44 do Código Penal:

    Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando: 

       I – aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;

        II – o réu não for reincidente em crime doloso; 

       III – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.[5]

Destarte, efetuando-se pormenorizada análise da disposição supra, uma indagação de pronto ecoa: os crimes citados alhures, dos Art. 302 § 3º e Art. 303 § 2º, ambos do CTB, podem ter suas penas privativas de liberdade convertidas em penas restritivas e direitos? Vejamos, se cotejarmos os seguintes requisitos: ser o réu não reincidente em crime doloso específico, pois é necessário conjugar o inciso II com § 3º do Art. 44 do CP, possuir ele circunstâncias judiciais favoráveis e essas circunstâncias indicarem que a substituição seja suficiente e, ainda, vislumbrada a inexistência de limites da quantidade da pena, pois se tratam de crimes culposos, concluir-se-ia pela inexistência de óbice à substituição das penas privativas por restritivas de direitos.

Desta feita, ao se considerar a situação atual, ou seja, antes da vigência e consequente aplicação da alteração legislativa, que possui uma vacatio legis de 180 dias, ainda não transcorrida no momento em que se redige esse texto, se constata ser plenamente possível a aplicação da conversão disposta no Art. 44 do Código Penal aos crimes citados, eis que o inciso I se revela apenas como mais uma exigência que complementa uma série de vindicações da cabeça do artigo e que não comprometem a aplicação do instituto.

Lado outro, analisando-se de maneira prospectiva, ou seja, a partir da vigência do novo texto, constata-se a implementação de uma maior facilidade de aplicação do instituto, isto é, não haverá recrudescimento na aplicação da conversão, mas um abrandamento, eis que o legislador apenas impôs vedação à aplicação do inciso I do Art. 44, permitindo, por consequente, aplicação do caput e demais incisos.

Diante do explanado, o leitor pode chegar à seguinte conclusão: o legislador quis tornar mais fácil a conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos. Para nossa surpresa, trata-se de um ledo engano, pois ao analisar as matérias vinculadas nos sites oficiais do Senado Federal e da Presidência da República, constatou-se que a intenção do legislador foi bem diversa, vejamos:

O presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei 14.071, que promove uma série de alterações no Código de Trânsito Brasileiro (CTB). A norma, que foi publicada com vetos na edição desta quarta-feira (13) do Diário Oficial da União, entra em vigor dentro de 180 dias.

 (...)

 A nova norma prevê também que, em casos de lesão corporal e homicídio causados por motorista embriagado, mesmo que sem intenção, a pena de reclusão não pode mais ser substituída por outra mais branda, restritiva de direitos.[6]

 O presidente da República, Jair Bolsonaro, sancionou a Lei 14.071/20, com mudanças na lei de trânsito aprovadas pelo Congresso Nacional. Dentre as principais alterações, destacam-se:

 (...)

Proibir a conversão de pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos quando o motorista comete homicídio culposo ou lesão corporal sob efeito de álcool ou outro psicoativo;[7]

Em suma, diante das razões supramencionadas, a única conclusão que se pode abstrair é de estar a cada dia mais difícil acompanhar a direção do parlamento. E esse, infelizmente, é apenas mais um dos inúmeros casos reveladores da ausência da utilização da Ciência Total do Direito Penal[8], a qual propiciaria escorreito suporte técnico e científico à criação de novas figuras típicas eficazes, característica que se revela cada vez mais distante da realidade brasileira.

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Por derradeiro, apenas para não pensarmos se tratar de questão pontual, lembremos que vários são os fatores reveladores desta ausência técnica, cujo resultado é evidenciado pela criação de tipos penais em dissonância com princípios dogmáticos basilares, como o da proporcionalidade. Esses vícios têm desvendado um descrédito ao processo legislativo brasileiro, o qual revela institutos que se tornaram hodiernamente mais conhecidos pela coletividade com as rubricas de “inflação legislativa”, “contrabando legislativo” e “leis simbólicas”, estas popularmente conhecidas como “leis que não pegam”, como a que acabamos de perquirir.


Notas

[1] https://jus.com.br/artigos/55726/cuidado-legislador-ao-volante

[2] Leis alteradoras: 9.602/98, 9.792/99, 10.350/01, 10.830/03, 11.275/06, 11.334/06, 11.705/08, 12.006/09, 12.009/09, 12.058/09, 11.910/09, 12.217/10, 12.249/10, 12.452/11, 12.547/11, 12.619/12, 12694/12, 12.760/12, 12.865/13, 12.971/14, 12.998/14, 13.097/15, 13.103/15, 13.146/15, 13.154/15, 13.160/15, 13.258/16, 13.281/16, 13.290/16, 13.495/17, 13.546/17, 13.614/18, 13.804/19, 13.840/19, 13.855/19, 13.886/19,14.071/2020.

[3] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.071-de-13-de-outubro-de-2020-282461197

[4] BRASIL Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Código de Trânsito Brasileiro. Legislação Federal. Sítio eletrônico internet - planalto.gov.br 

[5] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm

[6]https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/10/14/mudancas-no-codigo-de-transito-sao-sancionadas-com-vetos.

[7] https://www.gov.br/secretariageral/pt-br/noticias/2020/outubro/presidente-bolsonaro-sanciona-alteracoes-no-codigo-de-transito-brasileiro-ctb

[8] Você já deve ter lido em algum lugar sobre a expressão ciência conjunta (ou total) do Direito Penal. Trata-se de uma forma diferente de se refletir o fenômeno criminal. Ele passa a ser abordado pelos ângulos da Criminologia, Direito Penal e pela Política Criminal. O modelo rompe com aquela visão formal e abstrata do interprete da norma penal que fica postado numa torre de marfim, alijado da realidade social (CALHAU, Lélio de Braga. Resumo de criminologia. 6ª ed. Niterói/RJ: Impetus, 2011. p. 25.)

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Sobre o autor
Marcelo Ricardo Colaço

Mestre em Desenvolvimento e Sociedade (Uniarp). Especialista em Ciências Criminais (Uniderp-Anhanguera). Especialista em Docência Superior pela Universidade Alto Vale do Rio do Peixe (Uniarp)- Campus Caçador. Possui graduação em Direito pela Universidade Alto Vale do Rio do Peixe (2011). Professor no programa de Pós-Graduação da UNOESC- Campus Videira/SC, no curso de Direito Penal e Processo Penal, onde ministra as matérias de Teoria Geral do Crime e Tópicos Especiais de Direito Penal. Professor no programa de Pós-Graduação da UNIGUAÇU- Campus União da Vitória/PR, no curso de Direito Penal e Processo Penal, onde ministra as matérias de Teoria Geral do Crime e Tópicos Especiais de Direito Penal. Foi Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Universidade Alto Vale do Rio do Peixe- Campus Caçador. Professor das matérias de Direito Constitucional e Direito Processual Penal no curso preparatório para concursos Club da Aprovação. Delegado de Polícia na Secretaria da Segurança Pública e Defesa do Cidadão de Santa Catarina. Lattes: https://wwws.cnpq.br/cvlattesweb/PKG_MENU.menu?f_cod=E5C7415590A02F62DF8172B528F6925B E-mail: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COLAÇO, Marcelo Ricardo. A contramão legislativa: permissão das penas restritivas de direitos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6340, 9 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86585. Acesso em: 5 nov. 2024.

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