Capa da publicação Marido agressor, mas bom pai? Controvérsias da guarda compartilhada de filhos num cenário de violência contra a mulher
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A guarda compartilhada em confronto com a medida protetiva de urgência

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06/01/2021 às 11:25
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É possível o exercício de uma guarda compartilhada quando há um contexto de violência doméstica e familiar tipificada pela Lei Maria da Penha? Permanece apto à guarda um genitor que agride a mãe dos seus filhos?

1. INTRODUÇÃO

Com o advento da Lei nº 13.058/2014, estabeleceu-se o regime de guarda compartilhada como prioritário quando pais e mães forem aptos a exercê-la. Tal instituto prevê, ainda, que o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos.

Paralelamente, a Lei nº 11.340/2006 (a Lei Maria da Penha), além de tipificar as violências domésticas e familiares, também preceituou a possibilidade de determinar o afastamento do agressor do lar e do convívio da mulher em situação de violência.

Menciona-se que a Lei Maria da Penha é considerada uma das leis mais importantes e mais bem elaboradas do mundo no tocante à violência de gênero, tendo como objetivo a criação de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe ainda sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal.

Nesse contexto, a grande questão é se é possível conciliar a guarda compartilhada com a medida protetiva de urgência deferida; ou, em outras palavras, permanece apto à guarda um genitor agressor?

Trata-se de assunto de suma importância, considerando a possibilidade da exposição dos filhos e filhas aos riscos de um convívio que pode representar importante insegurança à integridade física e psicológica da prole, ao passo em que também, o afastamento do genitor pode retirar o direito de um convívio que se alinharia com o melhor interesse dos filhos.

Vale ressaltar que o Brasil é 5º país do mundo[1] com mais mortes de mulheres, em grande maioria em contextos de violência de gênero, logo, pensar nos impactos desta problemática no direito de família, mais que legítimo, é necessário.

Refletir sobre este cenário e como tem decidido os Tribunais do Brasil sobre este tema será o objetivo deste trabalho.


2. O INSTITUTO DA GUARDA COMPARTILHADA E SUA ADOÇÃO PRIORITÁRIA NOS TERMOS DA LEI Nº 13.058/2014

Antes das alterações promovidas através da Lei nº 13.058/2014, que instituiu a guarda compartilhada obrigatória, o artigo 1.583 do Código Civil previa que, diante da dissolução da sociedade conjugal, o que os genitores acordassem sobre a guarda prevalecia. No caso de controvérsia entre os cônjuges, a guarda seria fixada àquele que reunisse melhores condições para exercê-la.

Com o advento da mencionada lei, como ventilado, o direito brasileiro passou a, em certa medida, impor o regime da guarda compartilhada que, em tese, tem como principal objetivo a igualdade na tomada de decisões em relação aos filhos e filhas, com vistas a buscar preservar ao máximo os direitos e deveres relativos à autoridade parental de mães e pais. Entendeu-se que, com a convivência, é possível manter os laços familiares pressupostos da relação. A intenção é, portanto, que os pais mantenham as mesmas responsabilidades da época do relacionamento familiar, ou seja, garantam a continuação dos cuidados necessários à prole (LÔBO, 2015, p. 187).

Nesse sentido, Waldyr Grisard Filho também pontua que:

A aguarda compartilhada tem como premissa a continuidade da reação da criança com os dois genitores, tal como era operada na constância do casamento, ou da união fática, conservando os laços de afetividade, direito e obrigações recíprocos, [...] não prevalecendo contra eles a desunião dos pais, pois, mesmo decomposta, a família continua biparental. (FILHO, 2000, p.145)

Em linhas gerais, a guarda compartilhada teria como mote a manutenção da relação entre pais e filhos, mesmo quando ocorrer o divórcio, para a preservação dos laços familiares existentes (BONDEZAN E VAN DAL, 2019). Tal intento, certamente, advém da corriqueira realidade de distanciamento familiar que se assola quando dos rompimentos matrimoniais, ainda que nem todos os rompimentos se deem de maneira traumática.

Além disso, há que se considerar que a divisão das responsabilidades pelos cuidados entre homens e mulheres em uma sociedade machista que imprime sobretudo às mulheres os deveres maternais e isentam homens das responsabilidades paternais, apresenta-se como uma medida aparentemente inclusiva. Assim,

com uma intenção aparentemente agradável, a de que haja divisão entre pai e mãe de todas as atribuições relacionadas ao seu filho, a Lei 13.058/2014 foi publicada, dispondo acerca da fixação da guarda compartilhada, inclusive nos casos em que não houver consenso entre o casal, excetuando-se as hipóteses de um dos genitores manifestar expressamente que não deseja a guarda do menor, e no caso de incapacidade de um deles, ocasião em que poderá ser fixada a guarda unilateral. (URAGE, 2016)

Nesse sentido, vale ressaltar que na Lei nº 13.058/2014 se preceituou, expressamente, que

na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos.

Nesse contexto, e com base no mesmo regramento mencionado, adotou-se a guarda compartilhada como regra, conforme se extrai do seguinte trecho da já mencionada Lei nº 13.058/2014:

“Art. 1.584. ...

§2º. Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor.

Apesar disso, há divergências entre os aplicadores do direito quanto à vantajosidade da obrigatoriedade da guarda compartilhada, considerando que, em alguns casos, não seria benéfico para a prole permanecer sob a guarda de ambos, quando não houver uma boa relação entre eles (BONDEZAN E VAN DAL, 2019).

Não há dúvida que partilhar as decisões sobre a criação demanda diálogo ou, no mínimo, contato. Afinal, trata-se de definir, desde questões corriqueiras da rotina dos filhos como a logística da ida à escola, até questões que impactam no destino dos mesmos, como por exemplo onde estudar, se poderão fazer alguma atividade ou se será possível determinado investimento educacional.

Nesse contexto, trazemos o entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre a dispensabilidade de consenso para definição da guarda compartilhada:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL EPROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. GUARDA COMPARTILHADA. CONSENSO.NECESSIDADE. ALTERNÂNCIA DE RESIDÊNCIA DO MENOR. POSSIBILIDADE. 1. Ausente qualquer um dos vícios assinalados no art. 535 do CPC, inviável a alegada violação de dispositivo de lei. 2. A guarda compartilhada busca a plena proteção do melhor interesse dos filhos, pois reflete, com muito mais acuidade, a realidade da organização social atual que caminha para o fim das rígidas divisões de papéis sociais definidas pelo gênero dos pais. 3. A guarda compartilhada é o ideal a ser buscado no exercício do Poder Familiar entre pais separados, mesmo que demandem deles reestruturações, concessões e adequações diversas, para que seus filhos possam usufruir, durante sua formação, do ideal psicológico de duplo referencial. 4. Apesar de a separação ou do divórcio usualmente coincidirem com o ápice do distanciamento do antigo casal e com a maior evidenciação das diferenças existentes, o melhor interesse do menor, ainda assim, dita a aplicação da guarda compartilhada como regra, mesmo na hipótese de ausência de consenso. 5. A inviabilidade da guarda compartilhada, por ausência de consenso, faria prevalecer o exercício de uma potestade inexistente por um dos pais. E diz-se inexistente, porque contrária ao escopo do Poder Familiar que existe para a proteção da prole. 6. A imposição judicial das atribuições de cada um dos pais, e o período de convivência da criança sob guarda compartilhada, quando não houver consenso, é medida extrema, porém necessária à implementação dessa nova visão, para que não se faça do texto legal, letra morta. 7. A custódia física conjunta é o ideal a ser buscado na fixação da guarda compartilhada, porque sua implementação quebra a monoparentalidade na criação dos filhos, fato corriqueiro na guarda unilateral, que é substituída pela implementação de condições propícias à continuidade da existência de fontes bifrontais de exercício do Poder Familiar. 8. A fixação de um lapso temporal qualquer, em que a custódia física ficará com um dos pais, permite que a mesma rotina do filho seja vivenciada à luz do contato materno e paterno, além de habilitar a criança a ter uma visão tridimensional da realidade, apurada a partir da síntese dessas isoladas experiências interativas. 9. O estabelecimento da custódia física conjunta, sujeita-se, contudo, à possibilidade prática de sua implementação, devendo ser observada as peculiaridades fáticas que envolvem pais e filho, como a localização das residências, capacidade financeira das partes, disponibilidade de tempo e rotinas do menor, além de outras circunstâncias que devem ser observadas. 10. A guarda compartilhada deve ser tida como regra, e a custódia física conjunta - sempre que possível - como sua efetiva expressão. 11. Recurso especial não provido. (STJ, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 23/08/2011, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 31/08/2011) (grifos nossos)

Sobre a visão do mesmo Tribunal sobre a importância da “imposição”, destaca-se:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. GUARDA COMPARTILHADA. CONSENSO. NECESSIDADE. ALTERNÂNCIA DE RESIDÊNCIA DO MENOR. POSSIBILIDADE. 1. A guarda compartilhada busca a plena proteção do melhor interesse dos filhos, pois reflete, com muito mais acuidade, a realidade da organização social atual que caminha para o fim das rígidas divisões de papéis sociais definidas pelo gênero dos pais. 2. A guarda compartilhada é o ideal a ser buscado no exercício do Poder Familiar entre pais separados, mesmo que demandem deles reestruturações, concessões e adequações diversas, para que seus filhos possam usufruir, durante sua formação, do ideal psicológico de duplo referencial. 3. Apesar de a separação ou do divórcio usualmente coincidirem com o ápice do distanciamento do antigo casal e com a maior evidenciação das diferenças existentes, o melhor interesse do menor, ainda assim, dita a aplicação da guarda compartilhada como regra, mesmo na hipótese de ausência de consenso. 4. A inviabilidade da guarda compartilhada, por ausência de consenso, faria prevalecer o exercício de uma potestade inexistente por um dos pais. E diz-se inexistente, porque contrária ao escopo do Poder Familiar que existe para a proteção da prole. 5. A imposição judicial das atribuições de cada um dos pais, e o período de convivência da criança sob guarda compartilhada, quando não houver consenso, é medida extrema, porém necessária à implementação dessa nova visão, para que não se faça do texto legal, letra morta. 6. A guarda compartilhada deve ser tida como regra, e a custódia física conjunta - sempre que possível - como sua efetiva expressão. 7. Recurso especial provido. (STJ, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 03/06/2014, T3 - TERCEIRA TURMA) (grifo nosso)

Além disso, o STJ já decidiu que a falta de diálogo entre ex-cônjuges não inviabiliza a guarda compartilhada:

Em decisão unânime, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reformou decisão de tribunal estadual que negara a ex-cônjuge o direito de exercer a guarda compartilhada dos filhos, por não existir uma convivência harmoniosa entre os genitores. A guarda foi concedida à mãe, fato que ensejou o recurso do pai ao STJ. Ele alegou divergência jurisprudencial, além de violação ao artigo 1.584, parágrafo 2º, do CC/02, sob o argumento de que teria sido desrespeitado seu direito ao compartilhamento da guarda. O relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, acolheu o pedido. Segundo ele, a guarda compartilhada passou a ser a regra no direito brasileiro, uma vez que ambos os genitores têm direito de exercer a proteção dos filhos menores. Sanseverino acrescentou também que já está ultrapassada a ideia de que o papel de criação e educação dos filhos estaria reservado à mulher. (TJSP, 2016).[2]

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Em linhas gerais, é como se o judiciário dissesse aos pais e mães que terão, quase que independentemente das circunstâncias e traumas, que conviver e decidir, em igual medida, os desígnios dos filhos, ainda que acarrete uma convivência que, em muitos casos, pode representar uma verdadeira revitimização, especialmente em relacionamentos que foram marcados pela violência doméstica e familiar contra mulheres, mães e ex-companheiras.

Para compreender os impactos da imposição da convivência imposta por uma guarda compartilhada, importante analisar com mais profundidade o fenômeno da violência doméstica e familiar, especialmente quando estas descambam no judiciário e fundamentam medidas protetivas de urgência com base na Lei Maria da Penha. É o que faremos nas linhas que seguem.


3. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR E AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA

Considerada uma das melhores legislações do mundo, a Lei nº 11.340 de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha) criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres, nos termos do §8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispôs sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e alterou o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal.

A Lei Maria da Penha carrega a história da farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, que sofreu as mais variadas formas de violência de seu então marido, tendo sido vítima de tentativa de feminicídio, tendo ainda ficado paraplégica. Após 25 anos desse episódio, o Brasil editou a Lei nº 11.304/2006, dando cumprimento às convenções e tratados internacionais do qual é signatário, adotando medidas frente a violência doméstica (DIAS, 2010).

Vale dizer que a história de Maria da Penha representa a história de muitas outras mulheres que são vítimas, todos os dias, de uma violência extremamente peculiar e perversa, pois acontece no espaço doméstico e dentro de um contexto afetivo que deveria representar segurança, nunca medo.

Nesse cenário, filhos e filhas acabam sendo testemunhas oculares da violência, sendo vítima diretas ou indiretas, mas sempre vítimas, de um machismo estrutural que objetifica suas mães e faz de seus pais verdadeiros algozes do lar, da paz e de qualquer harmonia que a sacralização da família pudesse idealizar.

De acordo com a professora Alice Bianchini:

Estudos demonstram os danos advindos do fato de a criança ou o adolescente testemunhar episódios de violência entre seus pais ou pessoas próximas de si. É a chamada vitimização indireta. Essa pessoa, apesar de não ter sofrido nenhuma violência, é contagiada pelo impacto da violência dirigida contra uma pessoa com quem mantém uma relação próxima. A violência contra a mãe, nesses casos, é uma forma de violência psicológica contra a criança.

(...)

Os prejuízos para os filhos ocorrem em todos os níveis: social, psicológico, emocional e comportamental, afetando de forma altamente negativa seu bem-estar e seu desenvolvimento, com sequelas a longo prazo que, inclusive, pode chegar a transmitir-se por meio de sucessivas gerações.

Compromete, portanto, o desenvolvimento futuro dos indivíduos imersos nesse ambiente conflitivo. E comprometendo-os, compromete toda a futura sociedade. O pai e a mãe são importantes figuras de apego e referência para a vida dos filhos e para os comportamentos que terão quando da fase adulta.[3]

Apesar disso, por muitas décadas o direito brasileiro legitimou tal violência, sendo praticamente indiferente à brutalidade doméstica e familiar dada a sua naturalização, inclusive nos Tribunais. Porém, com a promulgação da Lei Maria da Penha as violências foram nomeadas, visibilizadas e tipificadas:

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;           

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

É fato que muitas mulheres vivenciam essas violências ao longo do relacionamento conjugal, sendo esta, muitas vezes, motivação para o rompimento conjugal que demanda, inclusive, um necessário distanciamento compulsório cuja Lei Maria da Penha prevê:

CAPÍTULO II

DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA

Seção I

Disposições Gerais

Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas:

I - conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência;

(...)

Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;

II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;

c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

VI – comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e        

VII – acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.     

§ 1º As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público.

Em que pese a previsão acerca da suspensão do convívio do agressor com os dependentes menores quando da concessão da medida protetiva de urgência, percebe-se certa invisibilização da vitimização dos filhos e grande esforço no sentido de manter a convivência destes com o genitor, ainda que em um contexto de pós-violência que possa fragilizar tanto a segurança dos mesmos, quanto da genitora que, em regra, é a principal cuidadora da prole.

Na prática se observa que muitas medidas protetivas são deferidas, porém, com a observação de que a convivência do genitor com os filhos não deve ser afetada.

Traz-se trecho de uma decisão proferida no bojo de um pedido de medida protetiva de urgência requerido na comarca de Maceió-AL:

Ora, em tal contexto, não há como deixar de atender ao pedido da vítima, que se encontra em situação de completa vulnerabilidade, pelo que determino as seguintes medidas de urgência, PELO PRAZO DE 06 (SEIS) MESES, A CONTAR DA DATA DE INTIMAÇÃO DO AGRESSOR:

1. Fica proibida a aproximação do Sr. XXXXX da vítima XXXXX, a uma distância de 500 (quinhentos) metros;

2. Fica proibido o contato direto ou por qualquer meio de comunicação com a vítima XXXXX, seus familiares e das testemunhas arroladas pela mesma, o que não impede a convivência do genitor com seus filhos;

3. Fica proibido o Sr. XXXXX de frequentar a residência da vítima XXXXX, como também, o seu local de trabalho, podendo fazê-lo por meio de seu advogado (a) ou pessoa por ela indicada.[4] (grifo nosso)

Da própria letra da lei, bem como das decisões ao redor das concessões das medidas protetivas, é possível notar que prevalece o entendimento de que o convívio com o genitor, ainda que agressor, é o que se presume como o que representa o melhor interesse dos filhos e filhas. Sendo o convívio a regra e o não convívio uma exceção.

Se este panorama é o encontrado nos juizados e varas especializados na violência doméstica e familiar onde a questão da desigualdade de gênero de certa forma fundamenta a existência do espaço, nas Varas de Família tal convivência é ainda mais sacralizada, sendo a imposição da guarda compartilhada mais uma medida eficaz para coroar a invisibilidade da violência que pode ser impressa quando dessa convivência forçada entre agressor e vítima, entre genitor e filhos (também vítimas).

Várias são as decisões onde se extrai o entendimento de que apesar da violência doméstica vivenciada pela mãe, não há risco à integridade dos filhos e, por essa razão, a convivência deve permanecer mesmo diante de medida protetiva de urgência. Exemplifica-se através de relato extraído de decisão do Superior Tribunal de Justiça onde se entendeu que

um marido que agride sua mulher, mas sem colocar em risco a integridade dos filhos, ainda tem direito à guarda compartilhada das crianças após a separação, mesmo que existam graves desavenças entre o ex-casal. O entendimento é da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao aceitar Recurso Especial de um pai contra a ex-mulher, que detinha a guarda unilateral de suas duas filhas.[5]

Conforme já ventilado, a discussão acerca da problemática da imposição da guarda compartilhada em contextos de violência não se direcionada apenas à garantia da integridade da mulher vítima, mas também dos filhos, conforme relata a psicanalista clínica Ana Maria Iencarelli, em reunião da Comissão Mista de Combate à Violência contra a mulher da Câmara de Deputados:

Uma criança não pode se sentir bem e ter estabilidade emocional dentro do ambiente do agressor da mãe. É impossível essa conciliação, ou seja, a obrigatoriedade da guarda compartilhada em situação de litígio. É “ilusório” pensar que a guarda compartilhada irá aproximar os cônjuges que estão em litígio.[6]

Na mesma reunião realizada na Câmara dos Deputados, a coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Flávia Nascimento, afirmou que a visitação prevista em um cenário de guarda compartilhada tem sido um grande ponto de vulnerabilidade para mulheres em situação de violência, ao passo em que comenta que:

Na prática, nós sabemos que os autores de violência usam a visitação para se aproximar das mulheres. O interesse [do homem] é realmente a criança ou é manter um vínculo com a mãe?”[7]

Para a pesquisadora, enquanto não houver uma previsão expressa na Lei da Guarda Compartilhada excepcionando os casos de violência doméstica, a legislação impedirá que a mulher rompa com o ciclo de violência a que é submetida.

Assim, com vistas a compreender como estes fatos têm sido considerados pelo judiciário, passaremos a analisar decisões proferidas nos Tribunais brasileiros sobre o possível conflito entre a situação de violência doméstica e a guarda compartilhada.

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Sobre a autora
Anne Caroline Fidelis de Lima

Advogada, bacharela em Direito pela Universidade Federal de Alagoas, professora universitária, mestra em sociologia pela Universidade Federal de Alagoas, pós-graduada em direito civil, processo civil pela Escola Superior de Advocacia da OAB/AL e em gestão pública municipal pela Universidade Federal de Alagoas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Anne Caroline Fidelis. A guarda compartilhada em confronto com a medida protetiva de urgência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6398, 6 jan. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87689. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Artigo apresentado como trabalho de conclusão de pós-graduação da UNIBF

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