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Revisão judicial das decisões administrativas favoráveis ao contribuinte

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07/02/2021 às 19:00
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Pretender a revisão judicial da decisão administrativa favorável ao contribuinte, para não se submeter à decisão que a própria Administração proferiu, não seria o mesmo que provocar a autodestruição do poder legalmente exercitado pela Administração?

1 Introdução

Antes do advento do Parecer nº 1.087/2004 da PGFN, já havia manifestações isoladas na doutrina viabilizando o acesso ao Judiciário pela Fazenda Pública para invalidação de decisão administrativa favorável ao contribuinte.

Essa tese, em verdade, foi ventilada com maior intensidade, nos meios jurídicos, a partir do advento do Parecer nº 1.087/2004 da PGFN, que, na realidade, restringe-se às hipóteses de lesão ao patrimônio público acarretado pelas decisões administrativas definitivas.

Em torno dessa  questão, duas correntes doutrinárias se formaram.

A tese pela possibilidade de revisão judicial, que tem apoio de poucos doutrinadores, e a tese majoritária, que não admite a revisão judicial de decisão definitiva proferida na instância administrativa.


2 Análise das duas teses antagônicas

2.1 Da corrente favorável à revisão judicial de decisão administrativa favorável ao contribuinte

Os principais argumentos  utilizados pelos defensores dessa tese são:

a) A decisão final proferida no âmbito administrativo não faz coisa julgada

De fato, coisa julgada só se opera no âmbito judicial. É a qualidade atribuída à determinada decisão judicial contra a qual não cabe mais recurso, tornando-a imutável e indiscutível. É a coisa julgada material definida no art. 467 do CPC. Ela é protegida em nível de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV da CF).

Não se pode olvidar, entretanto, que a doutrina reconhece a figura da coisa julgada administrativa a apontar a definitividade e inalterabilidade da decisão por iniciativa da Administração Pública que a proferiu. O contribuinte sempre terá a oportunidade de recorrer ao Poder Judiciário por força do princípio da universalidade da jurisdição.

A respeito desse assunto, Valdir de Oliveira Rocha que prefere a expressão “coisa decidida administrativamente” sustenta o seguinte:

“O reconhecimento da coisa decidida administrativamente, como impossibilidade de a Administração rever judicialmente suas decisões definitivas, apoia-se em que estas são tiradas em processo administrativo que o é do próprio Poder Executivo, derivado da competência atribuída a órgão que exerce parcela do mesmo Poder.

A inobservância da coisa decidida administrativamente pela Administração constituiria um  sem-sentido esfacelador do próprio Poder que a exerceu.” [1]

Celso Antonio Bandeira de Mello também se refere à “coisa julgada administrativa”, diferenciando-a da coisa julgada propriamente dita:

“Ressalte-se que a chamada ‘coisa julgada administrativa’ abrange a irrevogabilidade do ato, mas sua significação é mais extensa. Com efeito, nela se compreende, além da irrevogabilidade, uma irretratabilidade que impede o questionamento do ato na esfera judicial, ao contrário da mera irrevogabilidade, que não proíbe à administração impugnar em juízo um ato que considere ilegal e não mais possa rever na própria esfera.

Inversamente, seu alcance é menos extenso do que o da coisa julgada propriamente dita. Com efeito, sua definitividade está restrita a ela própria, Administração, mas terceiros não estão impedidos de buscar judicialmente a correção do ato”

E arremata o renomado administrativista pátrio:

“Toda vez que a Administração decidir um dado assunto em última instância, de modo contencioso, ocorrerá a chamada ‘coisa julgada administrativa.’” [2]

Enfim, ainda que a decisão administrativa de última instância não se revista da autoridade de coisa julgada própria de decisão judicial, o certo é que ela tem efeito vinculante em relação à Administração que a proferiu.

A decisão administrativa final proferida pelo CARF favorável ao contribuinte exonera, de ofício, o contribuinte dos gravames decorrentes do litígio, nos precisos termos do art. 45 do Decreto nº 70.235/72, como antes examinado.

Para a Administração Pública, as decisões definitivas de segunda instância referidas no art. 42 do Decreto nº 70.235/72 produzem o mesmo efeito da coisa julgada como imperativo da segurança jurídica que está diretamente associada à idéia de Estado Democrático de Direito. É o que se depreende do disposto no preâmbulo da Constituição Federal e no seu art. 5º.

A única diferença existente entre a coisa julgada propriamente dita e a coisa julgada administrativa é que aquela não permite a rediscussão por quem quer que seja, e esta permite a rediscussão da mesma matéria na esfera do Judiciário pelo contribuinte inconformado pela decisão definitiva na esfera administrativa, em razão do princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição inserido na categoria de direitos e garantias individuais (art. 5º, XXXV da CF).

Como assinala com propriedade Celso Antonio Bandeira de Mello:

“O fundamento jurídico mais evidente para a existência da ‘coisa julgada administrativa’ reside nos princípios da segurança jurídica e da lealdade e boa-fé na esfera administrativa.” [3]

(b) O princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição

Tem-se invocado o princípio da inafastabilidade da jurisdição, também a favor do poder público em nome do princípio da isonomia. O equívoco data vênia, é manifesto.

O princípio inserto no inciso XXXV, do art. 5º está situado no capítulo dos direitos e garantias individuais a indicar que o destinatário desse princípio é o administrado. Outrossim, esse princípio, como vimos, não se confunde com o mero acesso ao Judiciário, porque a jurisdição implica direito à efetiva realização da justiça.

Esse princípio decorre da necessidade de proteger o administrado contra o poder político do Estado, sendo, por essa razão, ininvocável o princípio da isonomia. Impensável que a Administração Pública procure a intervenção do Judiciário para conter os abusos que  pretende praticar ou anular os efeitos dos atos ilegais e abusivos que ela praticou.

Para tentar contornar as dificuldades que suscita a invocação da tese da inafastabilidade da jurisdição, os partidários da corrente pró revisão judicial de decisões administrativas definitivas buscam ancorar o seu posicionamento no princípio da jurisdição una. Lembram que a jurisdição é exercida pelo Judiciário em regime de monopólio estatal. Sendo Judiciário o detentor  da última palavra acerca do litígio segue-se que é forçoso reconhecer que o acesso à jurisdição não pode ser vetado a qualquer pessoa natural ou jurídica, de direito privado ou de direito público. Nesse sentido é o pensamento, dentre outros, de Maria Beatriz de Mello Leitão para quem o princípio da jurisdição una, de certa forma, é correlato aos princípios basilares do Estado de Direito, tais como o princípio da separação dos Poderes.[4]

O problema que se coloca não é o de vetar o acesso ao Judiciário em relação à Administração Pública, o que efetivamente seria inadmissível. A questão que se coloca é a de saber se pode a Administração provocar a jurisdição para desfazer a decisão que ela própria proferiu. Já dissemos que a noção de jurisdição, no sentido de direito à efetiva realização da justiça,  não é estranha à função administrativa.

Como vimos, a Administração, também, por meio do processo administrativo busca a realização da justiça. Não é por outra razão que a Constituição assegura aos litigantes em processos judiciais e administrativos o contraditório e ampla defesa, princípio que decorre de outro que é o do devido processo no sentido formal e material.

Se assim é, esta claro que falece a Administração  o legítimo interesse de agir. Como pretender desfazer judicialmente a decisão que ela própria proferiu no exercício da função de julgar?

Em outras palavras, a Administração, não se conformando com a decisão que tomou, pede a outro Poder que a modifique. Isso representaria a autodestruição do poder que a Administração exercitou nos limites da lei, violando em bloco os princípios que regem a Administração Pública.

(c) Administração ativa e Administração judicante

Outros autores, como Maria Beatriz Mello Leitão [5]  e Aurélio Pitanga Seixas Filho[6], para justificar a revisão judicial de decisão administrativa, divide a Administração Pública em administração ativa e administração judicante. Aquela objetivaria o interesse público e esta, visaria à ordem jurídica.

Assim os órgãos administrativos incumbidos da função de julgar, tendo em vista a sua autonomia e imparcialidade, sem se submeter ao princípio da hierarquia, seriam órgãos públicos heterodoxos e, como tais, não integrantes da administração ativa. Daí porque a decisão de Conselho de Contribuintes, hoje, CARF, seria um ato administrativo apenas do ponto de vista formal, sem que expresse a vontade da Administração ativa, por ser proveniente de um órgão estranho ao corpo da Administração.

A tese, data vênia, não se sustenta. Ao afirmar que a Administração ativa é a que persegue o interesse público, dá a entender que a outra, denominada de Administração judicante não tem em vista o interesse público. Parece confundir interesse privado do poder público com o interesse público. Quando a Administração Pública atua em sua função executiva, ou em sua função de julgar, o faz sob o manto do interesse público, sempre presidido pelos princípios constitucionais concernentes à Administração Pública. A heterodoxia do órgão colegiado não retira o caráter de órgão público integrante da estrutura do Ministério da Fazenda. Ao contrário, reforça esse órgão público na tarefa de dirimir conflitos na área tributária, julgando com imparcialidade e justiça os processos administrativos submetidos a sua apreciação. A prevalecer a tese da separação da Administração Pública em ativa e judicante para desqualificar esta última como órgão da Administração, baseada na composição paritária do órgão público, as antigas juntas de conciliação e julgamento no âmbito da Justiça do Trabalho, também não seriam órgãos do Poder Judiciário.

No exercício da função de julgar o interesse público impede a Administração de proferir decisão ilegal contra os interesses do contribuinte. Para tanto, o órgão julgador de 2ª instância administrativa, o CARF, não se submete ao princípio da hierarquia o que assegura àquele órgão colegiado e paritário, integrante da estrutura administrativa do Ministério da Fazenda, proferir decisões justas para as partes, de conformidade com o moderno conceito de jurisdição que  não está ligado exclusivamente ao Poder Judiciário, como se verifica dos princípios constitucionais aplicáveis a processos administrativos de qualquer espécie.

Outrossim, os integrantes do CARF, todos eles profissionais especializados em Direito Tributário e de longa experiência profissional, estão mais bem preparados para julgar questões tributárias do que os membros do Judiciário, que se revezam continuamente entre os seus diferentes órgãos lidando com matérias heterogêneas.

O que se deve deixar claro é a distinção entre o interesse privado do poder público, representado pelo fisco em arrecadar o maior volume de tributos, autuando os contribuintes que no seu entender estariam descumprindo as obrigações tributárias, com o interesse público da Administração de dirimir, por via do processo administrativo regular, o litígio decorrente da impugnação do contribuinte à pretensão do fisco. O órgão julgador colegiado e paritário não se posiciona e nem pode se posicionar como parte da relação jurídico-tributária.

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Enfim, a alegação dos defensores da tese pró revisão judicial, de que não há na Constituição qualquer impedimento no sentido de possibilitar, à Administração Pública, socorrer-se das garantias da ampla defesa ou do livre acesso ao Poder Judiciário, que pudesse implicar na vedação do direito de ajuizar a ação anulatória da decisão administrativa desfavorável à Fazenda não tem, data vênia, respaldo no princípio da razoabilidade, que se impõe como um limite à ação do próprio legislador. A falta do interesse de agir da Fazenda para desfazer a decisão administrativa que a própria Administração proferiu no exercício regular da sua função de julgar não precisa estar expressa na Constituição. Ela decorre do sistema jurídico global.

(d) Dispositivo do CTN permite a revisão judicial           

Alguns autores sustentam a tese da revisão judicial ancorados na disposição do art. 156, IX do CTN, que, de fato, prescreve no sentido de que extingue o crédito tributário “a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória.”

A sua interpretação literal dá a entender que, enquanto não se consumar o prazo prescricional da ação anulatória, a decisão administrativa final a favor do contribuinte não extingue o crédito tributário.

Conhecidos tributaristas, como Yoshiaki Ichihara e Antonio José da Costa, sustentaram no XXIV Simpósio Nacional de Direito Tributário realizado em 1999, que a Administração pode pleitear a anulação judicial da decisão administrativa sempre que houver autorização legislativa, como no caso do art. 149 do CTN.

Na verdade, esse posicionamento doutrinário corresponde a uma negativa do poder de revisão judicial, pois não há lei prevendo a ação anulatória de decisão administrativa, como há em relação à revisão do lançamento tributário (art. 149 do CTN).

Inexistente previsão legal para a propositura de ação anulatória pelo poder público não há como a Administração pleitear a anulação de decisão administrativa final. Todas as decisões contrárias à Fazenda deveriam sofrer revisão judicial?

A ação anulatória estava prevista no anteprojeto do CTN para substituir o recurso hierárquico, porém ela não vincou. O CTN não incorporou as disposições do anteprojeto nesse particular, por isso, a parte final do inciso IX, do art. 156 perdeu eficácia. Sem a prescrição legal prevendo os requisitos e condições para a invalidação judicial da decisão administrativa não seria razoável nem possível cogitar-se de propositura de ação judicial. Transformar a revisão judicial da decisão administrativa como atividade rotineira seria o mesmo que suprimir o processo administrativo como meio de solução do litígio na esfera administrativa. Não faria sentido algum a manutenção de um serviço público oneroso, como são os órgãos julgadores de segunda instância administrativa, se for para tornar efetiva apenas as decisões administrativas confirmatórias do lançamento tributário.

 A decisão final no processo administrativo vincula a Administração que a proferiu por meio de seu órgão competente, tanto é que o art. 45 do Decreto nº 70.235/72 determina que a autoridade preparadora exonere, de ofício, o contribuinte dos gravames decorrentes do litígio no caso de decisão definitiva a ele favorável.   

2.2 Da corrente contrária à revisão judicial de decisão administrativa favorável ao contribuinte

A doutrina majoritária não admite a revisão judicial de decisão definitiva proferida na esfera administrativa. Tanto é que essa questão não é levada ao Judiciário com freqüência. Nas raras vezes que a tese da revisão judicial foi discutida no Judiciário ela não prosperou.

Temos notícia de um caso submetido ao crivo do Supremo Tribunal Federal. Trata-se do RE nº 68253 de que foi Relator o Min. Barros Monteiro, DJ de 8-5-1970. Nesse recurso extraordinário restou proclamada a força vinculante da decisão administrativa final em relação ao fisco, equivalente à coisa julgada.

No Superior Tribunal de Justiça os defensores da tese contrária à revisão judicial costumam invocar invariavelmente o precedente do MS nº 8810/DF, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 6-10-2003, onde ficou proclamado que “as decisões dos Conselhos de Contribuintes quando não recorridas tornam-se definitivas cabendo à Administração, de ofício, ‘exonerar o sujeito passivo dos gravames decorrentes do litígio’ (Decreto nº 70.235/1972, art. 45”).

No mesmo sentido, o RMS nº 12386/RJ, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ de 19-4-2004.

No MS nº 223-DF, Rel. Min. Garcia Vieira, DJU de 16-4-90, foi firmada a tese de que ocorrida a preclusão administrativa o ato administrativo torna-se irretratável, conforme a seguinte em ementa:

 “O ato administrativo não pode ser modificado, ocorrida a preclusão, mesmo por autoridade hierarquicamente superior, quer por via recursal, quer por avocação. A modificação configura-se ilegalidade e dá surgimento a direito líquido e certo. Segurança concedida.”

No mesmo sentido, o MS nº 009-DF, Rel. Min. Pedro Acioli, DJ de 18-12-89,

Finalmente, no Resp nº 572358/CE, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 16-12-2006 restou afastada a revisão judicial em função dos princípios da preclusão e da segurança jurídica.

Além dos argumentos com que refutamos a tese favorável à revisão judicial da decisão administrativa contrária à Fazenda podem ser invocados vários outros.

A Administração Púbica que atua sob o regime de Direito Público situa-se numa posição privilegiada, porque possui prerrogativas e privilégios de que não gozam os administrados.

Somente a Administração Pública detém o poder de promover a autoexecutoriedade de seus atos. Nos contratos firmados com a Administração existem as chamadas cláusulas exorbitantes. Por isso, o particular que tenha contratado com a Administração a execução de uma obra pública não poderá, na hipótese de não receber o preço convencionado nos prazos contratuais, invocar a exceção do não cumprimento da obrigação contratual que está prevista no art. 476 do Código Civil, para interromper a execução da obra pública. O princípio da continuidade do serviço público afasta a invocação do exptio non adimpleti contractus.

Importante observar, ainda, que a Administração Pública é dotada de autocontrole administrativo, que se faz por meio de tutela e de autotutela. A tutela significa controle que a Administração faz sobre outra pessoa jurídica por ela instituída (administração indireta), ao passo que a autotutela corresponde ao poder que tem a Administração de rever os próprios atos, a fim de expurgá-los dos vícios de nulidade e de ilegalidade, assim como de revogar os atos considerados inoportunos ou inconvenientes, independentemente de valer-se da provocação do Judiciário.

Esse poder inerente à Administração Pública está consagrado em duas Súmulas do Supremo Tribunal Federal:

Súmula 346: A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.

Súmula 473: A administração pode anular os seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade,  respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.

A autotutela, como assinala Maria Sylvia Zanella Di Pietro, também pode “designar o poder que tem a Administração Pública de zelar  pelos bens que integram o seu patrimônio, sem necessitar de título fornecido pelo Poder Judiciário. Ela pode, por meio de medida de polícia administrativa, impedir quaisquer atos que ponham em risco a conservação desses bens.” [7]                  

Contudo, ao lado desses privilégios e prerrogativas existem certas restrições a que a Administração deve respeitar, sob pena de nulidade do ato administrativo praticado, e em alguns casos, de responsabilização civil e funcional da autoridade que a editou. Dentre essas restrições avultam os princípios básicos da Administração Pública insertos no art. 37 da CF, como os da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, aos quais se somam os do devido processo legal, do contraditório e ampla defesa, o da razoabilidade, finalidade, motivação, proporcionalidade,  segurança jurídica, interesse público, lealdade e boa-fé que resultam das normas básicas que regem o processo administrativo na esfera federal, previstas na Lei nº 9.784/99, que tem aplicação nas demais esferas políticas porque reproduzem ou explicitam princípios constitucionais.

A pretensão de a Administração valer-se de um outro Poder para desfazer a decisão favorável ao contribuinte que ela própria proferiu no processo administrativo cercado de garantias constitucionais configura um verdadeiro contra-senso. E mais, torna inútil a existência do processo administrativo tributário como meio de solução do litígio de natureza tributária, ferindo em bloco os princípios da segurança jurídica, da moralidade, da lealdade e da boa-fé. Se for para manter apenas as decisões favoráveis ao fisco a instância administrativa em matéria tributária deveria ser suprimida para não gerar despesas inúteis ao erário. Efetuado o lançamento, só restaria ao contribuinte efetuar o pagamento ou impugnar o lançamento por meio de ação judicial competente, sobrecarregando ainda mais as atividades do Judiciário, onde a discussão de questões tributárias já chega perto de 70% das causas em andamento.

Eventual decisão ilegal proferida no bojo de processo administrativo tributário deve ser anulada pela própria Administração no exercício da faculdade de autotutela da legalidade administrativa. É o que prescreve o art. 53 da Lei nº 9.784/99:

“Art. 53. A administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.”

As Súmulas nºs 346 e 473 do STF, também prescrevem nesse sentido.

Enfim, essa questão foi objeto de debates e discussões no XXIV Simpósio Nacional de Direito Tributário, cujos textos estão publicados na obra coletiva, coordenada por Ives Gandra da Silva Martins, Processo administrativo tributário, 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

Dos 34 expositores e debatedores, 24 autores, dentre os quais me incluo, negaram possibilidade de a Fazenda ir a juízo para  pedir a revisão da decisão administrativa favorável ao contribuinte.

Dentre os dez que se posicionaram favoravelmente à possibilidade dessa revisão judicial, alguns, como Othon Saraiva e Francisco de Assis Alves, entenderam que o princípio de acesso ao Judiciário se estende também à Fazenda, em razão do princípio da isonomia; outros, como Moises Akselrad e Dirceu Antonio Pastorello, defenderam a tese de revisão judicial ante as decisões administrativas ilegais; finalmente, outros, como Yoshiaki Ichihara e Antonio José da Costa, sustentaram a tese do acesso ao Judiciário para rever a decisão administrativa apenas nas hipóteses autorizadas em lei, como nos casos do  art. 149 do CTN que versa sobre a revisão do lançamento.

Conforme verificamos, o princípio da inafastabilidade da jurisdição é direito fundamental do contribuinte para protegê-lo contra o poder político do Estado, pelo que a invocação do princípio da isonomia, neste particular, é absolutamente impertinente. A ilegalidade da decisão administrativa deve ser sanada pela própria Administração no exercício da autotutela, como permitem o art. 53 da Lei nº 9.784/99 e as Súmulas 346 e 473 do STF. Quanto à tese da revisão judicial nos casos previstos em lei, já verificamos que não há essa previsão legal para propositura de ação anulatória perante o Judiciário.

A razão de sua referência na parte final do inciso IX, do art. 156 do CTN será melhor examinada no tópico seguinte.           

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Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Revisão judicial das decisões administrativas favoráveis ao contribuinte. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6430, 7 fev. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88339. Acesso em: 19 abr. 2024.

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