O instituto do parto anônimo como obstáculo da concretização do direito ao conhecimento da origem biológica

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23/03/2021 às 15:46
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2 DIREITO AO CONHECIMENTO DA ORIGEM BIOLÓGICA SOBRE A ÉGIDE DO ORDENAMENTO JURÍDICO

Neste capítulo, passa-se à análise das normas vigentes no ordenamento jurídico brasileiro, com o fim de demonstrar o amparo garantido aos direitos fundamentais da criança, em especial o direito de conhecimento da origem biológica, como intrínseco aos direitos de personalidade e mantenedor da Dignidade da Pessoa Humana, princípio supremo constante da Constituição Federal de 1988, não podendo ser confrontado pelas normas infraconstitucionais, afirmando a teoria de Kelsen de que o ordenamento jurídico é único e escalonado por hierarquia de valores de normas (LOURENÇO, 2017).

No texto “Teoria Pura do Direito (segundo o pensamento de Hans Kelsen)”, do autor Lúcio Augusto Pimentel Lourenço (2017), exprime-se o seguinte:

A norma jurídica é, antes do mais, um modelo, uma fórmula ou uma regra de comportamento humano que se manifesta por sinais exteriores, que se impõe com carácter obrigatório, uma vez que o seu respeito pode ser exigido pela força democrática e organizada do Estado, nos termos da Constituição.

Continua explicando ainda que:

As normas jurídicas não têm todas o mesmo valor, havendo que diferenciar as normas jurídicas fundamentais, tais como, por exemplo, as de natureza constitucional ou mesmo as normas de base de qualquer situação jurídica; para depois surgirem as normas que irão regulamentar em pormenor a execução do seu cumprimento ou que viabilizam a concretização do fim a que se destinam.

[...]

A Teoria Pura do Direito entende a norma fundamental como a consagração de um fundamento do ordenamento, atribuindo a tal norma um sentido de dever estruturante, que se impõe às demais normas e a todos os órgãos e cidadãos, tutelando esse interesse maior, nomeadamente através dos mecanismos e formas de invalidar normas que ofendam tal direito, pela inconstitucionalidade ou mesmo violação de norma hierarquicamente superior, invalidando a norma de grau inferior. (LOURENÇO, 2017)

Sendo assim, sendo a Dignidade da Pessoa Humana uma norma de índole fundamental, deve esta ser tutelada pelas demais normas vigentes, bem como todos os seus desdobramentos.

O amparo e proteção ao menor foram introduzidos no Brasil por meio da “Convenção sobre os Direitos da Criança”, qual seja Decreto nº 99.710/1990, o qual traz normas indispensáveis à garantia da Dignidade Humana, reconhecendo-o como um ser de direitos e deveres com a real e especial necessidade de assistência pelo Estado.

A Convenção sobre os Direitos da Criança possui caráter constitucional, assim como expõe o art. 5º, §3º da Lei Maior, vejamos:

Art. 5º: [...] §3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (BRASIL, 1998)

Além disso, seus preceitos foram transcritos de forma expressa na Constituição, nos artigos 226 ao 230, reafirmando a absoluta prioridade concedida à criança e ao adolescente.

2.1 Projetos de Lei do Parto Anônimo e os Direitos de Personalidade da Criança

A personalidade jurídica é atribuída a toda pessoa, sendo intrínseca a própria condição humana, que acarreta em direitos e deveres. Maria Helena Diniz (2012) pontua que a personalidade não pode ser considerada um direito, e sim, um bem da pessoa, onde dela semeiam direitos e deveres. Continua explicando, ainda, que:

[...] é o primeiro bem da pessoa, que lhe pertence como primeira utilidade, para que ela possa ser o que é, para sobreviver e se adaptar às condições do ambiente em que se encontre, servindo-lhe de critério para aferir, adquirir e ordenar outros bens. (DINIZ, 2012, p. 134)

Diniz (2012) considera, ainda, os direitos de personalidade como sendo “direitos subjetivos”, com o intuito de proteger aquilo que é próprio do ser humano, isto é, sua liberdade, identidade, honra, reputação e etc., através de ações judiciais.

Lydia Neves Bastos Telles Nunes (2011) segue a mesma linha de raciocínio ao dizer que os direitos de personalidade “constituem bens que embora não tenham um valor economicamente apreciável e, portanto, não patrimoniais, são fontes de interesses patrimoniais”.

Bem como os as garantias fundamentais, os direitos de personalidade são absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis e inexpropriáveis. Significa que são oponíveis erga omnes, não passíveis de aferição econômica; é impossível sua transmissão para outrem, bem como sua disposição e renúncia; não se extinguem e não possuem prazo para pleitear; e, além disso, são inatos e contemplados quando do nascimento, em regra (DINIZ, 2012). Dentre essas características, pode-se afirmar que também são vitalícios.

Vale ressaltar que o Código Civil de 2002 disciplinou os direitos de personalidade do artigo 11 ao 21, onde dispôs sobre algumas espécies, entre elas está o direito à integridade física e à honra, sendo que esse rol não é considerado taxativo. Dentre as características dos direitos de personalidade, a Lei Civil positivou a intransmissibilidade e a irrenunciabilidade, em seu artigo 11, nos seguintes termos: “com exceção dos casos previstos em lei, os direitos de personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária” (BRASIL, 2002).

No que se refere à criança, estas possuem uma proteção especial quanto aos seus direitos de personalidade, pelo simples fato de serem considerados mais vulneráveis. Vale frisar o disposto no artigo 2º do Código Civil de 2002: “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos no nascituro”, portanto, desde o nascimento, a criança carrega consigo direitos de personalidade, inerentes a sua condição humana (BRASIL, 2002).

Nesse sentido, o amparo aos direitos da criança deve ocorrer de forma ampla, considerando inteiramente a personalidade. O direito à qualidade de vida decorre do próprio direito à vida que, contudo, desdobra-se no direito à convivência familiar, e, enfim, no direito de conhecer a ascendência biológica (NUNES, 2011).

O respeito aos direitos de personalidade se faz necessário para a proteção do próprio ser humano, para resguardar a dignidade humana. Diante da evolução histórica da sociedade e do homem, não se pode inferir que os direitos se resumem ao que está arrolado na norma, e nem mesmo é possível aferir quais que ainda surgirão (DINIZ, 2012). A propósito, o Conselho da Justiça Federal editou o Enunciado nº 274 da IV Jornada de Direito Civil, com a seguinte redação:

Os direitos de personalidade, regulados de maneira não-exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, inc. III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana). Em caso de colisão entre eles, como nenhum pode sobrelevar os demais, deve-se aplicar a técnica da ponderação. (AGUIAR JR., 2012)

Dessa forma, revela-se o caráter atípico dos direitos de personalidade, não sendo possível mensurar todas as suas espécies. Portanto, apesar de não estar inserido no ordenamento jurídico de forma expressa, o direito de conhecer a origem genética está inerente ao direito de personalidade, como um resguardo à dignidade da pessoa humana.

Heloisa Helena Barboza (2002), autora do artigo “Direito à identidade genética” expõe que:

Como a mais legítima e concreta expressão da personalidade, a identidade genética é um direito da personalidade, assim como o nome, e tanto ou mais do que os demais elementos da identificação, a informação da origem genética deve ser tutelada. [...] Imperativo reconhecer-se, nesses termos, um direito à identidade genética, como direito da personalidade, inscrito igualmente dentre os direitos fundamentais.

Vale a pena frisar, ainda, o exposto pela autora do texto “O direito fundamental à identidade genética na Constituição Brasileira”:

Quanto ao significado do direito fundamental à identidade genética, está focalizado na acepção individual, ou seja, na identidade genética como base biológica da identidade pessoal, que, em última análise, corresponde ao genoma de cada ser humano, individualmente considerado. A identidade genética é um bem jurídico fundamental a ser preservado, como uma das manifestações essenciais da personalidade humana, o que não significa estar a identidade pessoal reduzida à identidade genética. (PETTERLE, 2007)

Portanto, o direito de conhecer a origem biológica pode ser considerado uma espécie de direito de personalidade e também um direito fundamental, devendo ser preservado e protegido.

Quanto ao Parto Anônimo e a tentativa de o regulamentar no Brasil, foram editados três projetos de lei, arquivados em 2011. Todos possuem um ponto em comum, deixam evidente que a mulher que optar pelo parto anônimo ficará isenta de qualquer responsabilidade civil e criminal, mas apenas dois ressaltam a importância do conhecimento da ascendência biológica.

O primeiro projeto de lei, de número 2.747/2008, fora proposto pelo deputado Eduardo Valverde, em fevereiro de 2008, e tinha como proposta principal “prevenir o abandono materno de crianças recém-nascidas, e instituir no Brasil o parto anônimo nos tempos da presente lei” (BRASIL, 2008a).

Nesse primeiro projeto, prevê o artigo 6º que a gestante que optar pelo parto anônimo, antes ou no momento do parto, será alertada da importância do conhecimento da origem biológica. Confira-se a seguir:

A mulher que, antes ou no momento do parto, demandar o sigilo de sua identidade será informada das consequências jurídicas desse pedido e da importância para as pessoas em conhecer sua origem genética e sua história. (BRASIL, 2008a)

O segundo projeto de lei foi o de número 2.834/2008, realizado pelo deputado Carlos Bezerra, também em fevereiro de 2008, que, em seu artigo 2º, propõe a mudança do artigo 1.638 do Código Civil de 2002, para adicionar o parto anônimo aos casos de destituição do poder familiar e contém os seguintes fundamentos (BRASIL, 2008b):

[...] Muitas vezes, essas crianças são deixadas em latas de lixo, em banheiros públicos ou outros locais altamente insalubres com grande perigo de morte para esses recém-nascidos. Os motivos são os mais diversos: mães desesperadas, que não dispõem de recursos para criarem seus filhos, outras que buscam esconder a vergonha decorrente de uma gravidez fora da relação matrimonial ou até mesmo uma perturbação psicológica. Nesse caso, é importante que a legislação busque um meio de proteger os recém-nascidos que poderão estar sujeitos a essa cruel realidade.

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Em abril de 2008, o deputado Sérgio Barradas Carneiro realizou a proposta do projeto de lei nº 3.220/2008, e possui a mesma justificativa dos outros anteriores, sobretudo quando diz que “a mera criminalização da conduta não basta para evitar o abandono” (BRASIL, 2008c). Além disso, também expõe, em seu artigo 4º, uma ressalva quanto aos direitos do neonato de conhecer a sua origem genética:

A mulher que solicitar, durante o pré-natal ou o parto, a preservação do segredo de sua admissão e de sua identidade pelo estabelecimento de saúde, será informada das consequências jurídicas de seu pedido e da importância que o conhecimento das próprias origens e história pessoal tem para todos os indivíduos. (BRASIL, 2008c)

Isto posto, o que os três projetos de lei têm em comum é que garantem à genitora o total anonimato, o direito de dispor do poder familiar, além de isenção da responsabilidade civil e criminal pelos seus atos, indo em total confronto às normas vigentes no ordenamento jurídico brasileiro. Ora, permitir que a mãe se exima de criar o seu filho, por uma decisão unilateral, tendo em vista que a posição paterna também importa, é sobrepor os interesses da mesma em detrimento aos da criança, em específico ao reconhecimento da paternidade. Outrossim, os projetos de lei propõem que o recém-nascido fique sob custódia do hospital até ser levado a adoção, o que levaria alguns dias, sendo que, nesse ínterim, o infante seria uma espécie de “indigente”, haja vista que não haveria registro, o que fere, ainda, o seu direito de ser registrado imediatamente após o seu nascimento, protegido pela Convenção do Direito da Criança, ratificada pelo Brasil e com égide constitucional.

Vale salientar que o Estatuto da Criança e do Adolescente confere ao menor o direito de ser criado e educado pela sua família de origem e, excepcionalmente, em família substituta, conforme previsto no artigo 19 da citada lei, confira-se:

Artigo 19, ECA: É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral. (BRASIL, 1990b)

Ademais, as propostas oferecem uma forma de a mãe se destituir do poder familiar, o que somente ocorre em hipóteses especiais, previstas nos artigos 1.635 ao 1.638 do CC/2002. O legislador propôs uma maneira de a mãe se desobrigar da criação de seu filho, de forma quase que informal. Destaca-se que o ECA reitera que a suspensão e a perda do poder familiar devem ser decretadas judicialmente, conforme artigo 24. Para frisar ainda mais o amparo que o sistema normativo oferece à criança, o artigo 23 do ECA prevê que “a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar” (BRASIL, 1990b).

A Constituição Federal de 1988 é bastante ampla quando expõe que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, 22 com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (artigo 227), positivando expressamente o princípio da proteção integral (BRASIL, 1998).

É certo que o instituto tem como objetivo principal a prevenção de abandonos de recém-nascidos. É questionável se essa seria a medida mais certa e eficiente. A entrega da criança de forma anônima caracteriza uma relativização aos direitos de personalidade, como o direito ao nome e à origem biológica, que, como já foi abordado, é uma forma de proteção da dignidade humana. As crianças são seres que possuem atenção especial, tanto é que a Comissão de Seguridade Social e Família rejeitou, por unanimidade, um dos projetos de lei, sob o seguinte argumento:

As propostas contrariam todo o direcionamento das lutas e do trabalho desenvolvido pelos movimentos que por décadas atuam na defesa dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil. Os projetos contrariam a Convenção sobre os direitos das Crianças, ratificada pelo Brasil em 1990, e o Estatuto da criança e do Adolescente (ECA), que garantem aos filhos o direito de preservarem sua identidade e conhecerem suas origens. (BRASIL, 2008a)

Posto isto, o direito ao conhecimento da origem genética é uma espécie de direito de personalidade, garantido no ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, é também garantia fundamental da criança, assegurado no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Convenção sobre os Direitos da Criança. No tópico seguinte, será analisada essa garantia e sua proteção no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro mais a fundo.

2.2 O Direito Fundamental da Criança ao Conhecimento da sua Origem Biológica na Ordem Jurídica Brasileira: Análise da CF, ECA e demais normas vigentes.

A garantia do direito ao conhecimento da ascendência genética tem como base o direito constitucional à dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e do Estado Democrático de Direito, consignado no art. 1º, inciso III, da atual Constituição Federal.

É um direito fundamental de qualquer indivíduo, compatível com a dimensão da dignidade humana, o direito ao conhecimento da paternidade biológica, ou seja, de ter definida e saber qual é a sua origem genética.

Além disso, a Carta Magna de 1988, em seu art. 5º, inciso XIV, traz um embasamento ao direito de informação, de forma genérica, mas fundamental. O direito ao conhecimento da origem genética não aparece de forma expressa na Constituição, mas possui uma proteção implícita nas demais garantias e direitos fundamentais. Ainda no art. 5º, inciso XXXIII, a Carta Política estabelece que é direito de toda pessoa receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, com exceção às situações cujo sigilo seja necessário à segurança da sociedade e do Estado (MENEZES; BELTRÃO, 2018).

Na Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil em 1990 (Decreto nº 99.710/1990), é possível encontrar embasamento em relação ao direito à identidade do menor, o art. 7º, item 1, expõe que “a criança será registrada imediatamente após seu nascimento e terá direito, desde o momento em que nasce, a um nome, a uma nacionalidade e, na medida do possível, a conhecer seus pais e a ser cuidada por eles” (BRASIL, 1990a). Ademais, no art. 8º, item 1, a Convenção prevê também que “os Estados Partes se comprometem a respeitar o direito da criança de preservar sua identidade, inclusive a nacionalidade, o nome e as relações familiares, de acordo com a lei, sem interferências ilícitas”; o item 2 ainda complementa dizendo que a criança que for privada dos elementos que configuram sua identidade, devem possuir assistência e proteção dos Estados Membros, a fim de restabelecer sua identidade (BRASIL, 1990a).

No artigo “O direito à ancestralidade genética versus a prevenção ao abortamento e aos crimes contra os neonatos: análise com base no parto anônimo”, os autores Renata Oliveira Almeida Menezes e Silvio Romero Beltrão (2018), explicitam, ainda, quanto às disposições da Convenção dos Direitos da Criança:

Desse modo, evidencia a preconização da atuação do Estado na proteção da identidade da criança, argumento este que é utilizado para se priorizar o direito à ascendência biológica e para se repudiar o parto anônimo.

Outrossim, o direito à ancestralidade genética pode ser considerado um bem jurídico fundamental, resguardado não só na Carta Constitucional, mas também nas outras normas vigentes, componente imprescindível para o desenvolvimento pessoal do indivíduo. Vale a pena destacar o pensamento de Selma Rodrigues Petterle, em seu trabalho “O direito fundamental à identidade genética na Constituição Brasileira”:

A identidade pessoal não se resume à identidade genética. A identidade pessoal é noção bem mais complexa e abrangente, com dois componentes: um referencial biológico, que é o código genético do indivíduo (identidade genética), e um referencial social, este construído ao longo da vida, na relação com os outros. É nesse sentido que a doutrina refere-se a duas dimensões do direito à identidade pessoal: uma dimensão individual, que torna cada pessoa humana um ser único, original e irrepetível, diversidade essa que enriquece a humanidade; integrando o núcleo da respectiva dignidade o respeito pelo caráter único e diverso de seus elementos genéticos; e uma dimensão relativa da identidade pessoal, que compreende justamente a ideia de relação com as outras pessoas, ou seja, toda a construção de uma história pessoal, noção bem mais ampla e complexa. (PETTERLE, 2007)

Petterle aduz, contudo, que a definição do direito à identidade biológica está destacado na identidade genética como fundamento da identidade pessoal, que, em resumo, corresponde ao genoma de cada ser vivo, isto é, ao genoma humano de cada pessoa individualmente. Sendo assim, a identidade genética pode ser considerada como semelhante à individualidade genética (PETTERLE, 2007).

Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 os menores passam a ter uma proteção especial, sendo a efetivação dessas garantias uma obrigação da família e, sobretudo, do Estado. O estatuto trouxe consigo normas de proteção que dão um respaldo aos direitos fundamentais da criança e do adolescente. Confira-se, no artigo 3º da lei:

Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. (BRASIL, 1990b)

Nota-se, mais uma vez, o resguardo dado aos menores, garantindo-lhes uma vida digna e saudável, de modo que os direitos fundamentais não sejam deixados de lado e que prevaleça o melhor interesse para a criança. Direitos fundamentais aqui entendidos como proteção à dignidade da pessoa humana e todos os seus desdobramentos, inclusive o direito ao conhecimento da origem biológica.

No que concerne à importância do direito à identidade, o ECA exprime, no artigo 10, inciso II, o seguinte:

Art. 10. Os hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde de gestantes, públicos e particulares, são obrigados a:

[...] II – Identificar o recém-nascido mediante registro de impressão plantar e digital e da impressão digital da mãe, sem prejuízo de outras formas normatizadas pela autoridade administrativa competente (BRASIL, 1990b)

Além disto, o Estatuto da Criança e do Adolescente põe a salvo o direito ao conhecimento da ascendência genética em seu artigo 48, no caso de adoção, o qual pode-se aplicar aqui por analogia. Confira-se a seguir:

Art. 48. O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos. (BRASIL, 1990b)

Insta salientar que o artigo 19-A, §9º, do estatuto garante à mãe o direito ao sigilo sobre o nascimento, nos casos de adoção, respeitando, porém, o disposto no artigo 48 da lei. Sendo assim, é de se notar a importância de tal direito, visto que o mesmo é posto de forma preferencial pela norma (BRASIL, 1990b).

A redação do artigo 48 do ECA destaca a transcendência do infante de conhecer sua ascendência biológica, haja vista se tratar de um direito de personalidade defendido pelo Código Civil, como já demonstrado anteriormente, e pela Carta Magna de 1988, como arcabouço da dignidade humana.

Vale frisar, ainda, que o direito ao conhecimento da origem biológica em nada se confunde com o direito de reivindicar a filiação, conforme explica Danielle Dantas Lins de Albuquerque (2008), autora do texto “Parto Anônimo e o Princípio da Afetividade”:

Toda pessoa tem direito fundamental, na espécie direito da personalidade, de vindicar sua origem biológica para que, identificando seus ascendentes genéticos, possa adotar medidas preventivas para preservação da saúde e, a fortiori, da vida. Esse direito é individual, personalíssimo não dependendo de ser inserido em relação de família para ser tutelado ou protegido. Uma coisa é vindicar a origem genética, outra a investigação da paternidade. A paternidade deriva do estado de filiação, independentemente da 26 origem (biológica ou não). [...]. Em suma, a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo.

Sendo assim, o direito da criança de conhecer sua origem biológica possui proteção no ordenamento jurídico brasileiro, no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Código Civil, como intrínseco aos direitos de personalidade, e na Constituição Federal de 1988. Garantia de suma importância para o desenvolvimento do ser humano.

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Sobre a autora
Mikaella Maria de Aguiar Dias

Bacharela em Direito, formada em dezembro de 2020, pelo Centro Universitário de Brasília, atualmente estudando para a prova da Ordem e me dedicando a atividades jurídicas que me ofereçam novas experiências.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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