O instituto do parto anônimo como obstáculo da concretização do direito ao conhecimento da origem biológica

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23/03/2021 às 15:46
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3 APLICAÇÃO PRÁTICO JURÍDICA DO DIREITO À ORIGEM BIOLÓGICA

Reconhecendo que o direito à origem genética é um direito fundamental e de personalidade, intrínseco à dignidade humana, é importante ressaltar como que a jurisprudência tem se posicionado quanto ao assunto, o que se fará a seguir.

Não se fala aqui em direito ao estado de filiação, apesar de serem institutos bem próximos, não se confundem, sendo que a filiação possui origem no direito de família e a origem genética está mais ligada à garantia do conhecimento, como forma de preservar os interesses do indivíduo, decorrentes de sua formação genética (CARVALHO, 2019).

Em relação ao parto anônimo, por ser um instituto não regulamentado, não possui jurisprudência específica, mas o ponto aqui discutido diz respeito ao conhecimento da origem biológica e sua importância, diante das limitações trazidas pelas propostas do instituto.

3.1 Tutela do direito ao conhecimento da origem biológica

Em sua maioria, os tribunais vêm decidindo a favor do indivíduo que requer o conhecimento da sua origem biológica, realizando, contudo, a distinção entre a origem biológica e o estado de filiação. Um grande exemplo foi a decisão tomada pela 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em 2014, de lavratura do Desembargador Ricardo Moreira Lins Pastl, em sede de apelação nº 70057505208, no qual foi declarada a maternidade biológica sem alteração no registro civil, em razão da maternidade socioafetiva já configurada.

O Tribunal se manifestou no sentido de ser impreterível a declaração de ascendência biológica, haja vista que é diferente da constante no registro civil. Do corpo do acórdão extrai-se:

O exame de DNA comprovou esse vínculo genético e, portanto, a declaração judicial de sua existência revela-se imperativa, mesmo que não opere efeitos em relação ao assentamento de nascimento de Elaine. Assim, ainda que com o reconhecimento do liame biológico, desautorizada a anulação do registro, porquanto tal providência afetaria sobremaneira a identidade de Elaine e a relação já consolidada, não podendo ela ser prejudicada por atos pretéritos dos quais também foi vítima, e para os quais nada, por óbvio, colaborou. (RIO GRANDE DO SUL, 2014)

O acórdão acima transcrito deu perfeita efetividade ao conhecimento da origem biológica, diferenciando-o do direito à filiação. É certo que, independentemente de um vínculo filial já existente, é direito pessoal do interessado, como um direito da personalidade, de saber suas origens sem, contudo, interferir no vínculo afetivo.

O Supremo Tribunal Federal também já se pronunciou acerca do direito ao conhecimento da origem genética, no sentido de que a paternidade socioafetiva não exclui a responsabilidade biológica. No RE nº 898.060/SC, da relatoria do ministro Luiz Fux, com repercussão geral reconhecida, fixou-se o entendimento de que é possível o reconhecimento simultâneo do vínculo afetivo e do vínculo biológico, desde que essa seja da vontade do filho. Veja a conclusão:

[...] “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais. (BRASIL, 2016).

Destaca-se que a decisão deixou claro que o reconhecimento da origem biológica, simultâneo ao vínculo de filiação afetivo, pode desencadear, inclusive, consequências patrimoniais.

Outro ponto importante a se destacar no acórdão é que reconheceu o direito ao conhecimento da origem biológica como um direito constitucional implícito, além de ser um meio a assegurar o direito à busca da felicidade, cuja origem remonta ao surgimento do novo conceito de Constituição, conforme argumentado pelo eminente ministro relator. Veja a íntegra:

Cuida-se, a busca da felicidade, de preceito que eleva o indivíduo à centralidade do ordenamento jurídico-político, reconhecendo-se não apenas as suas capacidades de autodeterminação, autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios objetivos, mas também que o Estado, então recém-criado, deveria atuar apenas na extensão em que essas capacidades próprias fossem respeitadas. Traduz-se em um mandamento a que o governo se abstenha de eleger finalidades a serem perseguidas nas mais diversas esferas da vida humana, bem assim a que não se imiscua nos meios eleitos pelos cidadãos para a 29 persecução das vontades particulares. Nenhum arranjo político é capaz de prover bem-estar social em caso de sobreposição de vontades coletivas a objetivos individuais. (BRASIL, 2016).

Dessa forma, o conhecimento da origem biológica, está ligada também, mesmo que de forma indireta, à busca pela felicidade, capacidade do indivíduo de se autoconhecer e determinar, contribuindo, portanto, para o desenvolvimento da sua personalidade como um todo.

Outra jurisprudência de grande relevância para o assunto em questão, é a decisão tomada pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp nº 833.712/RS, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, no sentido de que caracterizase violação ao princípio da dignidade da pessoa humana dificultar o direito de conhecimento da origem genética, devendo ser respeitada a necessidade psicológica de se conhecer a verdade biológica, sendo que, nesse caso em questão, se tratava de uma adoção à brasileira.

Insta salientar a decisão do julgamento do RE nº 248.869/SP de 2003, cuja fundamentação fora citada pela ministra Nancy no REsp nº 833.712/RS, no sentido que:

O direito ao nome insere-se no conceito de dignidade da pessoa humana, princípio alçado à fundamento da República Federativa do Brasil (CF, artigo 1º, inciso III). O nome, por sua vez, traduz a identidade da pessoa, a origem de sua ancestralidade, enfim é o reconhecimento da família, base de nossa sociedade. Por isso mesmo, o patronímico não pertence apenas ao pai senão à entidade familiar como um todo, o que aponta para a natureza indisponível do direito em debate. No dizer de Luiz Edson Fachin 'a descoberta da verdadeira paternidade exige que não seja negado o direito, qualquer que seja a filiação, de ver declarada a paternidade. Essa negação seria francamente inconstitucional em face dos termos em que a unidade da filiação restou inserida na Constituição Federal. Trata-se da própria identidade biológica e pessoal – uma das expressões concretas do direito à verdade pessoal. (BRASIL, 2003b)

As propostas de implementação do parto anônimo no Brasil vieram com a garantia de anonimato total da genitora, o que causa um confronto de direitos fundamentais, quais sejam a liberdade de escolha e a dignidade. Apesar de ser um instituto de “boas intenções”, existem grandes obstáculos jurídicos à sua 30 regulamentação, como foi exposto. O direito ao conhecimento da ancestralidade genética se sobrepõe à garantia do anonimato, por contribuir para o desenvolvimento da personalidade humana, para a autopreservação da própria vida, além de evitar a ocorrência de doenças genéticas.

3.2 Outras ponderações jurisprudenciais referentes ao conhecimento da origem biológica

Um julgado que merece ser analisado é o acórdão proferido pela 5ª Turma do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, o qual fora reformado pelo Supremo Tribunal Federal, como RE nº 363.889.

Ocorre que, houve o trânsito em julgado da sentença que julgou improcedente a ação investigatória de paternidade. Em momento posterior, o interessado entrou com a ação novamente, alegando a viabilidade da realização do exame de DNA. No âmbito da segunda instância, o tribunal entendeu improcedente a ação em razão da coisa julgada já efetuada, argumentando que a eficácia da sentença não poderia ficar comprometida, o que causaria insegurança jurídica.

Ao chegar até o Supremo Tribunal Federal, na relatoria do ministro Dias Toffoli, onde foi reconhecida a repercussão geral do tema, a tese fixada foi a de relativização da coisa julgada, reformando o acórdão proferido pelo tribunal já mencionado. Em seu voto, o eminente relator argumentou no sentido de que “a ideia de coisa julgada como topo argumentativo isolado não se presta a resolver o problema do direito fundamental à identidade genética” (BRASIL, 2011), reconheceu, ainda, a busca da identidade genética como meio de concretização dos direitos de personalidade.

Além disso, ressaltou o ministro relator da importância de o Estado conceder acesso ao exame de DNA aos beneficiários da assistência judiciária e gratuita, como forma de conhecer a verdade sobre sua origem, citando julgados nesse sentido, para tanto.

Dá-se tanta relevância às ações de investigação de paternidade que foi editada uma súmula pelo Superior Tribunal de Justiça, no seguinte sentido:

Súmula 301. Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade. (BRASIL, 2003a)

Sobre o enunciado sumular, insta salientar o disposto no artigo “O conhecimento da origem genética como direito da personalidade”, da autora Bruna Fernandes Pereira de Carvalho (2019):

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Apesar de não possuir força vinculante, como salientado acima, insisto no exame da súmula, pois o judiciário, em sua rotina, de modo geral, não vem analisando os casos com a profundidade devida. Dessa forma, a aplicação direta do enunciado não resolve o aspecto da personalidade do investigante, isto é, o direito de conhecer sua origem genética.

Conforme disposição da autora, é necessário, além da aplicação direta da súmula, a análise sistemática do caso concreto, a fim de evitar decisões errôneas que levam o interessado a acreditar que o investigado(a) é seu suposto genitor(a), sem provas concretas para tal.

Sendo assim, constata-se a importância da origem biológica como um todo, devendo ser viabilizada pelo Estado, de modo que seja efetivada a garantia a dignidade da pessoa humana e o acesso a informação, contribuindo para a própria formação do interessado como detentor de direitos de personalidade. Dessa forma, se existe possibilidade de provar a ascendência genética, não cabe ao tribunal negar este direito, e sim contribuir para uma solução do conflito justa e efetiva, conforme princípio da inafastabilidade da jurisdição e primazia da decisão de mérito, ambos previstos no Código de Processo Civil de 2015, nos artigos 3º e 4º, respectivamente.

A proposta de implementação do parto anônimo é, de fato, uma medida que diminuiria os casos de aborto e abandono, não se nega aqui a possibilidade de dar certo, contudo, não se pode ignorar as garantias que poderiam ser colocadas em risco. No paradigma da Proteção Integral, está inserida a corresponsabilidade entre os pais e o Estado de garantir condições mínimas de existência ao menor, condições estas que deveriam ser inseridas por meio de políticas públicas efetivas, garantindo ao filho nascer e crescer no seio de sua família biológica e, de forma excepcional, em família substituta.

Nota-se que o conhecimento das próprias origens possui uma margem tão grande de importância, que até mesmo pode desconstituir a coisa julgada, na hipótese de não houver sido realizado exame de DNA no primeiro processo, em razão da “ponderação de valores”, como citado no Recurso Extraordinário acima.

Além disso, o parto anônimo confere à genitora o direito de se esquivar da responsabilidade materna, o que não pode ser um pressuposto para a relativização dos direitos do filho. Sobre esse assunto, destaca-se o Recurso Extraordinário nº 248.869/SP, da relatoria do ministro Maurício Côrrea, já mencionado. Nesse ponto, dispõe a ementa:

[...]5. O direito à intimidade não pode consagrar a irresponsabilidade paterna, de forma a inviabilizar a imposição do pai biológico dos deveres resultantes de uma conduta volitiva e passível de gerar vínculos familiares. Essa garantia encontra limite no direito da criança e do Estado em ver reconhecida, se for o caso, a paternidade. (BRASIL, 2003a)

Não se nega aqui o direito à intimidade, somente se afirma que o mesmo não pode ser utilizado para afastar, por si só, a obrigação da paternidade responsável e o dever dos pais biológicos de conceder condições de crescimento e saúde adequada para seus filhos.

É certo que, quando se fala em direitos fundamentais, é cediço que não existe hierarquia entre eles, e a melhor maneira de solucionar a colisão é por meio de técnicas de ponderação.

Nesse sentido, a autora Bruna Fernandes Pereira de Carvalho (2019) dispõe:

Ponderar significa avaliar qual dos princípios detém o maior peso, porém não significa que um dos princípios deva ser desprezado, uma vez que não há hierarquia entre eles. O que determinará qual princípio deverá ceder serão as circunstâncias (BARROSO, 2008, p. 56).Destarte, para amparar na ponderação, recorre-se ao princípio da dignidade da pessoa humana para a definição do direito que deve se sobrepor ao outro. No tocante ao direito à intimidade do réu em ação de ascendência genética, de fato deverá ser sacrificado um direito fundamental, de maneira que o direito do filho de conhecer sua origem genética prevaleça em relação ao direito à intimidade.

Como retratado pela autora em seu texto, o direito ao conhecimento da origem genética está vinculado diretamente ao conhecimento da dignidade humana, configurando uma qualidade essencial para o desenvolvimento do ser humano, como pessoa dotada de personalidade (CARVALHO, 2019).

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Sobre a autora
Mikaella Maria de Aguiar Dias

Bacharela em Direito, formada em dezembro de 2020, pelo Centro Universitário de Brasília, atualmente estudando para a prova da Ordem e me dedicando a atividades jurídicas que me ofereçam novas experiências.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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