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O cabimento do acordo de não persecução penal em casos de homicídios na direção de veículo automotor

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 Acordo de Não Persecução Penal

 O acordo de não persecução penal (ANPP) é instituto despenalizador pertencente à justiça penal negociada e foi legitimado no ordenamento jurídico por meio da Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime). Em sua gênese, a benesse era prevista apenas por meio da Resolução nº 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, a qual foi modificada pela Resolução de nº 183/2017 do mesmo órgão.

O objetivo do ANPP é garantir uma justiça criminal mais célere, eficiente e econômica, evitando-se a denúncia e instrução criminal em crimes de pequeno e médio potencial lesivo. O instituto encontra-se previsto no art. 28-A do CPP e pode ser aplicado quando o Ministério Público julgar o benefício necessário e suficiente para a repressão e prevenção de crimes com pena mínima não superior a 4 anos e cometidos sem violência e grave ameaça à pessoa, desde que haja confissão formal e circunstanciada do crime pelo agente (BRASIL, 2019).

Repita-se, aqui, que não basta a confissão do autor do crime, faz-se indispensável a existência de elementos outros que levem o órgão ministerial ao convencimento sobre a materialidade e autoria do delito e, consequentemente, ao oferecimento do acordo. Do contrário, diante de um caso concreto sem elementos informativos suficientes, apesar de esgotadas todas as táticas investigatórias, outra saída não restará senão o arquivamento por ausência de provas (BARROS E ROMANIUC, 2019, p. 31).

Para que seja formalizado o acordo, deverá ser observado se o investigado cumpre os requisitos subjetivos para alcançá-lo. Conforme determina o art. 28-A, §2º, não caberá o benefício caso seja cabível transação penal; se o investigado for reincidente ou houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional; se o agente já foi beneficiado nos cinco anos anteriores ao cometimento da infração em ANPP, transação penal ou suspensão condicional do processo e nos crimes praticados em âmbito de violência doméstica ou familiar contra a mulher em razão da condição de sexo feminino.

Caso realizado o acordo, o agente deverá cumprir as seguintes condições, ajustadas cumulativa e alternativamente:

I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (BRASIL, 2019).

Importante ressaltar que o acordo jamais terá como medida a ser acordada uma pena privativa de liberdade, sendo que somente medidas correspondentes às penas restritivas de direitos poderão ser cumpridas. Ainda assim, deve-se frisar que as condições firmadas não devem ser conceituadas como penas, pois não derivam de sentença penal condenatória, não possuem caráter de sanção e são medidas acordadas entre acusação e defesa em troca de benefícios para ambos. O pacto de não denunciação deverá passar sobre o crivo do judiciário para que o juiz fiscalize o preenchimento dos requisitos legais e o homologue.

Após a homologação do acordo, o juiz deverá devolver os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal. Após o cumprimento das medidas acordadas durante a celebração, o ANPP não constará na certidão de antecedentes criminais do agente, o que favorece a ressocialização do acordante, evitando-se a estigmatização e diminuindo os impactos negativos que um processo criminal ou eventual condenação acarreta ao acusado no mercado de trabalho.

Nesse sentido, a inserção do ANPP e sua abrangência nos crimes previstos no ordenamento jurídico brasileiro representa um avanço da justiça penal consensual e rompe com o modelo padrão da justiça conflitiva clássico. O benefício, que possui natureza híbrida, evita a instrução criminal, modificando a regra processual de obrigatoriedade da ação penal, ao mesmo tempo em que modifica o direito material, pois acarreta a extinção da punibilidade do agente após o cumprimento das medidas ajustadas, não por meio de um processo, mas através da negociação.


ANPP e homicídios cometidos em direção de veículo automotor

A partir da legitimação do ANPP no ordenamento jurídico brasileiro, questiona-se acerca da possibilidade da utilização do instituto em homicídios cometidos na direção de veículo automotor. Sabe-se que é cabível a negociação em crimes cometidos sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 anos, desde que o autor confesse formal e circunstanciadamente o crime e que o Ministério Público entenda suficiente para a prevenção e repressão ao delito. Nesse sentido, é preciso avaliar em um primeiro momento a pena tipificada e se o crime foi cometido com violência ou grave ameaça.

A partir da análise do CTB, via de regra, homicídios cometidos na direção de veículo automotor na modalidade prevista no art. 308, §2º do Código de Trânsito Brasileiro implicam o não cabimento do ANPP devido à pena mínima que lhe é cominada:

Art. 308.  Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada:  (Redação dada pela Lei nº 13.546, de 2017)   (Vigência)

Penas - detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.          (Redação dada pela Lei nº 12.971, de 2014)    (Vigência)

§1o  Se da prática do crime previsto no caput resultar lesão corporal de natureza grave, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.           (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014)    (Vigência) 

§2o Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014) (BRASIL, 1997)

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No tocante à forma simples dos crimes culposos na direção de veículo automotor, prevista no art. 302 do CTB e à qual se estabelece pena de detenção de dois a quatro anos, poderá ser cabível o ANPP. No §1º, encontram-se previstas formas majoradas do homicídio culposo da referida modalidade, podendo a pena ser aumentada de 1/3 até metade.

Por isso, a depender das circunstâncias do fato, quais sejam não possuir permissão para dirigir ou carteira de habilitação; praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada; deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente e, no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros, poderá obter-se o benefício, caso não seja aumentada a pena mínima até a metade.

 Conforme explicado nos tópicos anteriores, a conduta culposa é aquela que deriva de imprudência, negligência ou imperícia. Assim, não há a intenção de realizar a morte de alguém por meio da condução de veículo automotor, e, por isso, desde que não se atinja a pena mínima inferior a 4 anos, será cabível o benefício do ANPP.

Segundo Mauro Messias (2019), os delitos culposos não integram o conceito de crime cometido com violência, pois essa categoria demanda dolo. Entretanto, em crimes cometidos com violência imprópria, ou seja, com redução da capacidade de resistência da vítima para realizar a conduta, encaixa-se a conduta dolosa, não sendo cabível o pacto de não denunciação.

No que diz respeito à hipótese do §3º, na qual o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine sua dependência, não será cabível o ANPP, haja vista que a pena é de reclusão de cinco a oito anos. Importante ressaltar que na hipótese de homicídio cometido em direção de veículo automotor sob influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa deverá ser comprovado também que o contexto do crime ocorre culposamente, pois caso comprove-se que o condutor também contribuiu dolosamente para o resultado, dirigindo na contramão e abusando da velocidade, por exemplo, a responsabilização será pelo homicídio doloso previsto no art. 121 do Código Penal Brasileiro. 

A partir de todo o exposto, infere-se que as únicas modalidades de homicídios cometidos em direção de veículo automotor passíveis de ANPP são as previstas no art. 302, caput e §1º, do CTB. No entanto, algumas correntes entendem não ser cabível o ANPP em crimes culposos, conforme será estudado adiante, o que ficou verificado em casos nos quais o Ministério Público não ofereceu o acordo nas referidas modalidades por não entender ser suficiente a prevenção do crime, devido à gravidade abstrata que os crimes cometidos na direção de veículo automotor carregam.

Portanto, o próximo tópico será dedicado à análise desses entendimentos, o que prevaleceu no final dos casos envolvendo homicídios culposos em direção de veículo automotor, bem como se há ou não direito subjetivo do investigado ao acordo nas referidas hipóteses, considerando-se, principalmente, a ofensividade abstrata que resguarda os crimes de homicídios cometidos na direção de veículo na realidade brasileira. 

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Sobre os autores
Maria Luiza Alves Silveira

Atuação na área do direito. Estagiou como conciliadora no Juizado Especial Cível. Estagiou no Ministério Público Federal. Graduanda em Direito na Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVEIRA, Maria Luiza Alves ; PINHO, Wagner Leandro Pereira et al. O cabimento do acordo de não persecução penal em casos de homicídios na direção de veículo automotor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6569, 26 jun. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91420. Acesso em: 26 abr. 2024.

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