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O trabalho escravo contemporâneo no sudeste paraense: uma análise das sentenças criminais

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 5. Apresentação dos dados e análise das sentenças

 5.1 Apresentação dos dados

 A pesquisa teve acesso a 47 sentenças, sendo 40 da 1ª vara e 7 da 2ª vara, da subseção judiciária de Marabá. Tal disparidade no número de sentenças por vara se explica porque a 2ª vara é especializada em agrário e ambiental, mas, ao mesmo tempo, tem competência geral sobre outras matérias. Como forma de compensar o sistema de justiça, ocorrem menos distribuições para a 2ª vara em matéria criminal. O período das sentenças é de 2013 a 2016. Abaixo segue gráfico contendo a quantidade de condenações e absolvições:

Fonte: elaborada pela autora

Como se pode constatar, há um enorme disparate entre o número de condenações e absolvições. De um total de 47 sentenças, apenas 8 foram condenatórias. Esse outro gráfico demonstra a quantidade de sentenças julgadas por ano:

Fonte: elaborada pela autora

Conforme os dados demonstrados, no período escolhido pela pesquisa no ano de 2016 houve mais julgamentos sobre o crime de trabalho escravo. O próximo gráfico revela a quantidade de processos/sentenças por município:

Note-se que o município de São Félix do Xingu é o que mais apresenta incidência de trabalho escravo em relação aos outros municípios no período analisado. Tal constatação revela a necessidade de uma melhor intervenção das instituições nesse município. Foram analisadas 10 sentenças (processos números: 2007.39.01.000538-4, 8483- 39.2010.4.01.3901, 2004.39.01.000549-0, 2008.39.01.001405-8, 2008.39.01.001483-2, 2009.39.01.000121-6, 2009.39.01.000519-0, 6190-96.2010.4.01.3901, 2008.39.01.001492-1, 6044-21.2011.4.01.3901), sendo 8 absolvições e 2 condenações, perfazendo um percentual de mais de 20% do total de condenações.

5.2 Análise das sentenças

Nas sentenças analisadas, os juízes reconhecem o desrespeito à legislação trabalhista, que as condições de trabalho não são adequadas. Todavia, quando ocorre a identificação da caracterização do crime trabalho escravo, esta é afastada sob o argumento de que não há cerceamento de liberdade ou faltam provas. Ocorre que, o trabalho escravo também é trabalho degradante, também é jornada exaustiva e também é servidão por dívida, como está descrito no próprio dispositivo do preceito primário do artigo 149 CP, de forma alternativa. A pesquisa identificou que um dos aspectos mais complexos de serem analisados pelos magistrados é o trabalho degradante. Sobrevive ainda a interpretação de que o trabalho degradante deve ferir também a liberdade do indivíduo. No excerto abaixo há uma confusão na conceituação do magistrado entre o que seja trabalho degradante e privação de liberdade.

Vejamos:

 (…) para a configuração do delito na modalidade relativa às condições degradante de trabalho, é necessário que estas se mostrem de tal maneira graves que impliquem em ofensa à liberdade e dignidade. O sujeito ativo, por meio de uma relação de emprego (formal ou informal), subjuga o sujeito passivo, vedando-lhe a liberdade de locomoção e/ou decisão, e tornando-o quase um objeto. É justamente sobre essa transmutação da pessoa como sujeito de direitos em mero objeto que se apoia o tipo penal. O agente impõe ao ofendido condições tão severas de trabalho que o liame entre ambos se torna mera submissão/exploração de uma pessoa por outra, como se a mão de obra fosse simples mercadoria e não houvesse portador de direitos. Grifo nosso. [Grifos nossos] (PARÁ, 2016A: 17).

Trabalho degradante é o que está descrito no relatório de fiscalização realizada na fazenda Carvalho, citado nas sentenças abaixo, e que foi tratado como mera infração trabalhista:

(…) o relatório de fiscalização do ministério do trabalho (fls. 25/38), adornado com fotografias, narra que as instalações onde ficavam os trabalhadores eram precárias, visto que não havia água tratada, os barracos eram cobertos com lona, sem proteção lateral; não havia banheiro; os alimentos estavam acondicionados em locais indevidos, etc… Entretanto é notório que tais deficiências logísticas representam muito mais um retrato do local de prestação de serviços (região amazônica) e tipo de trabalho realizado (roça de vegetação danosa aos pastos – juquiras), em que o empregador deixa de cumprir regras trabalhistas, do que o dolo de ter seres humanos subjugados ao seu poder econômico, então reduzidos à condição de escravos. [grifo nosso] (PARÁ, 2016A: 9) O deficiente acondicionamento dos alimentos, o fornecimento de água do córrego – geralmente sujeito ao uso de animais da região, e os alojamentos improvisados configuram, certamente, infrações trabalhistas cometidas pelo empregador, mas também espelham a presença da própria dificuldade logística encontrada no ambiente em que desenvolvida a prestação laboral. [grifo nosso] (PARÁ, 2016B: 10)

Não se equivoca o magistrado ao fazer um retrato da situação laboral nos rincões da Amazônia, onde essas práticas ainda são corriqueiras. O mesmo ilustra com detalhes as condições a que são submetidos os trabalhadores rurais em algumas fazendas do sudeste paraense. Afirma que “é inconteste que a deficiência estrutural então detectada, que prejudicava o trabalho dos obreiros, decorre também das condições físicas então existentes e não somente da desídia do empregador” sugere o magistrado que as “condições físicas da região” é que contribuem para a prática delituosa. Ao estabelecer essa relação do crime com o espaço geográfico, classificando-o como costume da região, o magistrado desonera o empregador de suas responsabilidades, já que o cenário natural bem aponta que os trabalhos eram executados em típica região de fronteira agrícola (PARÁ, 2016A:11).

Não deveriam os aspectos físicos da região amazônica, de expansão fronteira agrícola, como bem classificada pelo magistrado, ser o principal contribuidor para as condutas exploratórias contra os trabalhadores, pois é desse mesmo solo, ar, água e tudo de riqueza que o espaço amazônico proporciona, o motivo de grande atração para que os empreendimentos instalados aqui angariassem grandes lucros, basta que se acompanhe os grandes faturamentos que eles movimentam. Algumas das fazendas, inclusive pomposas, com altos lucros, raízes em multinacionais, como já descrito no capítulo 2, mas que conservam em seu interior as práticas mais desumanas, arcaicas e indignas de exploração. Inadmissível ainda em nosso século a exploração do homem pelo homem por conta do capital. O equívoco está na compreensão do magistrado que, atuando em nome do Estado, com base nas atribuições constitucionais que lhe foram conferidas, se comporta contrário a qual princípio elencado na mesma constituição, a qual ele tem o dever de salvaguardar, e que ora invoca-se para resguardar a dignidade da pessoa humana. Ao “naturalizar” a situação, há uma pretensão de torna-la aceitável aos nossos olhos, e utiliza-la como argumento a desfavor dos trabalhadores.

É indubitável que o dispêndio da força de trabalho dos obreiros reverte-se em prol do empregador, que de fato deve ser responsabilizado pelo que ocorre no local de trabalho. É ele quem se beneficia direta ou indiretamente pela produção devendo responder pelas obrigações decorrentes da sua prestação.

De fato, não se pode exigir do empregador uma infraestrutura tal qual a urbanizada, visto que isso é função do poder público, porém, a falta de estruturas mínimas não deve servir de artificio para que ele se utilize dessas falhas e submeta seus trabalhadores a condições indignas. Se o empregador latifundiário não tem condições de oferecer ambiente de trabalho digno aos seus empregados, o mesmo não deve se valer do recrutamento para submetê-los a situações subumanas e de constantes ameaças nas suas terras, ainda que os trabalhadores estivessem em situação de vulnerabilidade social ocasionada pela pobreza. O empregador não tem o condão de reverberar ainda mais essa vulnerabilidade no ambiente laboral, tolhendo a capacidade do indivíduo de se desfazer do estado de miserabilidade. Infelizmente, na sentença 2009.39.01.000519-0, o magistrado entende que “não se afigura razoável exigir do empregador a construção de alojamentos e instalações sanitárias no meio do mato, a fim de abrigar trabalhadores que ali permanecerão por um curto espaço de tempo” (PARÁ, 2014B:6).

Ressalte-se que o fato de cidadãos pobres e humildes aceitarem a indigna sujeição a tal tipo de condições – o que fazem em razão da absoluta falta de alternativa para garantia da própria subsistência – não autoriza a outrem, valendo-se da privilegiada posição de empregador e possuidor do poder econômico, literalmente lucrar com a miséria e desgraça alheias.

 Nos excertos extraídos da sentença 2008.39.01.001483-2, resta evidente que os empregadores se eximem da responsabilidade pelo ambiente de trabalho, logicamente que esse sentimento, advém da impunidade reprodutora do ciclo da escravidão. Nesse sentido, se torna oportuno transcrever os seguintes depoimentos:

Na casa foram encontradas armas e um caderninho de anotações com as dívidas que os trabalhadores faziam no sistema de barracão, que tinham alimentos e inclusive bebidas alcóolicas, mas depois nós ficamos sabendo que as bebidas alcóolicas eram fornecidas gratuitamente pelo proprietário da fazenda (…) eles tinham saído de lá (fazenda) porque tinha batido um vento muito forte e tinha desmanchado o barracão e aí teve outra frase que se tornou emblemática (…) quando o trabalhador foi lá com o proprietário da fazenda e ele lhe disse : “peão é igual a bicho do mato, e eu é que não vou dar hotel cinco estrelas para peão. [Grifo nosso] (PARÁ, 2013C: 4)

 O entendimento da que foi identificado no estudo detectou que há uma inclinação em não reconhecer e caracterizar o trabalho escravo. Essa é uma das causas, senão a principal causa, do grande número de absolvições no Sudeste do Pará. A compreensão de trabalho escravo pelos juízes federais ainda não superou a sua vinculação ao conceito de cerceamento de liberdade e também que basta a aplicação da sanção trabalhista para a conduta seja reprimida.

 Note-se que, no caso, não há como ignorar que a ausência de instalações adequadas para alguns dos trabalhadores retrata, na verdade e infelizmente, a realidade da região em que verificados os fatos, que pode ser encontrada também em muitas regiões interioranas do brasil e sancionáveis pelo direito trabalhista, mas que se mostra insuficiente para a ação do jus puniendi estatal. Eventuais excessos na forma de explorar o labor humano devem ser coibidos pelo sistema fiscalizatório trabalhista, sem, contudo, representar, imediata e cartesianamente, o tipo encravado no art, 149 da lei penal brasileira. Não basta a simples constatação das circunstâncias narradas para que sejam configuradas a existência de trabalho degradantes tipificado no CP como trabalho escravo, que exige mais, a ponto de se compreender que a vítima se assemelhou a escravo ou coisa [grifo nosso] (PARÁ, 2016B: 12).

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Algumas sentenças tendem a negar a necessidade de intervenção do direito penal. São, portanto, contrárias à posição da efetivação dos direitos humanos, e, declaram uma posição retrógrada daquilo que foi proposto pelo legislador. A visão reducionista adotada é por diversas vezes reforçada, pormenorizada e fortalecida, tratando o crime de trabalho escravo apenas como uma situação de infração trabalhista, não sendo passível de ser considerado um delito que necessite do jus puniendi do Estado, ou seja, não sendo necessário recorrer a ultima ratio. Ocorre que, se o desrespeito ao bem jurídico a ser protegido pelo dispositivo do código penal, no caso a dignidade da pessoa humana, não fosse considerado uma conduta punível, não haveria necessidade de previsão no código penal; mais ainda, seria descartável a alteração ocorrida em 2013, que veio, justamente, para aclarar a interpretação do dispositivo e estimular a punição dessa conduta degradante.

 Enfatize-se mais uma vez que a proteção à dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil, com irradiação no ordenamento jurídico, e, no caso do trabalho escravo no âmbito trabalhista, criminal e administrativo. Dessa forma, a mesma conduta deve ser combatida nessas diversas esferas. O relatório realizado pelos auditores fiscais do trabalho desencadeia a proteção a dignidade da pessoa humana nas três esferas. Se o estado brasileiro, em consonância com os diplomas internacionais, Constituição do país e leis  infraconstitucionais, não tivesse se convencido de que o combate a essa chaga social deveria ser ampliado, não haveria necessidade de se recorrer à “mão pesada” do direito de punir do Estado, bastando que o fenômeno fosse contornado apenas na seara trabalhista, até porque a Justiça do Trabalho não possui competência para julgar ações penais, ainda que de natureza trabalhista (14).

Como bem trata o princípio da legalidade no direito penal: nullum crimen nulla poena sine previa lege, estampado no artigo 1º do código penalista, “não há crime sem lei anterior que a defina, nem há pena sem prévia cominação legal”. No caso em comento, as formalidades foram todas respeitadas: há previsão do tipo penal, descrição da conduta delituosa e definição de pena, porém a negação da aplicação do dispositivo reforça ainda mais a prática e impunidade, vitimando um sem número de trabalhadores.

Na Justiça do Trabalho o reconhecimento da infração trabalhista gera as devidas aplicações das sanções trabalhistas, dentro dos limites de sua jurisdição. O mesmo ocorre na seara penal, onde o intérprete deveria partir da ideia de que já houve a infração trabalhista, visto que o crime é realizado no âmbito laboral. Todavia, o objeto que está em discussão nesse âmbito é o bem jurídico relevante a ser protegido pela norma penal, dignidade da pessoa humana, e deve ser levado a punição em caso de transgressão, merecedora, portanto, de um outro olhar voltado para a repressão da conduta. A prática está sujeita ainda a sanção administrativa, passível de multas a serem aplicadas aos empregadores, e desapropriação da propriedade utilizada no crime para fins de reforma agrária ou habitação popular.

No entanto, ainda persiste a ideia de que “a atuação das normas trabalhistas se mostram suficiente para reequilibrar o meio social (… ) de forma que eventual ação punitiva, no campo criminal, revela-se desproporcional – verdadeira maximização da norma penal” (PARÁ, 2016C:6) . Defender esse posicionamento, significa desconstituir todo um sistema de garantias que caminha para a máxima efetivação dos direitos humanos e fundamentais, e que não sobrevive de retrocessos.

Em relação à caracterização da servidão por dívida, observa-se que nas sentenças 2007.39.01.000538-4, 8483-39.2010.4.01.3901, 2007.39.01.000538-4 , foi invocado o artigo 458 da CLT como fundamento para afastar a caracterização da servidão por dívida. No entanto, ao se reportar apenas a esse dispositivo isoladamente, sem considerar as repercussões e contexto a que ele se presta, principalmente no âmbito trabalhista, o magistrado cometeu o equívoco de tornar a fundamentação desconectada com os princípios do diploma laboral:

 Oportuno fazer constar que a Consolidação das Leis do Trabalho- CLT permite a cobrança pelo fornecimento de alimentação aos trabalhadores, desde que não se desenvolva sob preços abusivos, mas sim, justos e razoáveis. Art. 458 – Além do pagamento em dinheiro, compreende-se no salário, para todos os efeitos legais, a alimentação, habitação, vestuário ou outras prestações “in natura” que a empresa, por força do contrato ou do costume, fornecer habitualmente ao empregado. Em caso algum será permitido o pagamento com bebidas alcóolicas ou drogas nocivas. § 1º os valores atribuídos às prestações “in natura” deverão ser justos e razoáveis, não podendo exceder, em cada caso, os dos percentuais das parcelas componente do salário-mínimo (arts. 81 e 82) (PARÁ, 2016B: 8)

O artigo 458 da CLT deve ser interpretado de modo sistemático, através de sua integração com os demais dispositivos de uma mesma lei (no caso os artigos 462 e 463 da CLT), pois o sistema de proteção salarial conferido pela ordem justrabalhista manifesta-se em garantias amplas fundadas nos princípios e normas que asseguram a indisponibilidade dos direitos trabalhistas e que vedam até mesmo transações, quando lesivas ao obreiro. Ao lado dessas, há outras garantias mais específicas, que dizem respeito à proteção do valor do salário; contra abusos do empregador, e mesmo contra as investidas de credores do empregador e do próprio empregado.

Como já frisado, um dos elementos que caracterizam a ocorrência do trabalho escravo contemporâneo é a vinculação do trabalhador rural ao sistema monopolista de venda de alimentos diversos de primeira necessidade por parte do proprietário rural. Este é o chamado sistema do truck system ou barracão, em que o empregador disponibiliza para venda ao obreiro diversos produtos úteis à sua sobrevivência e ao desempenho de suas atividades laborais. Os valores praticados pelo dono do armazém estão muito além do valor de mercado ou mesmo não atribui-se qualquer valor ao produto, de modo que o trabalhador ignora por completo quanto despende para adquirir determinado gênero, procedendo apenas à anotação em um caderno dos produtos adquiridos, conforme descrição do relatório de fiscalização na fazenda Boa Esperança, contido na sentença 2008.39.01.001405-8:

Eram descontados todos aqueles valores e os trabalhadores saiam sem nada, eles não recebiam salário durante um período que ficavam lá e foram dispensados sem nada, sem pagamento de verbas rescisórias, porque o caderninho, no final, eles somaram as dívidas, não tinham nada para receber. (PARÁ, 2013B:4)

Ao final do serviço, por exemplo, realiza-se o ajuste e o empregado sempre está devendo. Em tese, tal prática deveria servir como forma de facilitar o acesso a tais bens, especialmente nos casos, em que as propriedades rurais são distantes de centros urbanos. A legislação pátria veda a adoção dessa medida, quando impulsionada pelo uso da coação ou induzimento, ou quando objetiva ampliar os ganhos do empregador. Enfatize-se que não há de caracterizar, nesse caso, contraprestação salarial in natura, pois não é ato de comércio, como se observa na situação aventada. Ademais, a própria lei n. 5889/73 estabelece os parâmetros percentuais permitidos de serem feitos, os quais devem sempre ser precedidos de autorização, por escrito. Na região amazônica, tal prática é conhecida como contrato de aviamento:

 O mecanismo do aviamento pode ser resumido, considerando uma relação trilateral. De um lado, o mercado regional vende bens ao aviador, que é o dono do barracão (aviamento fixo) ou do regatão (aviamento itinerante), que os avia ao pequeno produtor, o aviado, sem qualquer formalidade ou solenidade, e, às vezes, no caso do barracão, adianta-lhe algum dinheiro. O pequeno produtor pagará as mercadorias e o eventual adiantamento ao fim da safra, com os produtos que colher. No entanto, a realidade é que a conta jamais é encerrada, transformando o pequeno produtor ou trabalhador do interior da Amazônia em um devedor eterno do comerciante, significando, então, uma espécie peculiar de trabalho forçado, à medida que o aviado é obrigado a trabalhar para, produzindo, transferir a totalidade do obtido para seu credor. O aviador recebe os produtos colhidos e os repassa ao mercado regional. (FILHO apud ALVES 2008:49)

Muitas vezes o pagamento de salário complessivo é verificado nos casos de redução do trabalhador à condição análoga de escravo. O salário complessivo caracteriza-se não discriminação das parcelas salariais devidas ao empregado no ato de pagamento. A vedação a tal prática, prevista no artigo 462, par. 2º da CLT, também se aplica ao rurícola, considerando a disposição do artigo 1º da lei do trabalhador rural.

 Como se pode observar, foram poucas as condenações no relatório do período pesquisado. E ainda, nos processos em que há condenação, chama-nos atenção o efeito atenuante atribuído pelos magistrados, com base no artigo 66 do CPB: “a pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstancia relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei”. A circunstância relevante a que o magistrado faz menção é a condenação na justiça do trabalho: “considerando que se efetuou o pagamento das verbas rescisórias, reduzo a sanção em 1 (um) ano e 20 (vinte) dias- multa, por força da circunstancia atenuante estatuída no artigo 66 do código penal” (PARÁ, 2013C:7).

 Fica evidente, mais uma vez, o relevo que é dado à infração trabalhista. A noção de que o pagamento de verbas rescisórias perante a justiça do trabalho é o foco e, portanto, um elemento atenuante. O artigo 66 do CPB foi utilizado como fundamento para a amenização da pena. Segundo o penalista Nucci (2014), a atenuante do artigo 66 é inominada:

 Trata-se de circunstância legal extremamente aberta, sem qualquer apego à forma, permitindo ao juiz imenso arbítrio para analisa-la e aplica-la. Diz a lei constituir-se atenuante qualquer circunstância relevante ocorrida antes ou depois do crime, mesmo que não esteja expressamente prevista em lei. (NUCCI, 2014:476).

 O julgador não agiu arbitrariamente, porém, trata-se de uma discricionariedade a aplicação dessa atenuante. Nesse caso o juiz se valeu do resultado da condenação trabalhista para atenuar a condenação criminal. Embora o magistrado possa se valer desse argumento,  depreende-se que são esferas de condenações distintas, que possuem nuances específicas. O mesmo raciocínio poderia se aplicar ao crime de improbidade administrativa, por exemplo, que, por admitir julgamento nas três esferas (administrativas, civil e criminal), aplicar-se-á uma espécie de “compensação” de uma das esferas em outra.

Outro ponto que reclamou destaque em nossa pesquisa é o “julgamento em atacado”. É público e notório o grande número de processos que, a cada ano, surgem nas varas federais de Marabá. Não por acaso, o crescente número deve-se também à sensação de impunidade que essas decisões produzem no seio social, impulsionando a ação dos malfeitores que agem no maior desprezo à norma penal.

Destaca-se, no início da análise, a repetição dos mesmos argumentos em várias sentenças. Embora, por se tratar do mesmo crime, alguns pontos são comuns e podem ser repetidos no fundamento, o que chama atenção é que esse “julgamento em atacado” pode impedir o acesso a uma prestação jurisdicional efetiva. Nos processos da seara penal, assim como em outro âmbito do poder judiciário, cada caso possui nuances próprias, visto que os agentes envolvidos, apesar de apresentarem características sociais semelhantes, apresentam variáveis.

As sentenças 2004.39.01.000549-0, 2004.39.01.000907-9, 2008.39.01.000042-0, embora de épocas distintas, porém julgadas na mesma vara, possuem argumentos idênticos, ou seja, a tratativa é a mesma no decorrer dos anos, apesar do tipo penal e as discussões a respeito do tema terem sofridos sensíveis alterações. Esse julgamento similar reproduz mais ainda uma invisibilidade social dos trabalhadores, além de se tornar um atentado ao acesso à justiça.

Em sua maioria, as sentenças absolutórias declaram a ausência de prova, ainda que, como no fragmento abaixo, exista o reconhecimento de trabalho degradante:

Conquanto se constate que houve prática de trabalho em condições inadequadas, não se pode imputar a nenhum dos réus as sanções penais do artigo 149 do código penal, uma vez que não foi comprovado judicialmente qualquer tipo de cerceamento de liberdade. (…) A prova produzida não comprova a existência de restrição à liberdade de locomoção dos trabalhadores, por intimidação ou vigilância armada. Não foram encontradas armas de fogo, tampouco se demonstrou a prática de coação sobre os obreiros. (…) Dessa forma. Embora sujeitos os trabalhadores a condições degradantes de labor, a punição pelo plágio não se justifica porque não comprovada a privação da liberdade, que é a marca consagrada da escravidão. (PARÁ, 2014A: 6)

Portanto, verifica-se que não havia condições saudáveis de trabalho, e o motivo de pedir arquivamento não é a falta de provas, mas o fato de não caracterizar trabalho escravo. Notadamente, há um forte apego dos magistrados ao mero formalismo da lei, preocupando-se pouco em realizar uma interpretação que promova a justiça social. Dalmo de Abreu Dallari critica esse posicionamento formal dos juízes:

Não se percebe preocupação com os interesses e as angústias das pessoas que dependem das decisões e que muitas vezes já não têm mais condições de gozar dos benefícios de uma decisão favorável, porque esta chegou quando os interessados já tinham sido forçados a abrir mão se seus direitos, arrastados pelas circunstancias da vida ou da morte. (…) Ainda é comum ouvir-se um juiz afirmar com orgulho vizinho da arrogância, que é “escravo da lei”. E com isso fica em paz com sua consciência, como se tivesse atingido o cume da perfeição, e não assume responsabilidade pelas injustiças e pelos conflitos humanos e sociais que muitas vezes decorrem de suas decisões. Com alguma consciência esse juiz perceberia a contradição de um juizescravo e saberia que um julgador só poderá ser justo se for independente. Um juiz não pode ser escravo se ninguém nem de nada, nem mesmo da lei. (DALLARI, 2010: 84)

Observe-se que, diante de conteúdo fático e de provas similares (pois todos as denúncias contem relatório de fiscalização dos auditores fiscais do trabalho), em alguns processos há posicionamentos diferentes de diversos magistrados. No relatório analisado, houve 9 condenações ao se considerar o artigo 149 do Código Penal, e um dos fundamentos do magistrado é justamente considerar que já houve a infração trabalhista independente da violação à dignidade dos trabalhadores. O fragmento abaixo revela posturas tão dispares dos magistrados em contextos semelhantes:

Em todas as situações acima listadas, percebe-se um grande desequilíbrio de forças, que vai além da mera subordinação que estigmatiza a relação de emprego. Houve exploração abusiva da força de trabalho e, mais do que privação de liberdade de locomoção, foi ferida a liberdade de autodeterminação dos trabalhadores de poder colocar fim à exploração a que estavam submetidos. (PARÁ, 2013C: 5) A culpabilidade do agente gerou significativo grau de reprovação social, uma vez que, em pleno século XXI, adotou práticas de tratamento desumano a trabalhadores rurais. O réu é primário. Não existem informações depreciativas acerca de sua conduta social, embora manifeste personalidade truculenta. Os motivos do crime baseiam-se no desejo de obter o maior lucro possível em detrimento de trabalhadores pouco escolarizados e pobres. O réu não apenas submeteu os trabalhadores a condições indignas de labor, como também contribuiu para frustrar inúmeros direitos trabalhistas. Os trabalhadores, se contribuíram para a ocorrência do delito, fizeram por necessidade de subsistência. (IDEM, 2013C:7)

O direito Penal é a ultima ratio, isto é, a última cartada do sistema legislativo, quando se entende que outra sanção não pode haver senão a criação da lei penal incriminadora, impondo sanção penal ao infrator (Nucci, 2014). Possui como uma das funções a indispensável proteção de bens jurídicos essenciais, protegendo de modo legítimo e eficaz os bens jurídicos fundamentais do indivíduo e da sociedade. Embora o problema social do crime de trabalho escravo na Amazônia, e, em especial, no sudeste paraense, tenha sido gerado por problemáticas sociais, políticas e econômicas, conforme já esmiuçado no capítulo 2, as consequências desse problema mal resolvido bate na porta do judiciário à procura de uma resposta à qual a jurisdição não pode se esquivar. Por outro lado, ainda que não haja inércia na prestação jurisdicional, o simples julgamento do crime sem levar em consideração todo o contexto ao qual os agentes estão inseridos, gera o efeito igual, senão pior, contribuindo ainda mais com a impunidade. Certo que a justiça federal, agindo solitariamente, não vai resolver o problema social instalado, porém, a sua indiferença ao problema irá contribuir ainda mais problema persiste.

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Sobre a autora
Heide Patricia Nunes de Castro

Graduação em Direito- Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará- UNIFESSPA. Gaduação em Letras- Universidade Federal do Pará- UFPA. Especialista em Gestão Publica- UFPA. Especialista em Direito do Trabalho - Instituto Pro-Minas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Heide Patricia Nunes. O trabalho escravo contemporâneo no sudeste paraense: uma análise das sentenças criminais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6569, 26 jun. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91510. Acesso em: 19 abr. 2024.

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