Capa da publicação Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181/2021) e o princípio do crédito responsável
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Comentários à Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021) e o princípio do crédito responsável.

Uma primeira análise

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10. Abusividade de cláusula que dificulta o acesso ao Judiciário pelo consumidor ou que imponha desistência de ação judicial como condição de oferta de crédito (art. 51, XVII, e art. 54-C, V, do CDC)

“Art. 51. .....................................

....................................................

XVII - condicionem ou limitem de qualquer forma o acesso aos órgãos do Poder Judiciário;

....................................................”

Art. 54-C. É vedado, expressa ou implicitamente, na oferta de crédito ao consumidor, publicitária ou não:

....................................................

V - condicionar o atendimento de pretensões do consumidor ou o início de tratativas à renúncia ou à desistência de demandas judiciais, ao pagamento de honorários advocatícios ou a depósitos judiciais.

....................................................”

Os preceitos acima visam a coibir todo e qualquer obstáculo que impeça ou limite o acesso ao Poder Judiciário, e, também, estipulações abusivas que condicionem o legítimo exercício de pretensão ou direito em face do fornecedor.

Essa vedação vale não apenas para casos de fornecimento de crédito. O art. 51, XVII, do CDC não faz essa restrição. Em qualquer relação de consumo, é abusiva cláusula que condicione ou limite o acesso ao Judiciário.

É preciso, porém, deixar claro que essas restrições não impedem transações. Os acordos judiciais ou extrajudiciais são bem-vindos dentro do ambiente atual de estímulo aos meios consensuais de solução de litígio.

O que os dispositivos acima censuram, em síntese, é a prática de certos fornecedores no sentido de negar novos produtos ou serviços ao consumidor (1) enquanto este não desistir de uma demanda judicial anterior, relativa a outros contratos, ou (2) se o consumidor não se curvar a cláusulas que dificultem a judicialização do contrato em pauta. Coerção negocial dessa natureza é abusiva.


11. Cláusulas abusivas no caso de inadimplemento pelo consumidor (art. 51, XVIII, do CDC)

“Art. 51. .....................................

....................................................

XVIII - estabeleçam prazos de carência em caso de impontualidade das prestações mensais ou impeçam o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento a partir da purgação da mora ou do acordo com os credores;

....................................................”

Cláusula de suspensão de fruição de direitos após a purgação da mora  

Os dispositivos supracitados censuram punições ao consumidor inadimplente após a purgação da mora. Coíbem uma espécie de “castigo” aplicado ao consumidor após este haver pago, com atraso, as parcelas vencidas. Trata-se de abuso de direito.

Indiretamente, o preceito acima deixa em aberto a discussão sobre a legalidade de cláusulas de suspensão de fruição de direitos na pendência da situação de inadimplência.


12. Aplicação do CDC diante de leis internacionais (art. 51, XIX, do CDC): Razões do Veto

“Art. 51. .....................................

....................................................

XIX - prevejam a aplicação de lei estrangeira que limite, total ou parcialmente, a proteção assegurada por este Código ao consumidor domiciliado no Brasil. VETADO

....................................................”

Razões do veto

O dispositivo supra fora vetado:

"A propositura legislativa estabelece que seriam nulas de pleno direito as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de serviços e produtos que previssem a aplicação de lei estrangeira que limitasse, total ou parcialmente, a proteção assegurada por este Código.

Entretanto, apesar da boa intenção do legislador, a propositura contrariaria interesse público tendo em vista que restringiria a competitividade, prejudicando o aumento de produtividade do País, ao restringir de forma direta o conjunto de opções dos consumidores brasileiros, especialmente quanto à prestação de serviços de empresas domiciliadas no exterior a consumidores domiciliados no Brasil, o que implicaria restrição de acesso a serviços e produtos internacionais. Em virtude de a oferta de serviços e de produtos ser realizada em escala global, principalmente, por meio da internet, é impraticável que empresas no exterior conheçam e se adequem às normas consumeristas nacionais." (razões do veto).

De fato, a previsão normativa poderia ser prejudicial, porquanto uma interpretação literal do preceito poderia soar perigosa.

A rigor, se um consumidor domiciliado no Brasil comprasse, pela internet, uma passagem aérea da companhia Iceland Air (sediada na belíssima cidade de Reykjavik, na Islândia), esse contrato teria de ser submetido ao CDC, salvo se a lei islandesa fosse mais favorável ao consumidor.

Não pode, porém, prosperar uma interpretação dessa por três motivos.

O primeiro é que empresas estrangeiras que não tenham filiais no Brasil poderiam simplesmente fechar as portas para consumidores domiciliados em território brasileiro, o que evidentemente não foi a intenção do legislador.

O segundo é que o consumidor que vai em busca de serviços e produtos de empresas estrangeiras sem filiais no Brasil está voluntariamente se submetendo à legislação estrangeira. Sua liberdade de consumidor fora do País acarreta-lhe também a responsabilidade de atentar para a legislação estrangeira.

O terceiro é que a Lei de Superendividamento só deve alcançar empresas estrangeiras que se voltem especificamente ao mercado de consumo brasileiro, o que se dá quando existem filiais no Brasil.

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13. Procedimento judicial de conciliação no superendividamento (arts. 104-A a 104-C do CDC)

CAPÍTULO V

DA CONCILIAÇÃO NO SUPERENDIVIDAMENTO

‘Art. 104-A. A requerimento do consumidor superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, com vistas à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores de dívidas previstas no art. 54-A deste Código, na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas.

§ 1o Excluem-se do processo de repactuação as dívidas, ainda que decorrentes de relações de consumo, oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento, bem como as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural.

§ 2o O não comparecimento injustificado de qualquer credor, ou de seu procurador com poderes especiais e plenos para transigir, à audiência de conciliação de que trata o caput deste artigo acarretará a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora, bem como a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor, devendo o pagamento a esse credor ser estipulado para ocorrer apenas após o pagamento aos credores presentes à audiência conciliatória.

§ 3o No caso de conciliação, com qualquer credor, a sentença judicial que homologar o acordo descreverá o plano de pagamento da dívida e terá eficácia de título executivo e força de coisa julgada.

§ 4o Constarão do plano de pagamento referido no § 3o deste artigo:

I - medidas de dilação dos prazos de pagamento e de redução dos encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor, entre outras destinadas a facilitar o pagamento da dívida;

II - referência à suspensão ou à extinção das ações judiciais em curso;

III - data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes;

IV - condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento.

§ 5o O pedido do consumidor a que se refere o caput deste artigo não importará em declaração de insolvência civil e poderá ser repetido somente após decorrido o prazo de 2 (dois) anos, contado da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado, sem prejuízo de eventual repactuação.

Art. 104-B. Se não houver êxito na conciliação em relação a quaisquer credores, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório e procederá à citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado.

§ 1o Serão considerados no processo por superendividamento, se for o caso, os documentos e as informações prestadas em audiência.

§ 2o No prazo de 15 (quinze) dias, os credores citados juntarão documentos e as razões da negativa de aceder ao plano voluntário ou de renegociar.

§ 3o O juiz poderá nomear administrador, desde que isso não onere as partes, o qual, no prazo de até 30 (trinta) dias, após cumpridas as diligências eventualmente necessárias, apresentará plano de pagamento que contemple medidas de temporização ou de atenuação dos encargos.

§ 4o O plano judicial compulsório assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual previsto no art. 104-A deste Código, em, no máximo, 5 (cinco) anos, sendo que a primeira parcela será devida no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado de sua homologação judicial, e o restante do saldo será devido em parcelas mensais iguais e sucessivas.

Art. 104-C. Compete concorrente e facultativamente aos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor a fase conciliatória e preventiva do processo de repactuação de dívidas, nos moldes do art. 104-A deste Código, no que couber, com possibilidade de o processo ser regulado por convênios específicos celebrados entre os referidos órgãos e as instituições credoras ou suas associações.

§ 1o Em caso de conciliação administrativa para prevenir o superendividamento do consumidor pessoa natural, os órgãos públicos poderão promover, nas reclamações individuais, audiência global de conciliação com todos os credores e, em todos os casos, facilitar a elaboração de plano de pagamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, sob a supervisão desses órgãos, sem prejuízo das demais atividades de reeducação financeira cabíveis.

§ 2o O acordo firmado perante os órgãos públicos de defesa do consumidor, em caso de superendividamento do consumidor pessoa natural, incluirá a data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes, bem como o condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento, especialmente a de contrair novas dívidas.”

Inspirado no modelo francês[12], que prestigia o direito do superendividado a obter um novo recomeço, os preceitos acima estabelecem um procedimento específico  destinado a assegurar ao consumidor superendividado o direito a renegociar as dívidas.

 O procedimento prestigia uma solução consensual das partes, mas, no caso de sua frustração, caberá ao juiz aprovar um plano judicial compulsório de parcelamento da dívida.

Posto não se identifique, equipara-se à Recuperação Judicial do empresário e de sociedade empresária prevista na Lei nº 11.101/05, embora, claro, guarde diversas especificidades, especialmente ao se levar em conta que o seu destinatário é o consumidor pessoa física.

Vale salientar: frustrado o “processo de repactuação de dívidas” (art. 104-A), instaura-se o “processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes” (art. 104-B), caso em que será apresentado um “plano judicial compulsório”.

Apesar de os referidos preceitos fazerem menção a “processos”, parece-nos mais adequado que há apenas um processo, com duas fases procedimentais: uma de “repactuação de dívidas” e outra “de revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes”, da qual resultará um plano judicial compulsório. Essa última iniciar-se-á com mera petição do consumidor no bojo do feito após a frustração,        total ou parcial, das tentativas de autocomposição. O próprio caput do art. 104-B do CDC dá suporte a essa interpretação, pois sua redação dá noção da existência de uma linha de continuidade processual.

O processo por superendividamento será instaurado a pedido do consumidor, ou seja, não há espaço legal para a atuação judicial de ofício.

As peculiaridades de todo esse procedimento, que envolve, inclusive, vetores metajurídicos (carga emocional derivada do strepitus fori, o abalo psicológico vivenciado pelo consumidor superendividado, os complexos aspectos econômicos em jogo) recomendam, em nosso sentir, que as respectivas Leis de Organização Judiciária Estaduais criem unidades especializadas na matéria atinente ao superendividamento. Sem dúvida, é a melhor solução.

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Sobre os autores
Pablo Stolze Gagliano

Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Co-autor do Manual de Direito Civil e do Novo Curso de Direito Civil (Ed. Saraiva).

Carlos Eduardo Elias de Oliveira

Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual, do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAGLIANO, Pablo Stolze ; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Comentários à Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021) e o princípio do crédito responsável.: Uma primeira análise. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6575, 2 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91675. Acesso em: 16 nov. 2024.

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