3 – O PROCEDIMENTO DUVIDOSO
O leitor deve ter percebido que a sequência deste trabalho não segue os padrões comuns aos debates jurídicos, inclusive em peças técnicas. Geralmente as questões formais são preliminarmente abordadas para só depois adentrar ao mérito ou ao direito material. Neste texto já se começou diretamente no tema do direito material, isso porque era ele inexistente, fato atípico e não cabia, ao sentir deste autor, fazer o leitor passar por linhas e linhas da temática procedimental também equivocada, mas sobre a qual ainda existe alguma celeuma em alguns pontos, para só depois chegar ao básico que na verdade inviabilizaria a prisão, ainda que com os procedimentos escorreitos.
A partir de agora serão discutidos os procedimentos adotados na prisão, os erros praticados e os pontos duvidosos que ensejam debate.
3.1 – O SIMULACRO DE “AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE”
Após a voz de prisão o Senador Omar Aziz lavrou e assinou um documento ao qual intitulou de “Auto de Prisão em Flagrante” (sic). [32] Em seguida encaminhou o preso à Polícia Legislativa do Senado para atos de Polícia Judiciária.
A peça elaborada por Aziz, não se sabe se por deliberação própria ou sob a orientação de alguém, nunca foi e nunca será verdadeiramente um “Auto de Prisão em Flagrante”. Trata-se apenas de um documento, na verdade inominado e sem previsão legal, que consiste em um resumo da captura do preso e sua apresentação à Polícia Legislativa. Em suma, trata-se do que se chamaria na doutrina de uma simples “notitia criminis”, no caso, uma “notitia criminis” de cognição coercitiva, já que se trata de uma prisão. [33] Também não se pretenda dizer que o citado documento poderia ser um “Mandado de Prisão em Flagrante”, pois que isso não existe, aliás a Prisão em Flagrante é exatamente a exceção dentre as prisões que não exige mandado ou ordem judicial prévia. Mandado de Prisão somente emite um juiz ou tribunal e mesmo assim não em caso de flagrante (inteligência do artigo 5º., LXI, CF). [34]
Assim sendo, tal peça é inútil e mais, a conduta correta seria que o Senador que deu voz de prisão apresentasse pessoalmente o preso, na qualidade de condutor, à Autoridade Policial para as formalidades. Não existe prisão “por bilhete” ou por “recado”. Um verdadeiro “Auto de Prisão em Flagrante” é lavrado pela Autoridade Policial de acordo com o procedimento delineado no artigo 304, CPP, com oitiva do condutor e testemunhas, bem como interrogatório do conduzido e, somente ao final, é elaborada a peça a que se denomina de “Auto de Prisão em Flagrante”.
Além disso, um Senador da República não tem atribuição legal para lavrar qualquer “Auto de Prisão em flagrante”. Ele pode prender, no sentido de capturar, como pode qualquer do povo (inteligência do artigo 301, CPP). Mas, a formalização da prisão somente pode ser feita pela Autoridade de Polícia Judiciária (Delegado de Polícia, no caso Federal). Como se verá, é extremamente discutível se mesmo a Polícia Legislativa tem atribuição para formalizar a prisão ou se apenas tem o poder comum de captura.
O fato de que a CPI tem poderes de investigação próprios das autoridades judiciais não estende a seu Presidente ou a qualquer Senador a atribuição de formalizar prisão em flagrante. Os Magistrados podem, nos termos do artigo 307, CPP, prender em flagrante (no sentido de formalizar a prisão e não somente de capturar), excepcionando a regra da exclusividade do Delegado de Polícia. Entretanto, mesmo esse dispositivo do CPP tem sido afastado em sua aplicação pela grande maioria dos juízes, que presam pelo sistema acusatório e são cônscios de seu dever de autocontenção.
Vale citar o ensinamento de Hoffmann e Moraes:
Ademais, a prisão em flagrante consiste em espécie de prisão cautelar cuja atribuição para decretação é da autoridade de Polícia Judiciária (artigo 304, § 1º., do CPP), tendo a legislação autorizado a qualquer do povo não a formalização do auto de prisão em flagrante, mas a mera captura do suspeito em estado flagrancial (artigo 301 do CPP).
Não se olvida que o artigo 307 do CPP admite excepcionalmente que o juiz formalize o auto de prisão em flagrante (APF) quando o fato for praticado em sua presença ou contra ele no exercício de suas funções. Todavia, trata-se de dispositivo ultrapassado (e por isso mesmo de rara utilização prática), que colide frontalmente com o sistema acusatório consagrado no nosso sistema processual penal, que veda a iniciativa do juiz na fase de investigação (artigo 3º. – A do CPP). Ora, se a Constituição concebeu um sistema de persecução criminal em que há uma instituição exclusivamente destinada à investigação criminal, em vez de concentrar tal atribuição em outro órgão (como se dá em modelos de outros países), também por esse motivo não faz sentido que o magistrado confeccione uma das peças que inaugura o inquérito policial.
Nesse sentido, o fato de a CPI possuir poderes de investigação próprios das autoridades judiciais (artigo 58, § 3º., da CF) não se qualifica como permissivo para autorizar que o relator da CPI (ou qualquer outro parlamentar) lavre um auto de prisão em flagrante, mesmo em relação a delito praticado nas dependências da casa legislativa. [35]
Na verdade já foi decidido pelo STF há tempos que nem o Senador Presidente de CPI nem o Chefe de Polícia Legislativa são “autoridades” nos termos referidos pelo artigo 307, CPP, de modo que não lhes cabe a formalização de prisão em flagrante. Senão vejamos:
É nulo o auto de prisão em flagrante lavrado por determinação de Presidente de CPI e presidido pelo Diretor – Substituto da Coordenação de Segurança Legislativa da Câmara dos Deputados, por não revestir este a qualidade de “autoridade de que fala o artigo 307 do CPP” (STF, HC 73.035-3, Pleno, j. 13.11.96, in RBCCr 18/222-3). [36]
Em suma, ainda que se abstraísse o fato de que a prisão de Dias foi completamente ilegal por motivos materiais já expostos, o documento elaborado pelo Senador Omar Aziz nunca passou de uma folha de papel também sob o prisma formal. Isso sem falar do fato de que no suposto “Auto de Prisão em Flagrante” não são cumpridas as formalidades mínimas que consistem na cientificação do preso acerca de seus direitos constitucionais, tais como assistência da família, advogado, direito de permanecer calado, direito à integridade física etc. Acaso o “auto” elaborado por Aziz pudesse ser assim realmente chamado e não fosse, na verdade, uma peça inquinada pela “inexistência jurídica”, seria então absolutamente nulo por ausência de formalidades fundamentais. Entretanto, não chega sequer à qualidade da nulidade, já que, como já dito, se alberga anteriormente na “inexistência”, tendo em vista tratar-se de ato de tal forma desnaturado “extrínseca e intrinsecamente” que não chega sequer a ser reconhecido no mundo jurídico para ser declarado como nulo. Ocorre, neste caso, uma “intensa desconformidade entre o ato e seu modelo legal”. Na realidade, “a atipicidade do ato processual é tão contundente e abrangente que ele é considerado um não – ato”. [37]
3.2 – A FORMALIZAÇÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE PELA POLÍCIA LEGISLATIVA
É fato que a Constituição em seus artigos 51, IV e 52, XIII assegura a existência de Polícias Legislativas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Entretanto, não arrola suas funções, muito menos lhes atribui atividades de Polícia Judiciária ou de Investigação Criminal. Desse vácuo é de se concluir que se tratam simplesmente de corpos de segurança administrativos e preventivo – ostensivos. Também não há lei ordinária que regule a atuação das Polícias Legislativas na seara de investigação ou de Polícia Judiciária e se houvesse seria inconstitucional, já que não há qualquer abertura da Constituição para essa regulamentação por lei ordinária. Dessa forma, não parece haver dúvida de que é absolutamente ilegal a elaboração de inquéritos policiais, aí inclusos autos de prisão em flagrante, por Polícias Legislativas. Novamente não é o caso sequer de falar em “nulidade” desses eventuais atos praticados por Polícias Legislativas, mas, mais do que isso, em verdadeira “inexistência”. Na lição de Grinover, Fernandes e Gomes Filho, a “desconformidade com o modelo legal” é por demais intensa, de modo que em tal situação os atos processuais são “inexistentes”, pois lhes falta,
“de forma absoluta, algum dos elementos exigidos pela lei; neles, o vício é de tal gravidade que sequer seria possível considerá-los como atos processuais; são, na verdade, não – atos, em relação aos quais não se cogita de invalidação, pois a inexistência constitui um problema que antecede a qualquer consideração sobre a validade”. [38]
Inobstante não nos pareça poder haver argumentação plausível em contrário à conclusão acima exposta, é preciso notar que o Senador Omar Aziz, fundamenta a remessa do caso à Polícia Legislativa no artigo 226 do Regimento Administrativo do Senado Federal em combinação com o artigo 52, XIII, CF.
Nesse passo é preciso reconhecer e enfrentar, com honestidade intelectual, o fato de que existe entendimento de que a autorização constitucional da criação de Polícias Legislativas e sua regulação pelas respectivas Casas, poderia legitimar a atribuição de atividades investigativas e de Polícia Judiciária a tais órgãos.
É exatamente com fulcro nessa posição que Aziz fundamenta seu ato administrativo. E nesse ponto não se pode dizer, como em outros casos já examinados, que tenha agido de maneira tresloucada. Fato é que a questão comporta discussão.
Com base nessa ideia de que havendo a previsão constitucional de Polícias Legislativas e que poderiam ser regulamentadas pelas Casas respectivas, realmente, por meio de Resoluções, tanto a Câmara dos Deputados, como o Senado atribuem funções de investigação e Polícia Judiciária a seus corpos policiais. No caso do Senado, que é o que nos interessa no momento, essas funções são expressas no artigo 226 “caput”, § 1º., IX (que trata da “Coordenação de Polícia de Investigação”) e § 3º., IX, “a” e no artigo 263 (este especificamente sobre a Prisão em Flagrante) do Regimento Administrativo do Senado Federal (Resolução do Senado n. 13/2018).
Ainda antes da Resolução 13/18, já estabelecia esses poderes de investigação e de Polícia Judiciária à Polícia Legislativa do Senado, a Resolução do Senado n. 59/02. Desde então se discute sobre a validade dessas normativas administrativas e é encontrável trabalho aprofundado da lavra de Éder Maurício Pezzi López, procurando justificar as ditas atribuições na questão da separação dos poderes e num conceito amplo de “polícia”. [39]
Ocorre que essa regulamentação do Senado foi questionada no STF pela Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ANDPF), que pleiteou a declaração de sua inconstitucionalidade. [40]
Esse pleito deveria ser acatado, pois conforme ensina Brandão:
De mais a mais, defendemos que tanto as funções típicas e atípicas de Polícia Judiciária demandam lei processual (Artigo 22 inciso I da CF) e finalidade estabelecida constitucionalmente, uma vez que o exercício de tais atribuições, em última análise, decorre de uma faceta do exercício da soberania estatal, com potencial para limitar o status libertatis do cidadão.
Neste ponto merece críticas a regulamentação para o exercício da função de Polícia Judiciária com esteio apenas em resolução ou regulamentação extralegal; defendemos que o exercício atípico da função de Polícia Judiciária, levado a cabo, em certas ocasiões, por outros órgãos, devem encontrar limites e amparo em normatização legal, fazendo-se necessário, também, que tal órgão tenha implicitamente dentro de suas atribuições constitucionais, finalidade fiscalizatória e investigativa; de tal forma que lhe sendo imputado poder/dever de investigação, o seu exercício deve ser limitado em sua finalidade institucional, evitando que sejam criados verdadeiros órgãos ad hoc de persecução ou de exceção. [41]
O STF não se manifestou de forma definitiva sobre o tema, mas há algumas decisões que afastam o poder de investigação e função de Polícia Judiciária das Polícias Legislativas. Exemplo disso é o que consta da manifestação do Ministro Edson Fachin no bojo do Inquérito 4112 STF, 2ª. Turma, julgamento de 22.08.2017, publicação em 10.11.2017:
“Ordens emanadas do Poder Judiciário são de cumprimento exclusivo da polícia judiciária, em cujo rol não se inserem as polícias legislativas” (grifo nosso). [42]
No mesmo diapasão se manifesta o Ministro Celso de Mello (STF,Pet. 8261/ DF, Rel. Ministro Celso de Mello, j. 11.10.2019, pub. 25.10.2019), afastando em prol da Polícia Federal supostas funções de Polícia Judiciária das Polícias Legislativas. E mais, se refere o Ministro Celso de Mello a precedente do saudoso Ministro Teori Zavascki (STF, AC 4.005 – AgR/DF, Plenário, Decisão Unânime) que sobre o tema enfocado se manifestou nos seguintes termos:
“Desse contexto, verifica-se que a função da polícia legislativa é preventiva ou repressiva (...). Não se estendem a ela, então, as atribuições de polícia judiciária, que é típica da atividade jurisdicional” (grifo nosso).
O STJ também já enfrentou o tema em decisão de relatoria do Ministro Ribeiro Dantas (RMS 53.796 – RR (2017/0077923-7), pub. 24.03.2020), na qual afastou a necessidade de que diligência de busca e apreensão fosse realizada pela Polícia Legislativa, aduzindo que esta não tem atribuição investigatória ou de Polícia Judiciária. Em suas palavras:
“Da mesma forma, revela-se insubsistente a alegação de que o cumprimento da medida de busca e apreensão deveria ter sido efetivado pela política legislativa. Isso porque, como se sabe, a investigação criminal é tarefa atribuída à polícia judiciária (federal e civil), nos termos do artigo 144, §§ 1º. e 4º. da Constituição Federal” (grifo nosso).
Por outro lado há menções também em decisões do STF, dando guarida ao poder investigatório das Polícias Legislativas. Exemplo disso encontra-se na Manifestação do Ministro Relator Ricardo Lewandowski, na Reclamação 43007/DF, julgamento em 04.03.2021, publicação em 05.03.2021. O Ministro Lewandowski deixa claro seu entendimento sobre a possibilidade de “diversos órgãos realizarem investigações criminais”. E mais adiante, após expor vários exemplos desses órgãos (v.g. Receita Federal, CPIs, Banco Central etc.), nomeia explicitamente “as investigações feitas pela Polícia Legislativa da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, no caso de crimes cometidos em suas dependências”.
Uma grande oportunidade de dar uma solução definitiva a essa questão foi esvaziada por aquilo que pareceu uma manobra jurídico - administrativa insidiosa. A própria Mesa do Senado Federal ingressou com uma “Ação Declaratória de Constitucionalidade” da então Resolução do Senado n. 59/02 que conferia poderes investigatórios e de Polícia Judiciária à Polícia Legislativa do Senado Federal (ADC 24/DF, Rel. Ministra Cármen Lúcia, j. em 04.10.2016, pub. 05.10.2016), isso tendo em vista decisões dos TRFs contrárias à constitucionalidade do ato administrativo e, principalmente, da legitimidade das Polícias Legislativas na atuação de investigação de Polícia Judiciária. Porém, enquanto ainda tramitava a ação, o Senado, no bojo de uma Resolução que tratava de matéria completamente apartada do tema (Criação do Grupo Parlamentar Brasil – Marrocos – Resolução do Senado 14/2015), em seu penúltimo artigo (artigo 7º., da Resolução do Senado 14/2015), simplesmente revogou expressa e totalmente a Resolução do Senado 59/02. Com isso requereu a extinção da ação por perda superveniente de seu objeto, o que foi acatado pela Ministra Cármen Lúcia com base em precedentes da corte. Ou seja, quando a questão poderia ser discutida, por meio de uma manobra jurídico – administrativa, o Senado contornou o debate para depois ressuscitar os poderes investigatórios e de Polícia Judiciária das Polícias Legislativas, tal como se vê atualmente na Resolução do Senado n. 13/2018 e ainda nas nunca discutidas judicialmente Resolução 17/1989 e Resolução 18/2003, ambas da Câmara dos Deputados. Isso nos faz lembrar Lampedusa ao referir-se em seu romance a “uma daquelas batalhas que se travam para que tudo fique na mesma”. [43]
Certamente para quem pretende ter uma polícia investigativa própria e diante dos questionamentos acerca da constitucionalidade dessa pretensão, é muito mais cômodo contornar a discussão e deixar que a polêmica se eternize, contando ainda com uma vetusta Súmula 397 do STF, redigida nos idos de 1964, nos seguintes termos:
“O poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende, consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito”.
Ocorre que é visível o fato de que tal Súmula foi elaborada num contexto histórico de exceção, em que as Casas Legislativas pretendiam assegurar-se contra investidas do Executivo por sua força policial, sendo dada guarida a essa compreensível pretensão naquela época e circunstâncias pelo STF. Hoje e desde a redemocratização, não subsistem motivos reais para a manutenção desse entendimento, o que vale dizer que essa Súmula 397 STF se encontra superada historicamente. Também se acha superada juridicamente com o advento da Constituição Federal de 1988 que regula as atividades de investigação e Polícia Judiciária, não atribuindo essas funções às Polícias Legislativas. Nesse passo, o mais correto seria o cancelamento expresso da Súmula em estudo, mas enquanto isso não ocorre, é forçoso reconhecer sua invalidade. E mais, ainda que fosse possível a tais polícias o exercício de investigações e atividades de Polícia Judiciária, isso teria de decorrer de lei ordinária e não de meras resoluções das Casas Legislativas. Mas, nem mesmo isso seria viável, tendo em vista a atual ordem constitucional, já que a simples “autorização do Legislativo para dispor sobre sua polícia não autoriza afastar ou suprimir a atribuição investigativa da polícia federal expressa na Carta Magna”. [44] Por isso, inobstante a polêmica em torno do tema, a qual não poderia ser ocultada por questão de honestidade intelectual, é inviável reconhecer que a Polícia Legislativa do Senado poderia ter formalizado a prisão em flagrante de Dias no caso em estudo. No máximo tal entidade policial poderia capturar o suspeito e conduzi-lo perante a Polícia Federal para eventual lavratura de Auto de Prisão em Flagrante. Isso sempre deixando de lado a absoluta atipicidade da conduta e apenas “ad argumentandum tantum”.
Neste sentido merece transcrição o escólio de Hoffmann e Moraes:
Tampouco deve o APF ser lavrado pela Polícia Legislativa, seja a Policia do Senado ou a Polícia da Câmara dos Deputados. Tais polícias possuem previsão constitucional (artigo 52, XIII, e artigo 51, IV, da CF, respectivamente) peculiar. Isso porque, além de não terem sido inseridas nos órgãos de segurança pública (artigo 144 da CF), não tiveram suas atribuições expressamente indicadas pelo texto constitucional, que se limitou a dizer que compete ao Senado e Câmara dispor sobre suas polícias. Por força do princípio da legalidade, o agente público só está autorizado a desempenhar a atribuição expressamente autorizada pela legislação. Por isso, a interpretação sistemática da Constituição leva à conclusão que, tendo a apuração de infrações penais sido destinada às polícias judiciárias (artigo 144, §§ 1º. e 4º., da CF), as Polícias Legislativas não podem realizar investigação criminal, sendo polícias administrativas com dever apenas de evitar infrações.
Não se desconhece que a Súmula 397 do STF afirma que o poder de polícia da Câmara e do Senado, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito. Contudo, cuida-se de enunciado editado em 1964 sob outra ordem constitucional, incompatível com a atual Constituição de 1988, que expressamente reservou a investigação criminal para as polícias judiciárias. Sendo, no âmbito federal, conforme expressa dicção do texto constitucional, a Polícia Federal aquela que deve “exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União” (artigo 144, § 1º., da CF). [45]
Pesquisando diretamente no texto original da Constituição de 1967 se verifica que a ordem constitucional era totalmente diversa. A menção à Polícia Federal somente se dá no artigo 8º., estabelecendo ser competência da União sua organização e manutenção com estabelecimento, em vários incisos, de suas funções. Não há qualquer referência à sua atuação com exclusividade como Polícia Judiciária da União, e nem mesmo se mencionam as Polícia Civis, conforme hoje ocorre. As Polícias Legislativas também eram previstas da mesma forma precária no artigo 32, mas considerando precariedade por precariedade, até seria possível a manutenção da hipótese da Súmula 397 STF naqueles tempos, o que hoje é impensável e absolutamente incoerente.
Mas, é preciso ter em mente que a Súmula 397 STF não surge nem mesmo sob a égide da Constituição de 1967. Sendo datada do ano de 1964, vigorava a Constituição de 1946. Em consulta ao texto original dessa Constituição, a situação é ainda mais gritante. Em seu artigo 5º., inciso VII, estabelece a Constituição de 1946 ser competência da União a organização e manutenção da “polícia marítima, aérea e de fronteiras”. Não há sequer menção à Polícia Federal e muito menos às Polícias Civis. Por outro lado já estavam previstas as Polícias Legislativas de forma semelhante à atual no artigo 40. Ora, nesse quadro é óbvio que poderia se construir a Súmula 397 STF, mormente devido ao momento histórico por que se passava. Mas pretender comparar o sistema constitucional de 1946 ou de 1967 com a atual conjuntura jurídico – constitucional é um rematado absurdo.
Importante destacar os ensinamentos de Lessa e Moraes em obra especializada, quando comentam acerca das atribuições da Polícia Federal (Lei 10.446/02) e dos limites das Polícias Legislativas:
No que tange às chamadas polícias legislativas, é certo que a Constituição não as previu expressamente com tal nomenclatura, mas apenas as citou, de maneira genérica, no contexto de competências das duas Casas Legislativas, nos termos dos art. 51, IV e 52, XIII da Carta Magna. Não são propriamente órgãos de segurança pública (isto é, “polícias”), pois estão fora do rol especificado no art. 144 e do Capítulo III do Título V da Lei Maior (“Da Segurança Pública”), tendo as suas atribuições apenas descritas em resoluções administrativas internas, cuja constitucionalidade, ao menos quanto à titularidade de funções de polícia judiciária (diante da reserva legal legalmente emprestada à Polícia Federal), é bastante questionável. Desse modo, em razão das Casas Legislativas encontrarem-se vinculadas à União, pela exegese constitucional, reputa-se que as “polícias legislativas’ funcionam apenas como um órgão de segurança orgânica (e dos seus membros), não possuindo quaisquer atribuições de polícia judiciária, cujas providências, privativamente, devem ser levadas a efeito pela polícia judiciária da União (Polícia Federal), para onde devem ser encaminhadas pessoas capturadas em flagrante ou as notícias de infração penal perpetrada nas dependências do Congresso Nacional. [46]
No cenário da doutrina do Direito Constitucional, valiosa é a lição de Bernardes e Ferreira, apontando para o fato de que “as polícias legislativas não contam com nenhuma autorização constitucional para realizar funções de polícia judiciária”. [47] Ademais, os autores em questão apresentam uma fundamentação impecável para sustentar sua tese, rechaçando o conteúdo da problemática Súmula 397 STF. Não poderia deixar de transcrever esse conteúdo no corpo deste trabalho:
Em razão da Súmula 397 do STF, editada ao tempo da Constituição de 1946, ainda hoje se discute a possibilidade do exercício das funções de polícia judiciária por parte dos órgãos de polícia legislativa presentes em ambas as Casas do Congresso Nacional (artigos 51, IV, e 52, XIII). Não se desconhece que o Legislativo possui poder próprio de polícia administrativa e que tampouco, no âmbito de suas dependências físicas, deve ficar à mercê do Executivo, em matéria de policiamento ostensivo. Contudo, ao contrário das Constituições passadas, o constituinte foi peremptório ao atribuir à Polícia Federal, com “exclusividade”, o papel de polícia judiciária da União (inciso IV do § 1º. do art. 144 da Constituição).
De modo que as polícias legislativas no Congresso Nacional podem exercer atividades policiais tanto administrativas quanto ostensivas, mas não estão constitucionalmente autorizadas a cumprir funções de polícia judiciária. Daí a aparente inconstitucionalidade da Resolução 14/2015 que substituiu a Resolução 59/2002, ambas do Presidente do Senado Federal, bem como da Resolução 18/2003, do Presidente da Câmara dos Deputados, na parte em que reconhecem aos órgãos da polícia legislativa funções de polícia judiciária, com competência para apuração de infrações penais cometidas nas dependências de cada Casa Legislativa.
Bem por isso, a 2ª. Turma do STF já decidiu que ordens “emanadas do Poder Judiciário são de cumprimento exclusivo da polícia judiciária, em cujo rol não se inserem as polícias legislativas” (Inq. 4.112/DF).
Contudo, no âmbito do TRF/1ª. Região, a questão segue controversa. No MS2008.01.00.040753-0/DF, a 2ª. Seção reconheceu às polícias legislativas “a faculdade para apuração das infrações penais” (j. em 18.03.2009). Já no MS 0066814-38.2014.4.01.0000/DF (j. em 24.04.2015, a mesma 2ª. Seção da Corte negou poder investigatório às polícias legislativas, por entender que “a investigação criminal só pode ocorrer pelos seguintes órgãos: Polícia Judiciária, Ministério Público, Comissão Parlamentar de Inquérito, Judiciário e Polícia Militar (esta, nos crimes militares)”. Posteriormente, no MS 005585-43.2015.4.01.0000/DF (j. em 3.9.2015), a Corte Especial do TRF 1 reputou que os “atos de investigação para apuração de supostos delitos cometidos no âmbito do Senado Federal não constituem exclusividade da Polícia daquela casa legislativa”. Ou seja, embora reconhecida a atribuição da Polícia Federal para conduzir as investigações penais, o acórdão não excluiu o poder investigatório atribuído às polícias legislativas. Pelo contrário, o TRF 1 deu interpretação conforme a (hoje revogada) Resolução 59/2002, do Senado Federal, “no sentido de que a pretensa exclusividade da atuação da Polícia Legislativa daquela Casa para a apuração de supostas infrações penais nas suas dependências se restrinja às infrações que tenham relação direta com a atividade típica do Senado, como, a título exemplificativo, na hipótese de cometimento de algum delito que obstaculize o desenvolvimento de alguma das suas sessões, em detrimento da função legislativa”. [48]
Malgrado a demonstração de certa hesitação do TRF 1 quanto à atribuição possível de atividades investigatórias e de Polícia Judiciária às Polícias Legislativas de forma excepcional no último julgado citado por Bernardes e Ferreira, é bom destacar, conforme faz Leal, que no mesmo “decisum” consta item da ementa em que é feita a afirmação de que a atribuição de Polícia Judiciária Federal é exclusiva da Polícia Federal, de modo que eventual exceção somente seria válida se proviesse da própria Constituição, o que obviamente não ocorre quando se trata de mera Resolução do Senado ou da Câmara dos Deputados. [49] Para que não reste dúvida, segue a transcrição do trecho citado do julgado em destaque:
O inc. IV do § 1º do mencionado artigo dispõe expressamente que compete à Polícia Federal, com exclusividade, o exercício das funções de polícia judiciária da União, pelo que inafastável a conclusão no sentido de que eventual exceção a essa norma apenas pode ser admitida se prevista também na própria Constituição, situação inocorrente na hipótese em tela.
Portanto, pode-se afirmar, com boa segurança, que a pretensa “interpretação conforme a Constituição” da Resolução do Senado que atribui poderes investigatórios e de Polícia Judiciária à Polícia Legislativa de forma excepcional, constante do voto do Desembargador Federal Relator, Marcos Augusto de Sousa, acaba em contradição com a elaboração final da própria ementa de sua lavra, pois que, de acordo com ela, a única interpretação conforme a Constituição seria a de que não havendo previsão constitucional, não seria possível a nenhuma outra Polícia o exercício de funções de Polícia Judiciária da União. Efetivamente, não há previsão constitucional alguma, nem mesmo sequer previsão em lei ordinária, mas apenas o dispositivo de uma mera Resolução.
Embora seja em um trecho por demais tímido e curto, o constitucionalista José Afonso da Silva atribui expressamente às Polícias Legislativas a condição de um “corpo de guarda” com destinação limitada ao “policiamento interno”. [50]
Percebe-se que inobstante sejam robustos os argumentos para o afastamento das funções investigativas e de Polícia Judiciária das Polícias Legislativas, bem como para a invalidade atual da vetusta Súmula 397, STF, o tema comporta ainda muita polêmica e já merecia um olhar definitivo por parte do Supremo Tribunal Federal, inclusive com a revogação expressa da Súmula 397 e expedição de uma nova Súmula deixando clara a limitação constitucional das Polícias Legislativas.
Como bem demonstra Leal a subsistência dessa Súmula claramente superada gera intenso debate sobre o tema, de forma que na doutrina chega a predominar a tese dos poderes investigatórios e de Polícia Judiciária das Polícias Legislativas. [51]
Não obstante, em pesquisa realizada em várias obras que versam sobre Processo Penal e Direito Constitucional, percebe-se que há algumas manifestações muito superficiais e acríticas, apontando a Súmula 397 STF como um exemplo de caso em que a investigação criminal pode ser feita por autoridades diversas das previstas no artigo 4º., “caput”, CPP, conforme o disposto no Parágrafo Único desse mesmo dispositivo. Até mesmo nas anotações de Códigos de Processo Penal há a indicação, logo após o artigo 4º., Parágrafo Único, CPP, da Súmula 397 STF. Doutra banda, há um sem número de obras que simplesmente omitem totalmente esse tema. Aliás, na verdade a omissão é que é prevalente. Tudo isso indica que falta na doutrina uma maior dedicação ao estudo da questão, a qual é apresentada de forma simplista ou até mesmo desprezada, quando, claramente, não se trata de tema desimportante e sim de algo que comporta análise aprofundada constitucional, ordinária e até mesmo histórica. É preciso que o tema seja realmente estudado com afinco e que se indique um norte seguro, sendo incompreensível especialmente a ausência de comentários acerca dele em várias obras, bem como a inação do Supremo Tribunal Federal no que tange a colocar um ponto final nessa discussão. Afinal ninguém pode desejar a desdita reservada aos omissos ou indiferentes, conforme poeticamente nos descreve o Inferno de Dante:
Essa sorte miseranda têm as almas tristíssimas daqueles que vivem sem infâmia, mas sem méritos. Estão misturados àquela hoste vil dos anjos que não se rebelaram e nem foram fiéis a Deus, mas que pensaram apenas em si mesmos. Foram expulsos do céu onde não cabem, e as profundezas do inferno os não recebem, já que alguma glória lhes trariam. [52]
Não há como deixar de concluir com Leal nos seguintes termos:
Percebida a celeuma jurídica em relação à superação ou não da súmula 397 do Supremo Tribunal Federal, e isto ocorre, sobretudo, em face do momento histórico em que ela foi elaborada e do tempo que já transcorreu de sua elaboração, faz-se oportuno que a Corte Suprema se manifeste sobre o tema.
Nesta linha, é importante que o STF, no intuito de por fim ao tratado debate jurídico, manifeste-se, de forma vinculada, acerca da validade ou não do apontado enunciado sumular, através, por exemplo, de enunciado de súmula vinculante (art. 103-A da CFRB/88). [53]
Releva mencionar o entendimento de Moreira, trazendo à baila o escólio de “alentado estudo” de Paulo Queiroz, segundo o qual nos casos de flagrante em área legislativa, caberia, no máximo, à Polícia Legislativa efetuar a captura, como pode fazer qualquer do povo e apresentar o detido à Polícia Federal para que esta e somente esta lavre o Auto de Prisão em Flagrante. Para o autor a Súmula 397 STF sofre de obsolescência histórico – temporal. Afirma Moreira com todas as letras que “não cabe à Polícia Legislativa, (...), a realização de investigação de natureza criminal”. [54]
Não é preciso, porém, diante dos argumentos expostos e de várias decisões já proferidas pelos Tribunais, inclusive o STF, aguardar essa medida a ser tomada pelo Supremo Tribunal Federal para perceber que a razão assiste àqueles que entendem que as Polícias Legislativas não têm poderes de Polícia Judiciária ou de Investigação, tratando-se de mero corpo de segurança ostensivo – preventivo. Dessa forma, forçoso reconhecer que não cabia a lavratura de Auto de Prisão em Flagrante contra Roberto Ferreira Dias por integrantes de tal órgão de polícia, sendo o ato jurídico inexistente, conforme já demonstrado.
3.3 – A FRAGILIDADE DA PRISÃO POR FALSO TESTEMUNHO
Assinale-se introdutoriamente que neste tópico, mais uma vez os comentários são feitos com a abstração do fato de que Roberto Ferreira Dias era, na verdade, investigado e não testemunha. Novamente a questão é explorada em seus aspectos formais, já que materialmente a conduta do implicado sempre foi atípica.
Embora seja fato conhecido que a CPI onde se deu a prisão em estudo seja marcada por nítido viés político de prejulgamento descarado ao ponto de se ver e ouvir Senadores da República se retirando do recinto sob a alegação de que não lhes interessa ouvir versões de certas testemunhas e convidados; manifestarem expressamente que não lhes interessa esclarecimentos acerca de muitos pontos levados à baila por depoentes, dentre outras demonstrações de parcialidade visível; há que abordar o tema da prisão em flagrante por falso testemunho, a qual é por muitos indicada como inoportuna, tendo exatamente em vista que pode transparecer como uma espécie de prejulgamento, considerando que a apuração ou processo ainda não terminou. Ou seja, desqualificar uma versão qualquer ao ponto de prender alguém por falso testemunho em meio ao andamento de um feito, significa, subliminarmente, assumir que a versão contrária seria válida, isso num momento ainda apuratório ou instrutório e não decisório. Significa, em todo caso, ao fim e ao cabo, empregar atitude exauriente de certo tema em uma fase que ainda é provisória ou precária. Nessas circunstâncias seria ao que parece virtualmente impossível obter aquilo com que o Desembargador Rafael Magalhães definiu o flagrante, ou seja, “a certeza visual do crime”. [55]
No caso da CPI do Covid – 19 a prisão em flagrante por suposto falso testemunho foi apenas mais uma mancha em quem já chafurdava na lama da parcialidade, mas nem por isso, sob o prisma jurídico em que se move este trabalho, se poderia deixar de abordar o tema.
Na realidade, consumando-se o falso no momento em que se encerra o depoimento, tecnicamente falando, nada obsta a Prisão em Flagrante. Entretanto, como leciona Greco:
Quando a testemunha, por algum motivo, na presença do juiz, se recusa a prestar suas declarações, não vemos óbice à prisão em flagrante, pois ela tem a obrigação de responder sobre aquilo que lhe perguntarem.
No entanto, se o julgador, durante a inquirição de uma testemunha, vier a se convencer de que suas declarações são falsas ou de que nega a verdade, é sinal de que, antecipando o seu julgamento, entendeu que as demais provas, que até aquele momento foram trazidas para os autos eram verdadeiras.
Trata-se, portanto, de uma valoração perigosa, principalmente se ainda existirem outras provas a produzir.
Por isso entendemos que a prisão em flagrante de alguém pela prática do delito de falso testemunho poderá, em algumas situações, conduzir até mesmo à suspeição do julgador, pelo fato de que, com ela, já terá manifestado a sua valoração, entendendo como verdadeira a prova que serviu de parâmetro a fim de concluir pela falsidade testemunhal. [56]
Acaso Roberto Ferreira Dias não fosse investigado (que tem direito ao silêncio), mas realmente uma testemunha, ao pretender silenciar certamente cometeria o falso testemunho omissivo e a prisão nesse caso não é tão problemática, isso porque não há alegação alguma a qual se acoime de mentirosa, dando prevalência a outras possíveis versões, de modo a inquinar de parcialidade a atuação do inquiridor. Mas, no caso concreto, ainda que sendo testemunha (o que materialmente não era), o que se processou foi a pecha de mentirosas para as declarações que prestou, em contraste com a validade absoluta conferida a outras informações, inclusive áudios que acabavam de chegar à sessão, não sendo sequer periciados quanto à sua integridade e autenticidade, afora o fato de que não se tratava de gravação em que o próprio imputado falasse, mas afirmações de terceiros. Dessa maneira, a situação bem delineada por Greco linhas acima fica plenamente caracterizada, de tal forma que a prisão em flagrante se torna absolutamente desaconselhável. É claro que a CPI não equivale a um Juízo, mas há que lembrar que seus poderes investigatórios são os mesmos dos juízes (artigo 58, § 3º., CF). Além disso, qualquer atividade de investigação deve contar com a necessária imparcialidade e abertura, sendo altamente prejudicial o que Cordero chamou de “primado das hipóteses sobre os fatos”, ou seja, a eleição de uma hipótese prévia e a saída obsessiva à cata de argumentos ou “provas” que a sustentem, com o desprezo de tudo o mais que se apresente. [57] Esse tipo de postura não somente é parcial, prejulgadora, mas também não é nada inteligente, ao menos se a finalidade é a de buscar a verdade. Essa espécie de investigador, se não for corrompido, é extremamente incompetente (no sentido lato).
Outro aspecto que desaconselha a Prisão em Flagrante por falso testemunho é o fato de que existe a admissão de retratação com a consequência jurídica da extinção de punibilidade do agente. Como ensina Andreucci:
“Prisão em flagrante pode ocorrer tão logo se consume o delito. Entretanto, considerando a possibilidade de retratação prevista no § 2º., é prudente que se aguarde a sentença no processo em que ocorreu o ilícito”. [58]
Seria no mínimo incoerente privar a liberdade de alguém, ainda que momentaneamente, quando se sabe que paira legalmente a possibilidade de que o suposto ilícito pelo qual se prende venha a se desvanecer por força de disposição legal.
É sabido que essa possibilidade de retratação até antes da sentença que julgue o caso enfocado é prevista no artigo 342, § 2º., CP e não no dispositivo especial aplicável aos casos de falso testemunho em CPIs (artigo 4º., inciso II, da Lei 1.579/52). Contudo, já foi exposto neste trabalho que o crime especial por último mencionado é um caso de “crime remetido”. Não prevê o preceito secundário da norma, mas remete o intérprete e aplicador ao artigo 342, CP. Dessa forma, há que concluir que toda a normatização referente à pena aplicável é aquela constante do dispositivo comum do Código Penal, inclusive a causa extintiva prevista no § 2º., do artigo 342, CP. Por essa razão, em nada se altera o raciocínio que sustenta o presente argumento sobre a inconveniência, em geral, de uma Prisão em Flagrante por Falso Testemunho, ainda que seja durante uma CPI.
Neste sentido também se manifesta Silva, com relação ao tratamento a ser dado ao artigo 4º., II, da Lei 1.579/52:
Ao fazer referência ao Código Penal no que tange à pena e por ser benéfico ao réu, aplicam-se ao dispositivo normas que de algum modo o favoreçam, como a possibilidade de retratação até a prolação da sentença, conforme disposto no § 2º. do artigo 342 do estatuto repressivo. Reza o dispositivo: “O fato deixa de ser punível se, antes da sentença no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade”.
E conclui com acerto o autor:
Com efeito, por tudo que foi exposto, sendo possível a retratação até a prolação da sentença, não se faz possível a prisão em flagrante delito. Muito embora o crime se configure e consume quando do fim do depoimento, havendo a possibilidade de retratação a qualquer hora antes da sentença, não é razoável que a pessoa seja presa em flagrante, muito embora a ação penal possa ser promovida, mas o julgamento ficará na dependência da prolação da sentença no processo em que o falso testemunho foi cometido, posto que, até lá, pode haver retratação, que importará na extinção da punibilidade da testemunha. [59]
Observe-se que nem mesmo o futuro eventual processo criminal por falso testemunho pode ter seu deslinde antes que seja prolatada a sentença no processo respectivo onde supostamente o falso se operou. Isso porque, a uma, a maior segurança quanto à falsidade somente estará presente quando do término daquele primeiro processo; a duas, porque existe a possibilidade de retratação até antes da sentença, o que geraria a extinção da punibilidade e prejudicaria a justa causa para o processo que versa sobre o suposto falso testemunho. Como demonstra Greco, essa é a posição firmada, inclusive nos Tribunais Superiores:
Pode ocorrer a hipótese de alguém ser denunciado pelo delito de falso testemunho, enquanto tramita a ação penal na qual o delito foi, em tese, praticado. Nesse caso, os Tribunais Superiores já firmaram entendimento no seguinte sentido: É possível a propositura da ação penal para se apurar o crime de falso testemunho antes de ocorrer a sentença no processo em que o crime tenha ocorrido, desde que fique sobrestado seu julgamento até a outra sentença ou decisão (STJ, Resp. 596500/DF, Resp. 2003/0171653-8, Rel. Min. José Arnaldo Fonseca, 5ª. T., j. 21.10.2004, DJ 22.11.2004, p. 377) (grifos no original). [60]
Vale indicar um ponto de discordância com o autor Cesar Dario Mariano da Silva. Em seu trabalho defende que a possibilidade de retratação nos casos de falso testemunho em CPI se estenderia somente até o relatório final da Comissão, em analogia ao disposto no artigo 342, § 2º., CP, que se refere à sentença no Processo Judicial. [61]
Entende-se que razão assiste a Silva apenas nos casos em que o teor do depoimento se refira somente a questões que não resultarão em possível processo criminal, administrativo ou judicial em geral ulterior ou em que, mesmo podendo, não se convolem efetivamente em futuro processo por algum motivo. Em havendo algum processo, mesmo tendo sido o falso perpetrado em investigação preliminar (CPI, Inquérito Policial etc.), poderá o suposto autor do crime se retratar até a sentença e não apenas até o relatório do feito preliminar. No caso de Dias isso é irrelevante, eis que nem mesmo testemunha era e terá sempre, inclusive em juízo criminal eventual, o direito ao silêncio e não – autoincriminação. Mas, a observação é pertinente seja porque de interesse dogmático, seja a título de argumentação, acaso Dias fosse realmente uma testemunha, o que demonstra que nem mesmo assim sua prisão em flagrante teria sido aconselhável.
Ainda que tendo em vista o fato já repisado de que no caso de Dias não houve tipicidade criminal, é de se destacar que as alegações de Aziz no sentido de que teria ofertado várias “chances” para que o suposto “depoente” (investigado na verdade) se retratasse, [62] não têm, por obviedade, o condão de obstar o direito do envolvido de retratar-se até a eventual sentença criminal ou, no mínimo, acaso não haja processo posterior, até o relatório da CPI, isso acaso fosse realmente uma testemunha suspeita de mendacidade e não um investigado. Desse modo, sua prisão, ainda que fosse testemunha, seria da mesma forma inoportuna, não sendo qualquer favor de quem quer que seja, mas direito posto, a possibilidade de retratação e extinção de punibilidade.
3.4 – NULIDADE REGIMENTAL DO ATO DE PRISÃO EM FLAGRANTE?
Finalmente é preciso analisar uma questão que foi posta em discussão acerca da nulidade dos atos da CPI, tendo em vista que já haviam se iniciado os trabalhos da “ordem do dia do plenário” quando da voz de prisão, sendo fato que, por regra interna, os trabalhos das comissões devem ser suspensos quando começa a “ordem do dia do plenário”. Alguns Senadores que compõem a CPI levaram essa notícia ao Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o qual a princípio confirmou que as comissões não podem funcionar enquanto houver ordem do dia, chegando a apelar para que Aziz suspendesse os trabalhos da CPI devido ao funcionamento do plenário, sob pena de nulidade de suas decisões (de Aziz). O Senador Rodrigo Pacheco afirmou que iria confirmar se a ordem de prisão teria sido dada em concomitância com as atividades do plenário, reiterando que não seria possível o funcionamento simultâneo da CPI, o que geraria nulidade de todos os atos praticados pela comissão, sendo dever de todos os Senadores conhecerem e cumprirem o regimento interno. [63]
Contudo, posteriormente, o Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, deliberou por não reconhecer a nulidade da prisão de Roberto Ferreira Dias. Afirmou que a CPI e seus membros condutores têm autonomia e não lhe caberia se imiscuir em suas decisões. [64]
Não tem relevância eventual discussão acerca da atribuição ou não do Presidente do Senado para anular atos de comissões no que se refere a chegar a uma conclusão fundamentada sobre o acerto ou erro de Pacheco.
Na verdade parece que a alegação de suposta nulidade da Prisão em Flagrante devido à normativa do regimento interno relativa ao funcionamento do plenário e de comissões não tem cabimento. Isso porque, em se considerando, ainda que a título de mera argumentação, que teria, em tese, ocorrido um crime no âmbito do Senado Federal, a Prisão em Flagrante é regida pelo Processo Penal Brasileiro e demais normas penais e não por qualquer regimento legislativo. A Prisão em Flagrante, admitindo-se, “ad argumentandum tantum”, que tivesse ocorrido um crime, se impõe nos termos dos artigos 301 e 302, CPP, não estando condicionada a questões administrativas de funcionamento das pautas legislativas. O fato de a prisão dar-se no contexto de uma CPI ou no ambiente do Senado Federal é meramente circunstancial, em nada alterando o regramento processual penal da matéria. Não se trata propriamente de ato específico da CPI, mas da voz de prisão dada a alguém pelo cometimento, em tese, de um crime em estado flagrancial. No caso concreto, o importante é que não houve crime algum e depois foram praticadas formalidades processuais penais eivadas de irregularidades e até mesmo de inexistência, conforme aqui já exposto. No entanto, a questão regimental parece ser algo totalmente irrelevante para a conclusão acerca da validade e legalidade ou não da prisão em estudo.
Exatamente por isso entende-se que o Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, ao contrário dos demais envolvidos na prisão, não cometeu crime de Abuso de Autoridade, seja por atuação própria, seja em concurso de agentes. Realmente, o pleito que lhe foi feito quanto à anulação da Prisão em Flagrante devido a eventual violação do regimento interno não era de ser acatado. Cabe sim, como já aqui exposto, ao Judiciário, proceder ao urgente relaxamento dessa prisão ilegal.