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Prisão arbitrária na CPI

ou As fabulosas aventuras de Aziz, Randolfe e cia. na Casa Verde

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22/07/2021 às 10:00
Leia nesta página:

Análise crítica aprofundada sobre a prisão em flagrante por suposto perjúrio de Roberto Ferreira Dias na CPI do covid-19.

1 – INTRODUÇÃO

Em meio às diversas perplexidades a que nos conduz a denominada “CPI do Covid”, um episódio recente chama a atenção. Trata-se da “Prisão em Flagrante” do investigado Roberto Ferreira Dias, ex – diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, por suposto crime de “Perjúrio” (sic), conforme determinação do Presidente da CPI, Senador Omar Aziz. Dias era inquirido a respeito de imputação de “pedido de propina” para concretização de contrato de compra de vacinas, o que, em tese, configuraria a prática por ele do crime de “Corrupção Passiva”, conforme previsto no artigo 317, CP. [1]

O preso foi conduzido à Polícia Legislativa do Senado, com um “Auto de Prisão em Flagrante” (sic) assinado pelo Senador Omar Aziz, sendo formalizados os demais trâmites da prisão no que tange aos trabalhos de Polícia Judiciária, inclusive arbitrando-se fiança, que, após pagamento, ensejou a soltura do implicado. [2]

Neste trabalho se pretende expor os erros jurídicos cometidos nessa ordem de prisão, bem como em sua formalização.

Ao final os tópicos serão retomados, apresentando-se um encerramento conclusivo.


2 – A PRISÃO POR “PERJÚRIO”!

Tanto o Senador Omar Aziz como o Senador Randolfe Rodrigues, em atuação performática, bradam no recinto da CPI que Dias estava preso por suposto crime de “Perjúrio”.

Nas palavras do Senador Omar Aziz transcritas em reportagem veiculada nacionalmente:

Ele está preso por mentir, por perjúrio (sic). E se eu tiver tendo (sic) abuso de autoridade, que advogada dele (sic) ou qualquer outro senador me processo (sic), mas ele vai estar detido (sic) agora pelo Brasil, porque nós estamos aqui agora pelo Brasil, pelos que morreram (grifo nosso). [3]

A suposta prisão por “Perjúrio” é confirmada pelo Vice – Presidente da CPI, Senador Randolfe Rodrigues, que empresta seu total apoio a Aziz. Em suas palavras:

Se concordamos ou não, isso é irrelevante. O grupo que coordena a CPI continua unido e apoiando o presidente. Eu espero que tenha esse efeito didático. É uma decisão do presidente e está no uso de suas atribuições. Entre as atribuições do presidente está, na ocorrência do crime de perjúrio (sic), decretar a prisão. Tem a nossa solidariedade (grifo nosso). [4]

Logo num primeiro olhar, ainda antes de comentar acerca do suposto “Perjúrio”, há que fazer a constatação da transparência da perversão de uma medida cautelar ou pré – cautelar de Prisão em Flagrante em pretensa penalização antecipada de suspeito, bem como em sua utilização como efeito midiático de espetáculo público, o que não se coaduna, nem de longe, com as finalidades das cautelares processuais penais. São os próprios Senadores Aziz e Randolfe que afirmam que o preso está detido “pelo Brasil” (sic), “pelos que morreram” (sic), como uma espécie de punição antecipada num emprego apelativo da linguagem; e que a famigerada prisão deveria ter um “efeito didático” (sic), que somente seria plausível se se tratasse de “prisão – pena”, jamais “prisão cautelar”.

Digna de transcrição a cristalina lição do saudoso Luiz Flávio Gomes sobre o tema:

As medidas cautelares não possuem fim em si mesmas. Não são penas. Elas existem para assegurar a aplicação da lei penal ou a eficácia do processo penal ou da investigação ou para evitar novas infrações penais. O processo penal serve para a tutela da liberdade assim como para a efetivação do direito de punir do Estado.

O velho conflito entre liberdade e castigo também está presente nas medidas cautelares. As medidas cautelares constituem um meio para que a jurisdição alcance suas finalidades. Nenhuma cautelar pode cumprir o papel de pena (grifo nosso). [5]

Mas, se o equívoco ficasse somente nessa perversão das cautelares e espetacularização midiática do sistema penal e processual penal, seria possível dizer que estar-se-ia diante de um “mal menor” ou ao menos de um mal corriqueiro dentre atores políticos e mesmo jurídicos. É claro que nada estaria justificado ou seria sequer compreensível, mas ao menos seria possível dizer que seria um abuso e um erro ordinários.

Acontece que Senadores da República, sendo um deles Bacharel em Direito e ostentando até mesmo pós – graduação na área (Ranfolfe Rodrigues, já que Omar Aziz é engenheiro civil), [6] fazem menção, repetidamente, à prisão por suposto crime de “Perjúrio” (sic), o qual é simplesmente inexistente na legislação brasileira!

Tal como nos ensina Julián Marías, evocando Kant, seria preciso clamar a esses parlamentares com a expressão latina “sapere aude” (“ousa saber”), como o mínimo a “ser dito aos que tentam conduzir um povo”. [7] Randolfe com sua formação jurídica não tem a menor desculpa para essa espécie de gafe. Aziz é engenheiro civil, mas milita há muitos anos na política, no legislativo e no executivo, ocupando cargos de alta relevância, sendo o mínimo exigível que tenha conhecimentos rudimentares do Direito.

Mas, parece que nossos parlamentares pouco ou nada se importam com a forma pela qual vão adentrar à História. Parece que sequer cogitam sobre o conteúdo da frase emblemática dita no filme “O Gladiador”: “O que fazemos na vida ecoa por toda a eternidade”! [8] Em seus casos, o que ecoará? Uma comédia triste de bufões furiosos e ignaros? Isso é extremamente deprimente não só para eles, mas, especialmente, para o povo brasileiro.

Fato é que no Brasil não existe crime de “Perjúrio”, mas tão somente o crime de “Falso Testemunho ou Falsa Perícia”, conforme consta do artigo 342, CP e, no caso de uma CPI, tratar-se-ia do crime remetido do artigo 4º., inciso II, da Lei 1.579/52, aplicando-se o Princípio da Especialidade no conflito aparente de normas. [9]

O crime de “Perjúrio” existe em legislações estrangeiras que, mesmo prevendo o direito ao silêncio e a não autoincriminação ao acusado ou investigado, estabelecem que, acaso este abra mão de permanecer calado, ao manifestar-se faz juramento de dizer a verdade, sob pena de “perjúrio”. Em resumo, o investigado ou réu pode ficar em silêncio, mas se quiser falar terá o dever de dizer a verdade, inclusive sob o risco de imputação de outro crime, qual seja, o de “Perjúrio”, além daquele pelo qual já é investigado ou acusado.

É muito esclarecedor sobre a questão o “Dicionário Direito”:

perjúrio trata-se da conduta atípica cometida por aquele que acusado ou investigado faz afirmações falsas durante procedimento de investigação. Em séries policiais estrangeiras, é muito comum ouvirmos falar em “perjúrio”. O perjúrio consiste no ato de mentir ou inventar informações durante o ato do interrogatório, e pode ser cometido por aquele que está sendo acusado ou investigado acerca de determinado fato. No Brasil, o perjúrio não é considerado crime, sendo, portanto, conduta atípica e não passível de punição. Por outro lado, há o crime o falso testemunho.  Como se percebe, somente será autor do crime de falso testemunho, a própria testemunha, não havendo que se estender a aplicação da punição para aqueles que estão sendo investigados e não são verdadeiros quanto ao seu depoimento (grifos no original). [10]

Não é admissível que a fonte de informação jurídico – penal de Senadores da República sejam reminiscências de séries policiais ou filmes de julgamento estrangeiros!

Deveriam saber que diversamente do nosso ordenamento, no Direito Criminal Norte – Americano, o silêncio ou a não – autoincriminação são conceituados como “privilégios” e não “direitos”. Lá, diferentemente daqui, o Princípio do “nemo tenetur se detegere” (ou “Nemo tenetur se ipsun procedere” ou “Nemo tenetur se ipsum accusare”) é conhecido como “o privilégio contra a auto – incriminação (privilegie against compelled self – incrimination)”. [11] Por isso se diz naquelas bandas (não aqui) que o investigado ou réu fica muitas vezes diante de um “trilema cruel” (“cruel trilema”): “permanecer em silêncio e encarar a prisão; falar a verdade e encarar a prisão; ou mentir e encarar a prisão, dessa vez por perjúrio”. [12] Nada disso corresponde à realidade brasileira. Aqui o investigado ou réu tem direito ao silêncio e, se resolver prestar interrogatório, poderá falsear em sua narrativa com amparo na ampla defesa e no direito a não – autoincriminação, sem sofrer qualquer consequência criminal por isso, eis que se trata de fato atípico no Brasil.

Como esclarece Carneiro, expondo o escólio de Amorim:

“Na legislação brasileira, o perjúrio cometido por um acusado não é crime”, explica o advogado Fábio Amorim, porque no Brasil ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. “Uma pessoa na condição de réu não é obrigada a falar a verdade.” Nos EUA, perjúrio é crime até para o réu. Lá, além de testemunhas e peritos, os acusados também são obrigados a jurar que vão dizer “a verdade e apenas a verdade” ao longo do processo. [13]

Para Ferreira, a explicação para a ausência do crime de “Perjúrio” no ordenamento brasileiro pode ter como uma das explicações mais plausíveis, as raízes inquisitórias do nosso sistema processual penal, sendo o investigado ou réu presumivelmente alguém que faltaria naturalmente com a verdade, cabendo ao inquisidor ou juiz a busca da chamada “verdade real” com todos os meios à sua disposição. [14]

Tanto é fato que o “Perjúrio” inexiste na legislação penal brasileira, que foi objeto de Projeto de Lei n. 4.192/15 de autoria do Deputado Federal Miro Teixeira, projeto este que se encontra atualmente arquivado.[15] O intento era sua inclusão no Código Penal como artigo 343 – A, CP, o que nunca se concretizou. A redação seria a seguinte:

Art. 343-A. Fazer afirmação falsa como investigado ou parte em investigação conduzida por autoridade pública ou em processo judicial ou administrativo: Pena – prisão, de um a três anos.

§1º As penas aumentam-se de um sexto a um terço se o crime é cometido em investigação criminal ou em processo penal.

§2º O fato deixa de ser punível se, antes do julgamento no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade. [16]

Porém, como já dito, esse crime jamais foi aprovado pelo Congresso Nacional, sendo fato atípico, razão pela qual, por força do Princípio da Legalidade, ninguém pode receber voz de prisão ou ser perseguido criminalmente por ele. De fato, as falas dos Senadores Aziz e Randolfe são expressão de desconhecimento e/ou arbitrariedade, um ato falho talvez, porque sabiam que Dias não era uma testemunha e sim um investigado e só poderia ser preso, se estivesse em outro país (talvez nos EUA), pelo crime de “Perjúrio”, se fosse o caso de que realmente estivesse mentindo sob juramento.

Na verdade, o próprio termo “Perjúrio”, ainda que se aprovasse tal crime em nosso ordenamento, seria uma espécie de arcaísmo anacrônico que remontaria às origens remotas desse ilícito, encontráveis na Idade Média como a “quebra do juramento anterior à colheita das declarações” [17] (“perjurium” – “juramento falso, de ‘per’ – falsamente, mais ‘jurare’ – prometer, jurar”). [18] Chegou a existir no Brasil sob esse nome nas Ordenações do Reino e depois no Código Criminal do Império (1830) e no Código Penal de 1890, sempre com a característica de exigência de quebra um juramento como “pressuposto do crime”. [19] A denominação tem claro caráter moralizante e de índole religiosa em sua origem. Tal como nos ensina Magalhães Noronha:

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“Na Idade Média castigou-se igualmente o fato, porém, era considerado crime contra a religião, por ser antes ofensa ao juramento prestado no testemunho”. [20]

Acontece que Aziz, ao dar voz de prisão por “Perjúrio” a Dias, não cometeu somente um lapso de linguagem, agiu de forma ilegal, depois recebendo o amparo também ilegal de seu Vice Randolfe Rodrigues. Isso porque realmente prendeu uma pessoa por aquilo que seria, em tese, efetivamente um crime de “Perjúrio”, acaso este existisse em nosso ordenamento. Não se adentrará na questão de haver ou não realmente mentido o Senhor Dias, vez que isso é irrelevante diante do quadro de que mesmo mentindo não há previsão criminal para tanto, ao contrário, há uma principiologia, inclusive positivada constitucional e ordinariamente, que garante o direito a não – autoincriminação de réus e investigados em geral, a qual foi flagrantemente violada pelos Senadores coatores.

O suposto autor do crime em apuração “não está obrigado a dizer a verdade ou manifestar-se – art. 186, parágrafo único, e art. 198 do Código de Processo Penal”. A autoincriminação “configura inexigibilidade de conduta diversa”, mesmo em se tratando de autêntica testemunha e não de investigado travestido de testemunha por obra dos encarregados da investigação. [21]  

Por isso Nucci chama a atenção para o fato de que mesmo a testemunha tem o direito de calar ou faltar com a verdade sempre que faça isso para evitar “comprometer-se”, usando o “princípio constitucional do direito ao silêncio e de não ser obrigada a se autoacusar”. Afirma o autor que

é indispensável que o interrogante tenha cautela na avaliação do depoimento, para não se precipitar, crendo estar diante de testemunha mentirosa, quando, na realidade, está ouvindo um “futuro acusado”, que busca esquivar-se, validamente, da imputação. [22]

É muito importante ter em mente que a condição de testemunha ou investigado não é algo que se configure apenas formalmente, ou seja, por um voluntarismo nominativo de alguém. A pessoa não é testemunha ou investigado porque a autoridade tal ou qual o quer ou assim diz. A condição de testemunha é material e precisa ser aferida no caso concreto de acordo com o tema do interrogatório e as consequências que este pode ter ou não com relação ao depoente. No caso de Dias, por exemplo, há a imputação de crime de corrupção passiva evidenciada nos autos contra ele e o tema de sua inquirição era exatamente sobre isso, além do fato da quebra de seus sigilos pela própria CPI. Ora, desde o início era patente que não se tratava sequer de uma testemunha, inobstante o artifício pueril de nominá-lo dessa forma na audiência e colher seu suposto “compromisso de dizer a verdade”. Portando, não era possível jamais imputar-lhe falso testemunho, que é crime existente em nosso Direito, mas não aplicável ao caso; muito menos seria possível prendê-lo por crime inexistente, fato atípico no Brasil, de “Perjúrio”! O que ocorreu naquela sessão da CPI seria cômico se não fosse trágico. A defensora de Dias também pecou, pois que deveria, desde o início, haver contrastado a natureza das declarações e a inadequação de compromissar seu cliente, isso sem falar no fato de que deveria ter ido àquela sessão já com um “Habeas Corpus”, pois que se sabe ser costumeira em CPIs essa espécie de perversão de papéis e abuso em prisões de investigados que são maquiados por comissões como se fossem testemunhas. A grande mentira contada naquela sessão foi a de que Dias era testemunha e não investigado.

A testemunha jamais pode ser confundida com as partes, com qualquer um que tenha interesse no feito ou no procedimento. Trata-se de pessoa “estranha ao feito e equidistante das partes”, chamada “para falar sobre fatos perceptíveis a seus sentidos e relativos ao objeto do litígio”. [23] Aliás, tem sido corrente o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que nem mesmo o ofendido ou a vítima de um ilícito comete falso testemunho quando inquirida, exatamente por seus interesses e sua condição peculiar de envolvimento pessoal no caso. [24]

Dignas de nota são as observações de Bitencourt, que caem como uma luva no caso concreto em estudo, apontando “a paradoxal condição de imputado travestida na de ‘testemunha’” e a deletéria e extremamente censurável “falsidade da conduta da autoridade” que usa desse subterfúgio. Vale a pena a transcrição:

O acusado não apenas tem direito ao silêncio, como, inclusive, o de faltar com a verdade, em sua própria defesa. A condição de acusado exclui, ipso facto, a de testemunha. Nesse sentido, é incensurável o magistério de Regis Prado (Curso de Direito Penal Brasileiro, p. 861), quando afirma: “...a condição de imputado exclui a de testemunha. Além de ser parte no processo penal, não tem a obrigação de  dizer a verdade – limite da punibilidade de uma declaração falsa. No delito em foco a condição de testemunha – em sentido material -  é elemento do tipo penal. E tal condição não possui o imputado, ainda que declare como testemunha”.

Quem é investigado tem assegurado pela Constituição não apenas o direito ao silêncio, mas fundamentalmente o direito de não produzir prova contra si mesmo. Por isso, quem é investigado, ainda que dissimuladamente pela autoridade investigante/processante, como sói acontecer nas Comissões Parlamentares de Inquérito (e, por vezes, nas Investigações procedidas pelo Ministério Público), que fraudam a relação processual, procurando impor ao investigado o compromisso dizer a verdade a quem é potencialmente investigado, pretendendo “extorquir” declarações sob a ameaça de crime de falso testemunho, eventual declaração que não corresponda à realidade (fazendo afirmação falsa, negando ou calando a verdade) não tipifica o crime de falso testemunho, pois o compromisso prestado é materialmente inválido por contrapor-se ao texto constitucional. O investigado, além de ser parte no processo, não tem a obrigação de dizer a verdade, pois poderá estar produzindo prova contra si mesmo. No crime de falso testemunho a condição de testemunha – no seu aspecto material – é elementar do tipo, e o investigado/processado, certamente, não possui essa condição. Consequentemente, se o “investigado/testemunha” falsear a verdade em suas declarações, sua conduta será absolutamente atípica. (...).

Falso, na verdade, nessas condições, não são as declarações do investigado por não corresponder à realidade dos fatos, mas é a conduta da autoridade processante, que além de antiética e imoral é também antijurídica, tendo sido objeto, invariavelmente, de concessões de ordem de habeas corpus por nossa Corte Suprema, para assegurar o direito que nossos parlamentares deveriam não apenas conhecer e respeitar, mas, principalmente, defender. A única forma de coibir essa odiosa praxe que se instalou no parlamento nacional é criminalizar essa conduta fraudulenta de autoridades que forçam os investigados a prestar compromisso, quando sabidamente, ou dissimuladamente, são objeto da investigação (grifos nossos). [25]

É incrível como a descrição feita acima por Bitencourt se subsume perfeitamente ao caso concreto em estudo. Isso porque há que ser justo; essa conduta imoral e ilícita de simular não saber que uma pessoa não é testemunha e sim investigada em CPI, submetendo-a a compromisso e coagindo-a com a ameaça de prisão por falso testemunho, não é originalidade de Aziz, Randolfe e outros componentes dessa comissão; já foi utilizada por diversos outros atores políticos em casos similares, razão pela qual o STF sempre concede “Habeas Corpus” em situações semelhantes. Isso, é claro, não apaga a imoralidade e a desonestidade, inclusive intelectual, de todos os envolvidos ao fingirem que sabem o que não sabem e que não sabem o que sabem muito bem.

Diante desses fatos parece que se pode dizer que Aziz agiu com dolo direto de Abuso de Autoridade. Como visto, a manobra ilícita usada pela CPI é por demais conhecida e, inclusive nessa mesma comissão, já foi objeto de “Habeas Corpus” para evitar sua utilização, fato este de que estão cientes todos os Senadores, mormente o Presidente da comissão. Parece, aliás, que estavam esperando o primeiro incauto para ser pego em sua armadilha ardilosa. O elemento subjetivo (dolo específico) exigido para todos os tipos penais previstos na Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/19, artigo 1º.,, § 1º.) está perfeitamente configurado, não havendo dúvida de que foram perpetradas as condutas ilícitas com a finalidade específica de prejudicar o investigado Roberto Ferreira Dias. É impossível acreditar que Aziz e em seguida seu apoiador Randolfe não soubessem o que estavam fazendo de irregular, isso fica muito evidente em suas próprias falas. Aziz assume a prática de abuso e diz que será um problema da defesa desvencilhar-se de sua atitude! Isso é confissão direta do dolo específico! Por seu turno, Randolfe Rodrigues corrobora toda sua atuação, sendo que ambos deixam bem claro que estão procedendo a uma prisão com o intuito direto de constranger o investigado em pretenso justiçamento midiático e exemplar. Tudo isso está exposto em matérias jornalísticas, nas atas da sessão e em vídeos por todo o país. Não é comum que um crime e até seu elemento subjetivo mais profundo sejam escancarados nas mídias sem o menor pudor, mas isso aconteceu certamente no caso enfocado.

Aziz foi o responsável pelo decreto de uma prisão manifestamente desconforme com as hipóteses legais, aderindo “a posteriori” a essa conduta Randolfe Rodrigues e os demais integrantes do grupo coordenador da CPI, infringindo todos ao disposto no artigo 9º., da Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/19). Ainda que tenha Dias pago fiança e sido liberado, a prisão deve ser imediatamente “relaxada” pelo Juiz que receber sua comunicação, sob pena de também ele incidir na figura de abuso prevista no mesmo artigo 9º., agora em seu Parágrafo Único, I, da Lei 13.869/19, tendo em mira a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de relaxar a prisão manifestamente ilegal. Ainda incide também no artigo 9º., “caput” da Lei de Abuso de Autoridade, o Policial Legislativo do Senado responsável pela lavratura do auto de prisão em flagrante e arbitramento da respectiva fiança. Nem mesmo o cumprimento de ordem superior não manifestamente ilegal tem o condão de liberar tal Policial Legislativo de sua culpabilidade (inteligência negativa do artigo 22, CP), pois que os Senadores não têm hierarquia sobre os atos da Polícia Legislativa, bem como cabe ao Policial o exame jurídico – fático e formação de convicção acerca da subsistência da prisão.

Mas, não foi somente um tipo penal de abuso de autoridade o cometido pelos envolvidos no episódio. Mesmo antes da prisão quando Dias era compelido (constrangido ou coagido), mediante compromisso ilegal e ameaça de prisão ilícita por falso testemunho ou pior, por “Perjúrio”, durante todo o seu “depoimento/interrogatório", era ele compelido com “redução de sua capacidade de resistência” psicológica, a “produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro”, nos exatos termos do artigo 13, III da Lei 13.869/19. Frise-se que embora não estivesse preso, pode-se dizer que notificado a comparecer e permanecer na CPI sob ameaça de prisão por falso testemunho, estava claramente detido e submetido a intenso constrangimento ilegal. Em minha obra sobre o tema específico do abuso de autoridade, nos comentários sobre o artigo 13 da Lei 13.869/19, exponho meu entendimento no sentido de que a detenção pode ser algo menos intenso, configurando-se em “quaisquer situações em que um suspeito esteja sob o poder das autoridades para execução de diligências apurativas”, ocasião em que induvidosamente existirá uma inevitável “redução de sua capacidade de resistência”, tendo em vista sua condição hipossuficiente nas circunstâncias. [26]   Assim sendo, todos aqueles Senadores que em algum momento acenaram para Dias com a prisão por falso testemunho durante seu “depoimento/interrogatório” agiram nos moldes do disposto no artigo 13, III, da Lei 13.869/19. Novamente, é impossível, conforme já exposto, que não tivessem dolo direto em prejudicar o investigado e não soubessem o que faziam (inteligência do artigo 1º., § 1º., da Lei de Abuso de Autoridade).

Finalmente, a todo momento em que Dias pretendeu calar-se a respeito de algum tema e foi constrangido com ameaças de prisão por suposto falso testemunho, houve infração ao artigo 15, Parágrafo Único, inciso I, da Lei 13.869/19, pois que arbitrariamente se prosseguiu com o interrogatório de investigado que optou pelo uso de seu direito ao silêncio, ao menos naquele ponto em particular. Quanto ao elemento subjetivo específico valem as mesmas observações já expendidas.

Como bem assinala Aith, “não há como fugir da abusividade, desproporcionalidade e ilegalidade da prisão” enfocada, devendo tudo isso ser combatido “com máxima veemência pelo Poder Judiciário para que não haja banalização dessas medidas restritivas da liberdade pela Presidência da CPI do Covid – 19” [27] ou mesmo por quaisquer outras CPIs ou durante o andamento de quaisquer feitos investigatórios ou processuais por todo o país. [28]

Impõe-se, portanto, o relaxamento urgente da prisão e o trancamento do inquérito respectivo contra Dias, assim como a consequente devolução “in integrum” do valor pago como fiança, pois que estará perdido seu objeto ou finalidade de garantia.[29] No seguimento, a instauração de procedimento para a apuração dos crimes de abuso de autoridade no STF quanto aos Senadores implicados e na Justiça Federal de primeira instância com relação ao Policial Legislativo envolvido.

Como se vê, temos diante de nós uma situação bastante peculiar que somente o gênio literário de Machado de Assis poderia vaticinar em um conto (“O Alienista”), descrevendo o médico Simão Bacamarte e sua Casa Verde, manicômio em que internou toda uma cidade de Itaguaí e depois acabou sendo seu local de internação, pois que o verdadeiro louco era ele mesmo. [30] A inversão que se impõe ao ocorrido nessa prisão ilegal é algo muito similar àquilo que se vê na literatura machadiana em destaque. Também não deixa de haver alguma similaridade na literatura estrangeira com o esplêndido conto de Tchekhov, intitulado “Enfermaria número seis”, no qual o Médico Diretor do Hospital, Andrei Kfimich Raguin, acaba também internado na ala psiquiátrica onde mantinha outrora vários alienados em péssimas condições. [31] São as bruscas guinadas que a vida nos impõe de tempos em tempos, especialmente se andamos por caminhos tortos ou equivocados.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Prisão arbitrária na CPI: ou As fabulosas aventuras de Aziz, Randolfe e cia. na Casa Verde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6595, 22 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91931. Acesso em: 21 nov. 2024.

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