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Sistema judiciário brasileiro:

Análise de dados de 2020

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15/09/2021 às 12:00
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5 Ministério Público e Defensoria Pública

   Além do Judiciário, também importa conhecer a situação de duas instituições essenciais à Justiça, elas exercem papel relevante para o estabelecimento do Estado de Direito no Brasil e a formação do sistema judiciário. O Ministério Público e a Defensoria são instituições que ganharam proeminência na Constituição, proteções e passaram por expressiva expansão. Os dados sobre elas são os mais escassos, dada a inconstância das publicações a respeito - os dados mais completos encontrados são os apresentados abaixo.

A maior expansão, como se vai notar, é da Defensoria Pública, a instituição mais nova12 e com deficiências mais severas. Ela atende, com seus pouco mais de 6 mil membros, um público alvo que abrange cerca de 40% da população brasileira (MJ, 2015, p. 44-45) - 80,72 milhões de pessoas nos dados mais recentes estimados pelo Ministério da Justiça13. As nuances dessas desproporções não cabem bem em dados quantitativos, pois outros meios, como cursos de Direito, atuação de advogados privados como dativos, atuação do Ministério Público, organizações privadas e outras formas de acesso à Justiça amenizam carências. Ainda assim, o número serve para mostrar a imensa diferença que existe entre a capacidade de fazer demandas perante o Poder Judiciário caso se trate de alguém em condições de contratar um advogado privado (onde, se verá, há mais de um milhão atuando). Há apenas 2,97 defensores para cada 100 mil brasileiros, mesmo que eles atendam a "apenas" 40% dos brasileiros, ainda é um número muito díspar se comparado com os 528,18 advogados por 100 mil atendendo a parcela em condições de arcar com honorários.

O gráfico abaixo tem poucos dados, mas é relevante para se verificar a expansão numérica das duas instituições no sistema. Eles dão uma dimensão da progressão dos números de membros ativos nas duas carreiras.

   Assim, o dado mais antigo das defensorias, 2003, eram de 3.250 Defensores Públicos em atividade no Brasil. A publicação mais recente, de 2015, mostra um número quase duas vezes maior, 6.062. Os dados referentes ao Ministério Público são ainda mais recentes, as publicações datam apenas de 2012, quando foi declarado haver 11.747 membros do parquet, e esse número subiu para 13.087 até a publicação mais atual encontrada, de 2016 - em comparação com o Judiciário, há relativa igualdade na grandeza da expansão.

Porventura, o modo mais relevante de visualizar esses números em uma lógica sistemática é ver o quanto eles representam em relação aos cargos do Poder Judiciário. Dessa forma foi construída a tabela abaixo que procura mostrar a proporção de membros dessas carreiras em relação ao número de membros do Poder Judiciário brasileiro. Assim se pode notar o quanto a Defensoria Pública foi expandida com mais velocidade inclusive que o Poder Judiciário no período e se guardar uma ideia de proporção entre as instituições.

   A principal lição a ser tirada desses números é ligada à Defensoria Pública. Não haveria recursos para expandi-la até haver uma proporção com os números de advogados privados. Uma opção seria, normativamente, levar aos advogados privados um maior número de casos hoje atendidos nas defensorias, permitindo que esse número de profissionais privados possa atender pessoas com necessidade. A construção precisaria se preocupar especialmente com a remuneração pelos serviços prestados destes profissionais privados, mas os ganhos sociais e civilizatórios para o Brasil poderiam ser expressivos se alguns casos continuassem com a Defensoria Pública e outros - especialmente os de caráter estritamente patrimoniais - pudessem encontrar auxílio privado.


6 Advogados

   A pequena variação de dados, presente nos processos e carreiras públicas não se repete no interesse social e na atuação como advogado privado - há atualmente uma rápida expansão do quadro de advogados ativos (OAB, 2020), que hoje são 0,59% da população (1.101.235 de advogados) - e, há, matriculados em curso de Direito, neste momento, outros 0,41% da população - o aumento no número de quadros ativos na OAB quase dobrou na última década e o de quadros em formação indica que ainda haverá um aumento tão ou mais expressivo.

O número de advogados no Brasil cresce rapidamente. Em 2008, eram 571.360 advogados ativos na OAB (MIGALHAS, 2018), o número praticamente dobrou até 2018, alcançando 1.101.235 (GIESELER, 2018). Em 2018 eram 301,34 advogados ativos por 100 mil habitantes; em 2018, já eram 528,18 14.

Em análise comparada, primeiro se pode comparar com os Estados Unidos. Em 2008, havia 1.162.124 advogados nos EUA; em 2018, esse número havia aumentado para 1.352.027 (aumento de 16,35%) (ABA, 2020). No Brasil, passou-se de 571.360 em 2008 para 1.101.235 em 2018. Isso significa que, nesse período, o Brasil ultrapassou o número de advogados por 100 mil habitantes e, hoje, supera em muito os Estados Unidos. Os Estados Unidos têm, em 2018, 413 advogados por 100 mil habitantes, em um crescimento lento em relação à década anterior; o Brasil tinha 301 em 2008, mas em 2018 tinha 528 advogados por 100 mil habitantes (FELONIUK, 2020).

Ainda que se utilize dados com uma década atrás, a pesquisa dos professores Ramsayer e Rasmussen (2010, p. 5) ajuda a dimensionar ainda mais o quanto há um número alto de advogados se comparado a outros países, sempre por 100 mil habitantes: Austrália, 357; Canadá, 26; França, 72; Japão, 23; Reino Unido, 251. O Brasil é, hoje, um país com número muito alto de advogados.


7 Bacharéis em Direito

   Este crescimento acelerado do número de advogados é resultado da disponibilidade de cursos e do interesse da sociedade nessa formação. Os dados a respeito dos cursos evidenciam como esse quadro de expansão tão rápida se formou. O cenário tende a ser o de incremento de profissionais para a iniciativa privada (advogados) ou a impossibilidade de se manter no mercado de trabalho na área de formação, pois as carreiras públicas nunca foram expandidas com tamanha velocidade até esse momento. Em 2018, 126 mil novos bacharéis em Direito puderam iniciar suas atuações - mais de 10% do total de advogados atuantes em apenas um ano. A expansão de matriculados nos cursos de Direito também foi muito significativa - passou de 215 mil em 1995 para os atuais 873 mil de 2018.

   É igualmente relevante considerar o número de cursos de Direito no Brasil. O Brasil tinha 235 cursos de Direito em 1995 - 75 públicos e 160 privados. Em 2018, eram 1.303 cursos - 167 públicos e 1.136 privados. Enquanto o número de cursos públicos pouco mais do que dobrou no período, o número de cursos privados é sete vezes maior. O aumento foi, principalmente, decorrência da iniciativa privada. Hélio Duque, na XXII Conferência Nacional dos Advogados, afirmava que com seus 1.110, em 2015 o Brasil já era o país com mais cursos jurídicos no mundo (DUQUE, 2015, p. 1-2). Esse número só aumentou no período.

   O gráfico abaixo ajuda a mostrar ainda melhor as nuances, com o número de vagas oferecidas, que sofreu uma expansão muito aguda.

   O número de vagas autorizadas pelo MEC para oferta anual a novos ingressantes na área do Direito segue tendência de aumento, que se tornou muito acentuado desde 2017. Foram de 55.706 para 471.643, um aumento de oito vezes. Desse total atual, apenas 22.971 estão no ensino público, todas as restantes - 448.726 - foram ofertadas por instituições privadas.

Relevante notar que houve um aumento substancial, de 226.359 para 448.726, apenas a partir de 2017, quando o Governo Temer abriu caminho para que pedidos de aberturas de curso fossem feitos e rapidamente aprovados, o que aumentou substancialmente o número de vagas, que tinha relevantes restrições desde 2013, quando a criação de cursos fora suspensa. De acordo com a Folha de São Paulo, esse processo continuou ocorrendo ao longo de 2018 e 2019, (PINHO, 2019), então o expressivo aumento ainda pode ser mais acentuado com dados dos próximos anos. Esse aumento não significa, necessariamente, um aumento nessa proporção de estudantes, pois as vagas podem não ser preenchidas nessa proporção, mas são vagas aptas a serem eventualmente ocupadas, acrescendo ao atual número de novos bacharéis.

 A qualidade de ensino e a dificuldade de inserção no mercado são constantemente retratados e discutidos (STRECK, 2014) (STRECK, 2016) (COUTINHO, 2020). É questionada a necessidade de uma formação nestas proporções - e a criação de outros cursos, como de técnicos jurídicos, para servirem de auxiliares. A regulação estatal foi diminuída e o tema é basicamente estabelecido em função de empreendimentos privados. Tais empreendimentos, por sua vez, se baseiam na percepção da sociedade sobre a carreira jurídica, pois isso é o que parece gerar a demanda. O excesso de profissionais, no entanto, pode levar a um esgotamento de possibilidades de inserção e continuidade nas carreiras jurídicas. Em tese, essa situação será conhecida pela sociedade e ocorrerá a menor busca pela formação, mas isso não parece ter ocorrido até o momento e, se ocorrer, um grande contingente de formados pode já estar fadado a um mercado bastante saturado.


Considerações Finais

O Brasil tem um sistema judicial em desenvolvimento há dois séculos, ele é consolidado e mudanças não ocorrem tão rapidamente. No entanto, ocorrem, e ao longo de trinta anos, bastante se modificou. As mudanças podem ser conectadas com os elementos doutrinários, políticos, sociais - e eles, porventura, fogem à quantificação numérica. Apesar disso, ver os números do sistema auxilia na sua compreensão e na construção de propostas.

O sistema brasileiro não é muito diferente de dezenas de países da Europa no que tange ao seu tamanho se olhando amplamente, com distância. De perto, notam-se elementos que precisam ser discutidos. Há um grande número de processos ingressando no sistema: 13.455 novos processos por 100 mil habitantes a cada ano, o que o coloca em um patamar alto se comparado a países europeus. Também há um grande número de advogados - muito mais alto que o de outras países pesquisados - 528,18 por 100 mil.

Por outro lado, o alto número de processos e advogados não se repete no número de defensores públicos e nem juízes. Sobre os defensores, que, em tese, atendem a aproximadamente 40% da população, eles são apenas 2,97 por 100 mil habitantes. Assim, conhecendo as deficiências no atendimento dos defensores públicos trazidos pela doutrina e dados do Ministério da Justiça, se pode concluir que ainda há demanda refreada e necessidade de melhorias. O número de processos tenderia a ser ainda maior se nenhuma outra alteração fosse feita e apenas mais pessoas pudessem acessar o sistema.

É importante estabelecer meios como a conciliação, arbitragem e julgamentos simplificados. Também é importante trabalhar para diminuir a cultura de judicialização existente, e não basta apenas os meios citados na frase anterior - é preciso criar políticas públicas que confiram efetividade aos direitos subjetivos previstos na Constituição e, em uma perspectiva muito distante, tragam diminuição da violência e da desigualdade social que marcam a sociedade.

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É um cenário de alta litigiosidade no qual quem puder arcar com os custos de iniciar um processo (pessoas físicas, municípios e estados cobrando tributos, instituições privadas) tende a encontrar meios de fazê-lo - porventura, até mesmo com excesso de profissionais habilitados. Camadas vastas da população sem tais meios podem encontrar estruturas insuficientes para soluções de seus problemas, que podem estar ligados às ações acima, mas não raro envolvem processos na área de família, crime, sucessórios, e outros temas com um enorme impacto sobre seu bem-estar e a formação de um Estado de Direito no Brasil.

Há, também, o outro número abaixo da média de outros países - o de magistrados atuando. São 18.141 magistrados, 8,70 magistrados por 100 mil habitantes, uma média baixa se comparada à Europa. Ao dado se soma ao alto número de processos. Não se propõe ou defende, ao trazer isso, selecionar novos magistrados em larga escala - essa solução seria simplista e talvez não trouxesse um impacto tão relevante sem custos muito altos. Avanços tecnológicos, normas processuais e controles de produtividade fizeram com a capacidade de julgamento tenha aumentado muito e estivesse quase a par do incremento de processos.

É interessante refletir o sistema sabendo que, enquanto o número de processos novos é alto, e o de advogados também, o número de magistrados foi expandido em ritmo menor. O objetivo, nesse campo, seria ter um número de magistrados organizados de tal forma que, com a tecnologia e normas presentes, o estoque processual pudesse diminuir sistematicamente para se alcançar, em um prazo de anos razoável, um cenário de pouca mora processual na maior parte das prestações jurisdicionais.

Somado a isso, temos a peculiar situação de ter um número muito alto de cursos de Direito e de alunos.   

Saber que o número de pessoas matriculadas em cursos de Direito em 2018 (863.101) não é tão diferente do total de advogados ativos (1.101.235), formados ao longo de muitas décadas, é preocupante. Saber, além disso, que o número de vagas autorizadas para a oferta anual pode fazer esse número de matriculados se multiplicar em algumas vezes, pois hoje são 448.726 vagas autorizadas para ingresso a cada ano, eleva ainda mais a preocupação. O número de advogados no Brasil já era alto, praticamente dobrou na última década, e o fez ultrapassar todos os países no qual há uma comparação estabelecida. Ele pode vir a aumentar ainda mais rapidamente a frente - pode não levar dez anos para serem dois milhões de advogados. Profissionais não inseridos no sistema podem ter dificuldade pessoais graves e mais quadros não necessariamente melhorarão a qualidade do sistema judiciário, ao menos na forma como ele está estabelecido hoje.

O número de processos novos, por fim, não tem aumentado como ocorreu nas últimas décadas. O gráfico 2 parece apresentar um platô, e até uma diminuição de casos. Isso pode se modificar novamente se houver crescimento econômico ou se novas alterações no sistema facilitem ainda mais o ingresso por parte de camadas hipossuficientes da população (ex. melhor atendimento gratuito, normas que facilitem o acesso). Se isso não ocorrer, é possível haver a estabilização ou até alguma diminuição de demanda da sociedade do sistema. Dificilmente, com a desigualdade social existente, isso significaria que todos os habitantes do Brasil têm pleno acesso à Justiça. Significaria, sim, que a parcela da sociedade capaz de acessar o Judiciário parou de aumentar.

Internamente, nesse cenário de menos casos, o atual número de magistrados e avanços pode fazer com que, afinal, o estoque processual brasileiro comece a diminuir, um avanço muito importante. Por outro lado, significaria uma interrupção no ciclo de aumento de acesso ao sistema judiciário.

O Brasil segue tendo condições de melhorar seu sistema judiciário. Há interesse social nas carreiras, instituições consolidadas, uma advocacia pujante e uma doutrina de efetiva autonomia. A atuação não é formada apenas de qualidades, e o aspecto político está cada vez mais candente, mas não há um cenário no qual melhorias são improváveis. No entanto, as disparidades numéricas encontradas parecem concordar com todo o corpo doutrinário existente - há dificuldades graves de acesso à Justiça, há mora processual. Há um sistema funcional, mas ainda insuficiente para cumprir a Constituição em nível aceitável.

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Sobre o autor
Wagner Feloniuk

Professor Adjunto de Direito Constitucional no Curso de Relações Internacionais (2019) e Professor Permanente no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Doutorado (2013-2016), mestrado (2012-2013), especialização (2011) e graduação (2006-2010) em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pós-doutorado na Mediterranea International Centre for Human Rights Research, Università degli Studi Mediterranea di Reggio Calabria/Itália (2021). Recebeu Láurea Acadêmica na graduação, dois votos de louvor no doutorado, e bolsa de estudos para realização do mestrado, doutorado e estágio pós-doutoral. Coordenador do Projeto de Pesquisa: Observatório do Sistema Judiciário Brasileiro. Pesquisador dos projetos CAPES: A formação de ordens normativas no plano internacional, Núcleo de Estudos em Políticas Públicas e Opinião. Organizador dos Ciclos de Palestras das Relações Internacionais/FURG, Direito/UFRGS, PPGH/FURG e História e Direito/ANPUH, do Congresso Direito e Cultura (2014-2021). Organizou e palestrou em eventos na Argentina, Bolivia, Chile, Colômbia, Espanha, França, Itália, Inglaterra, Uruguai. Editor da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul e da Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, ex-Editor da Cadernos de Pós-Graduação do Direito/UFRGS e Revista da Faculdade de Direito da UFRGS. Membro da Associação Nacional de História, Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, Associação Brasileira de Editores Científicos, Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul e do ST História e Direito da ANPUH/RS. Áreas de Pesquisa: Direito Constitucional, História do Direito. Autor dos livros A Constituição de Cádiz: Análise da Constituição Política da Monarquia Espanhola de 1812, A Constituição de Cádiz: Influência no Brasil e série organizada Perspectivas do Discurso Jurídico. Áreas de Pesquisa: Direito Constitucional, História do Direito, Teoria do Estado. Publicações: http://ufrgs.academia.edu/WagnerFeloniuk

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELONIUK, Wagner. Sistema judiciário brasileiro:: Análise de dados de 2020. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6650, 15 set. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92785. Acesso em: 18 abr. 2024.

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