O § 8º do art. 1º da Lei de Improbidade Administrativa, com a redação que lhe foi dada pela recente Lei nº 14.230/21, dispõe:
Não configura improbidade a ação ou omissão decorrente de divergência interpretativa da lei, baseada em jurisprudência, ainda que não pacificada, mesmo que não venha a ser posteriormente prevalecente nas decisões dos órgãos de controle ou dos tribunais do Poder Judiciário.
Em setembro de 2021, a Associação Nacional dos Procuradores da República lançou nota técnica sobre o então Projeto de Lei nº 2.505/2021, objetando tal dispositivo, da qual se extrai a seguinte passagem:
[...] Pretende o dispositivo criar uma zona de imunidade à responsabilidade, sob a alegação de que não haverá improbidade no caso de divergência interpretativa da lei, baseada em jurisprudência ou em doutrina. Além da abertura de uma cláusula genérica que inequivocamente gerará insegurança jurídica na aplicação da lei, o mesmo dispositivo complementa que mesmo que não venha [a conduta funcional e seu resultado objeto de controle] a ser posteriormente prevalecente nas decisões de controle [leia-se, controle interno e controle externo] ou dos Tribunais [...]..
Ao que nos parece, o tom é alarmante e irreal.
Primeiro, porque a divergência interpretativa de normas jurídicas não é atividade discricionária nem puramente mecânica. Segue regras hermenêuticas que lhe emprestam objetividade, mas, como tarefa humana, sofre a interferência subjetiva do intérprete, por sua visão do sistema jurídico e da realidade social que disciplina. Daí as possibilidades múltiplas de discordâncias exegéticas, de interpretações diferentes, não raras vezes dentro do mesmo órgão julgador.
Segundo, porque a dissenso interpretativo faz parte da rotina forense, da doutrina e da academia.
Juízes, apesar de seguirem métodos exegéticos possíveis com propósitos de proferirem decisões adequadas e justas, têm sentenças reformadas por tribunais e tribunais acórdãos modificados por órgãos superiores, em razão de dissonantes interpretações das mesmas normas ou institutos jurídicos. O recurso especial tem exatamente na interpretação judicial divergente de lei federal um dos seus permissivos constitucionais. Até mesmo no STF, seus ministros divergem entre si na intepretação das leis. A execução da pena, antes ou depois do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, é um claro exemplo disso. Quem somos. A magistratura que queremos, título da pesquisa promovida pela Associação dos Magistrados Brasileiros, envolvendo cerca de quatro mil magistrados e publicada no final de 2018, aponta que os juízes de primeiro grau, em sua maioria, entendem que não se devem pautar por jurisprudência, e igual maioria, dentre os vinte ministros entrevistados, mesmo sendo eles os responsáveis pela edição de precedentes e súmulas, disseram-se ressabiados com o sistema e concordarem que o magistrado deveria poder decidir sem se pautar necessariamente pelo sistema de súmulas e precedentes vinculantes.
Na doutrina, expondo visões distintas sobre o mesmo fenômeno jurídico, conforme o ângulo ou princípio jurídico enfatizado, do que resultam interpretações diversas quando não opostas, os autores dão origem a correntes de pensamentos com reconhecidas sólidas bases dogmáticas que não raro acabam sendo incorporadas pela ordem legal.
Igual variedade interpretativa ocorre no meio acadêmico, cujos escritos visam o aprimoramento e fortalecimento de entendimentos já firmados, ou o apontamento de caminhos jurídicos ainda não percorridos sempre voltados a soluções jurídicas cientificamente mais fundamentadas e adequadas a mesmos temas.
Terceiro, porque jurisprudência não é o mesmo que precedente.
Embora não pacificada e mesmo que não se torne prevalente nas futuras decisões dos órgãos de controle ou dos tribunais do Poder Judiciário, a jurisprudência não é formada por uma só decisão de tribunal a determinar esta ou aquela interpretação normativa.
Constituiu-se por um conjunto de julgados reiterados, num mesmo sentido interpretativo e orientador sobre o mesmo tema, apto a funcionar de paradigma às futuras decisões devido à sua razoabilidade dogmática e sistêmica, ainda que não seja a melhor ou a interpretação que posteriormente venha a vingar nas cortes administrativas ou judiciais.
Quarto e último, pelo irrecusável reconhecimento de que a interpretação evolutiva sobre certa matéria ou instituto, quando não configure grosseira contradição ao sistema jurídico, mesmo que não se constitua nem venha a constituir-se na orientação jurisprudencial majoritária, pelo seu quê de razoabilidade, serve de base jurídica suficiente para alicerçar e excluir o caráter ímprobo do ato do agente público que se tenha defrontado com situação permissiva e optado entre orientações pretorianas antagônicas.
Portanto, divergência interpretativa, em si, não é causa de insegurança jurídica nem cria zona de impunidade.
Aliás, a lei que incrimina o abuso de autoridade, crime que pode ser cometido por membros do MP e da magistratura, ressalva que a divergência na interpretação da lei, por parte do agente público, não configura o delito (art. 1º, § 2º, da Lei nº 13.869/19).
Bem diz Dallari, o Direito é divergência.[1]
Notas
1. DALLARI, Adilson Abreu. Naturais divergências interpretativas não geram insegurança jurídica www.conjur.com.br/2018-mar-22/interesse-publico-naturais-divergencias-interpretativas-nao-geram-inseguranca-juridica