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Encerramento do processo de recuperação judicial e supervisão do Poder Judiciário

06/03/2022 às 12:00
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Para a ex-entidade recuperanda, a dispensa de um período de supervisão pode representar verdadeiro fresh start. Mas sua recepção no mercado, em plena concorrência, traz nova situação.

 A Lei 14.112/2020 deu nova redação a alguns dispositivos da Lei 11.101/05, dentre eles o enunciado contido no art. 61, caput, segundo o qual, após a concessão da recuperação judicial, poderá o juiz estabelecer prazo de até 2 (dois) anos para supervisão do Poder Judiciário quanto ao cumprimento das obrigações previstas no plano de reestruturação, independentemente de eventual período de carência. É a respeito especificamente deste dispositivo que serão apresentadas algumas reflexões, para fins de debate acadêmico.

Com efeito, a redação originária era no sentido de que o devedor permanecerá em recuperação... [texto impositivo] de modo que, a partir da entrada em vigor da lei de 2020, o juiz poderá [ou não] estabelecer o lapso temporal de supervisão, ficando ao seu critério a decisão, considerando as peculiaridades do caso concreto.

Basicamente, a Lei 11.101/05 apresenta três decisões importantes ao processo de reestruturação judicial, quais sejam: (i) a que determina o processamento da recuperação judicial [art. 52, cabível agravo de instrumento]; (ii) a que concede a recuperação judicial [art. 58, agravo de instrumento] e (iii) a que encerra o processo, via sentença [art. 63, apropriada a apelação].

Ao entender que caso não é de se impor a supervisão judicial, na mesma decisão que concede a recuperação judicial deverá o magistrado encerrar o processo, observados os requisitos do art. 63 da lei. Ainda, em hipótese tal fica, obviamente [questão de hermenêutica], afastada a possibilidade de abertura judicial da falência [art. 73, inc. IV], porquanto o encerramento do processo, por sentença impede que futuramente, nesse mesmo âmbito se perquira a respeito de eventual descumprimento de obrigação prevista no plano de reestruturação aprovado pelos credores. De fato, a regra do art. 73, inc. IV, só se refere aos processos nos quais houve sentença judicial determinando a supervisão por até 2 (dois) anos. Apenas a eles.

Em recente sentença, o r. Juízo da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da Comarca de São Paulo, Foro Central Cível, concedeu a recuperação judicial e declarou encerrado o processo[1]. Em densa, profunda e importante sentença, restou entendido que cabia o encerramento do processo sem a supervisão judicial por dois anos, justificando-se que; (i) na prática são poucos os benefícios; (ii) muitos planos preveem prestações em período superior ao biênio e eventual inadimplemento futuro poderia ser objeto de execução específica ou pedido de decretação da falência; (iii) a convolação da recuperação em falência se pode não demonstrar efetiva para segurança de recebimento do crédito; (iv) é mais interessante que a entidade recuperada tenha condições favoráveis de mercado, cabendo a lei funcionar como um facilitador de desenvolvimento econômico e social, criando estímulos ao empreendedorismo e à reabilitação..; (v) o enceramento do processo funciona como fator de fresh start [boa reputação da recuperanda para fins de obtenção de crédito]; (vi) custo [sentido amplo do vocábulo] do processo de reestruturação;(vii) não cabe impor ao Poder Judiciário a tramitação de um processo sem qualquer demonstração de utilidade de tal calendarização, viola-seo devido processo legal na perspectiva de interesse processual e do direito fundamental à razoável duração do processo [segundo a r. decisão, inexiste certeza quanto a efetividade da jurisdição no processo de soerguimento de recuperação - pagamento - dos créditos).

De fato, consoante as diretrizes do art. 47 da lei, o processo de reestruturação judicial tem como objetivo precípuo a tentativa[2] [apenas tentativa] de soerguimento da entidade mergulhada em crise, com o propósito de que volte a atuar plenamente no mercado competitivo; preservando-a, a fim de que possa (na medida do possível) cumprir sua função social[3], com o estímulo à atividade econômica (princípio da livre iniciativa, Constituição Federal[4]). Ao obter a sentença de encerramento do processo a entidade recuperanda poderá, em tese, voltar a atuar no mercado competitivo sem constar do banco de dados público, previsto no art. 196 da Lei 11.101/05, ou seja, não mais figurará da lista de entidades em recuperação judicial.

 A concessão da recuperação judicial abarca o acolhimento do plano sendo que, além de este implicar em novação dos créditos anteriores, a sentença será título executivo judicial. Descumprindo alguma cláusula do plano, o devedor se poderá sujeitar à execução específica ou mesmo sofrer pedido de abertura judicial de sua falência, segundo requisitos legais (art. 94, letra g), de modo que, a mantença da supervisão judicial por até 2 (dois) anos, de fato, não guardaria qualquer sentido prático, lógico, onerando ainda mais o Poder Judiciário, ao manter a tramitação de feito sem buscar resultado, porquanto já concedida a recuperação judicial [não se descuide da função social do processo]. 

Demais, há de se levar em conta questões econômicas e de mercado ao se tratar de entidade que saiu do processo de reestruturação e busca empreender, agora em condições de igualdade com as demais concorrentes. A atividade econômica privada na assim denominada pós-modernidade tem nítido viés capitalista e neoliberal, imperando a ideia de liberdade de mercado, com intervenção mínima estatal sobre a economia, observados os princípios e dispositivos Constitucionais. De fato, consoante lição de Eros R. Grau, o discurso neoliberal postula o rompimento da concepção de Estado do bem-estar[5] e tal aspecto não pode ser desconsiderado a quem tem o propósito de se reabilitar, mediante o exercício de atividade econômica. O mercado, como instituição jurídica que é, opera segundo os critérios de calculabilidade, racionabilidade, regularidade, estabilidade, segurança e previsibilidade[6] daqueles que nele atuam.

Diante de tais exigências do mercado, por mais que haja sentença de encerramento do processo de reestruturação, por mais que se não supervisione, por assim dizer, tal processo por até 2 (dois) anos, voltando a recuperanda a atuar em tal mercado, caso este não a queira, de duas, uma: ou ela se retira por vontade própria, considerando a ausência de requisitos mínimos para competir ou a falência será o caminho. O caráter racional do mercado é no sentido de haver, principalmente segurança, calculabilidade e estabilidade quanto aos atos que a ex-recuperanda praticará, em descuidar da mesma exigência aos demais que nele operam.  

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O viés da Lei 11.101/05 é solução de mercado para a crise; a base, o espírito da lei vem principalmente do Bankruptcy Code, onde devedor e credores entram na arena judicial da reestruturação[7]. Nessa esteira, se ao tempo do Dec.-Lei 7.661/45 a regulação da concordata era estatal, agora o modelo é de mercado, a solução dada por este à crise empresarial.

Em resumo, para a ex-entidade recuperanda, de fato, a desnecessidade de período de supervisão, pode sim representar verdadeiro fresh start, mas a recepção do mercado é outra situação, a ser avaliada por este mesmo mercado no decorrer das operações da entidade, agora sem o rótulo de recuperanda e em plena concorrência.


Notas:

[1] Autos do processo n. 1129712-90.2018.8.26.0100.

[2] Sim, tentativa de soerguimento, porquanto só se recupera o devedor viável. Caso não seja caso de recuperação, e a perícia prévia pode esclarecer já no início da tramitação do processo, a abertura judicial de falência se impõe, segundo os ditames da lei, para preservação do mercado, inclusive.

[3] Sobre o tema específico, ver: COMPARATO, Fábio K.Estado, empresa e função social. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 85, v. 732, out de 1996, pp. 38-46; COMPARATO, Fábio K. Direito empresarial. São Paulo: Editora Saraiva, 1995; REQUIÃO, Rubens. A função social da empresa no Estado de Direito. VII Conferência Nacional da OAB. http://revistas.ufpr.br/direito/article/view/8835; TOKARS, Fábio. Função social da empresa. In - RAMOS, Carmem L. S. (coord.). Direito civil constitucional: situações patrimoniais. Curitiba: Juruá Editora, 2002, p. 77. GEVAERD, Jair. Responsabilidade social, inclusão e sustentabilidade: vértices empresariais dos direitos fundamentais. In - CANEZIN, Claudete C. (coord.). Arte jurídica. Vol. I. Curitiba: Juruá Editora, 2004; CLARO, Carlos R. Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: Editora LTr, 2009.

[4] Sobre o tema: CLARO, Carlos R. Estado regulador e atividade empresarial na sociedade pós-moderna.Porto Alegre: Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, n. 64, out/2009 - dez/2009.

[5] O direito posto e o direito pressuposto. 3ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 90. Grifos no original.

[6] Consoante GRAU, Eros R. A ordem econômica na Constituição de 1988. 11ª edição. São Paulo: Malheiros, 2006; Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e os pressupostos. 7ª edição. São Paulo Malheiros, 2016.

[7] Ver meu: Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. A recuperação judicial, no Brasil, se torna uma arena e bem escreve Kevin J. Delaney em seu clássico livro, ao discorrer sobre o sistema norte-americano. Assim se posiciona: Since the original publication fo Strategic Bankruptcy in 1992 I have become more convinced that bankruptcy is really politics by another name. Many Americans who never thought the would care about corporate bankruptcy found themselves unwitting parties to the complex process of Chapter 11 reorganization in the 1980s and 199s. The bankruptcy arena, formerly the province of bankers, financial managers, and their attorneys, became the arena in which some of the biggest social issues of our time were decided: the fate of asbestos victims and compensation to women injured by the Dalkon Shield intrauterine device and those suffering ill-health after receiving silicone implants. Strategic Bankruptcy: How Corporations and Creditors use Chapter 11 to their Advantage. California: University of California Press, 1998. Op. cit., IX.

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Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLARO, Carlos Roberto. Encerramento do processo de recuperação judicial e supervisão do Poder Judiciário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6822, 6 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96210. Acesso em: 26 abr. 2024.

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