Capa da publicação Arábia Saudita na comissão sobre o status da mulher da ONU: debate sobre multiculturalismo
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Multiculturalismo, sociedade civil como sujeito de direito internacional e direito das mulheres:

Arábia Saudita na comissão sobre o status da mulher da ONU

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17/03/2022 às 15:15
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Muitas ONGs atuantes nos fóruns internacionais clamam para si o papel de representar a sociedade civil, mas, ao invés de proteger a democracia e a liberdade de expressão de todos os indivíduos, bloqueiam suas falas.

RESUMO: O presente trabalho possui como objetivo, a partir do evento da eleição da Arábia Saudita para a Comissão sobre o Status da Mulher da Organização das Nações Unidas (CSW), pensar os conflitos desenvolvidos no Direito Internacional Público Contemporâneo entre a expansão do status de sujeito de Direito Internacional para a sociedade civil e o multiculturalismo refletido nos movimentos de reforma da representação dos Estados nas Organizações Internacionais, sob o foco filosófico do relativismo cultural, o qual vai de encontro à construção de uma cultura global, incentivada pelo movimento de globalização, centrada nos valores ocidentais. O principal foco é: até que ponto toda a discussão sobre a repressão das mulheres árabes no mundo ocidental não é, em si, uma repressão?

Palavras-chave: Direito Internacional Público; representatividade; Direitos das Mulheres.


INTRODUÇÃO

Em 25 de abril de 2017, foi anunciado pela ONU a inserção de um novo membro na Comissão sobre o Status da Mulher, a Arábia Saudita. Ela terá, desse modo, poder de voto em importantes questões concernentes ao combate à desigualdade de gênero e à ampliação dos direitos do gênero feminino. Sua integração ocorreu através de eleição entre os Estados membros das Nações Unidas.

Contudo, como é de conhecimento do público em geral, a Arábia Saudita é um dos países com os piores índices sobre a igualdade de gênero. Nela, o poder de voto das mulheres só foi conquistado em 2015 e a violência doméstica proibida em 2013. Toda mulher saudita possui um guardião masculino e é o único país que, até hoje, as mulheres são proibidas de dirigir veículos automotores.

Obviamente, essa escolha gerou polêmica no cenário internacional. ONGs como a UN Watch protestaram fortemente contra essa escolha, afirmando que isso seria um retrocesso para a proteção dos direitos das mulheres.

Uma questão se põe com bastante força no meio desse embate. Atualmente, existe um grande movimento defensor da integração da sociedade civil como efetivo sujeito de direito internacional. O principal caminho para a concretização disso, conforme afirmado por Barros-Platiau, é por meio das ONGs (BARROS-PLATIAU, 2001). Contudo, conforme a mesma autora, essas organizações tomam para si o papel de representantes da sociedade civil, sem ter um efetivo instrumento legitimador desse posicionamento. Elas não foram eleitas para o papel que assumiram. Além disso, são derivadas, em sua maioria, do mundo ocidental, refletindo os valores do mesmo.

Por outro lado, luta-se pela expansão da representação estatal no âmbito das Nações Unidas, principalmente no que concerne os países do que é chamado de Terceiro Mundo, dentre eles a Arábia Saudita. Isso se reflete, por exemplo, na batalha pela ampliação do Conselho de Segurança e discussões sobre a igualdade representativa dos Estados na Assembleia Geral (ALMEIDA, 2008; VIOTTI, 2009). É claro que a eleição da Arábia Saudita para a Comissão sobre o Status da Mulher da ONU é um movimento a favor dessa maior representação estatal.

O Direito Internacional Público e o Direito Internacional dos Direitos Humanos têm sua origem impregnada de valores ocidentais, seculares e derivados da ideologia liberal. Populações de países como a Arábia Saudita não possuíram a mesma história que populações ocidentais, o que lhes leva a possuir valores diferentes destes que têm dominado o Direito Internacional. Apenas nos últimos anos, através dos movimentos do relativismo cultural e defesa do pluralismo cultural, alguns indivíduos têm percebido o equívoco no ordenamento internacional em priorizar os valores ocidentais, sendo que seu objetivo é aproximar as nações e valorizá-las de forma igual, desde que preguem o princípio da dignidade da pessoa humana, mantendo constante diálogo e promovendo a paz entre os povos.

Desse modo, procura-se, através da metodologia da pesquisa bibliográfica, demonstrar os conflitos existentes entre os movimentos da representação estatal e da sociedade civil como sujeito de direito internacional e a força legitimadora de ambos. Ainda, busca-se responder a seguinte pergunta: Até que ponto os interesses da sociedade civil, como proclamados por seus pressupostos agentes representativos, devem afetar a representação dos Estados nos organismos internacionais? Além disso, essa animosidade que as organizações não governamentais apresentaram em relação à eleição representa um absolutismo cultural? Para tal, percorreremos brevemente os conceitos de multiculturalismo e cultura global, que estão em conflito, a função dos Estados dentro desse conflito e a atuação das Organizações não-governamentais dentro das Organizações Internacionais, constituindo mais uma voz no mesmo.

DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS: OS DIREITOS DAS MULHERES E CONFLITOS DO MULTICULTURALISMO

A Carta das Nações Unidas, ela própria, em seu artigo 1º, item 3, afirma como propósito da ONU promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. Os textos das Convenções de Direitos Humanos se destinam, em sua maioria, ao sujeito neutro, universal, sem qualquer distinção por características que lhe designam enquanto indivíduo distinto dos outros. No entanto, leituras feministas dessas normas demonstraram que, apesar dessa suposta neutralidade, a interpretação majoritária desses ordenamentos se destinava ao sujeito do gênero masculino, o qual, historicamente, possui mais facilidade em ter seus direitos e liberdades preservados. Tal fato restringia o âmbito de proteção fornecido pelos Direitos Humanos (ESPINOZA, 2002). A partir dessa necessidade de garantir a proteção dos Direitos Humanos às mulheres, há a expansão do instrumental de convenções sobre essa matéria, sendo aprovada pela Assembleia Geral da ONU, em 18 de dezembro de 1979, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.

Essa Convenção surgiu a partir dos trabalhos da Comissão de Status da Mulher da ONU (CSW), órgão criado em 1946 dentro do Sistema das Nações Unidas com o objetivo de analisar e criar recomendações de formulações de políticas aos vários países signatários da Convenção, visando ao aprimoramento do status da mulher (PIMENTEL, sem ano).

Desse modo, a referida Convenção discursa sobre direitos políticos, sociais, econômicos, civis e referentes à família, todos eles orientados pela filosofia da Organização das Nações Unidas. Prega o referido instrumento o princípio da dignidade da pessoa humana, a igualdade de gênero e o combate à discriminação e os Estados que o ratificaram assumem o compromisso de adequar suas normas internas à consagração desses princípios e proporcionar meios legais para a aplicação real deles (ESPINOZA, 2002).

Um grande problema envolve a Convenção e a Comissão, problema este não exclusivo das mesmas, mas que impregnam todo o sistema de Direitos Humanos. Elas foram construídas a partir dos valores da civilização ocidental, pregando direitos e liberdades inspiradas na ideologia liberal. Conforme afirmado por Arnold Toynbee, em 1930, as demais civilizações ainda sobreviventes, como a islâmica, estão em constante perigo de serem assimiladas ou aniquiladas pela ocidental, o que foi ampliado pela nova cultura global, compreendida a partir da tese falaciosa da unidade da civilização, que evolui para um referencial espaço-temporal exclusivamente eurocêntrico (DAVUTOGLU, 2004). A cultura eurocêntrica é considerada um padrão válido em todo o mundo, o que esmaga as culturas que não são convergentes a ela, exterminando o pluralismo cultural.

A civilização ocidental clama, para si, o poder exclusivo de determinar o direito e o fluxo e progresso da história. No entanto, essa atitude é incorreta, pois a humanidade é plural em todos os sentidos, nas aparências, nas culturas, na fé e nos valores, dentre outros. Um dos grandes princípios ensinados pelos Direitos Humanos é o da tolerância e respeito à diferença, o que envolve também o respeito aos diferentes modos de enxergar o mundo. A Organização das Nações Unidas, enquanto um canal de diálogo conjunto entre Estados para a resolução dos problemas que hoje afligem a humanidade, e não uma figura representativa dos valores ocidentais, deve respeitar as diferentes culturas e civilizações que reclamam voz no cenário internacional e que defendem o princípio máximo da dignidade da pessoa humana, pregando a democracia transnacional.

A representação estatal dos países árabes e muçulmanos no Sistema das Nações Unidas, tanto nos grandes órgãos quanto nos de foco temático, como a CSW, se mostra uma das principais formas de se garantir a pluralidade cultural e o respeito a ela por parte dos ordenamentos internacionais de Direitos Humanos, vez que garantem o diálogo entre os mais diferentes Estados e suas culturas. Atendendo a essa perspectiva, a CSW possui um núcleo específico para os Países Árabes, a fim de atender a realidade da população e das mulheres desses países, sem submetê-los ao padrão cultural ocidental, que não deve ser considerado o único correto, em nome do relativismo cultural.

É importante frisar que o diálogo entre os diferentes Estados no âmbito internacional simboliza o diálogo entre as populações as quais representam. Esta comunicação evita animosidades entre as diferentes nações pois, uma vez que seus valores são representados e respeitados dentro do cenário internacional, os radicalismos são inibidos, visto que não há necessidade dos mesmos para que as populações tenham sua projeção na comunidade internacional.

REPRESENTAÇÃO ESTATAL NAS NAÇÕES UNIDAS

Conforme o jurista Fábio Konder Comparato:

As Nações Unidas nasceram com a vocação de se tornarem a organização da sociedade política mundial, à qual deveriam pertencer, portanto, necessariamente, todas as nações do globo empenhadas na defesa da dignidade humana (COMPARATO, 2015).

A Carta das Nações Unidas enuncia, explicitamente, a existência do direito à autodeterminação dos povos, bem como o fazem o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Portanto, é evidente que as Nações Unidas devem comportar em sua organização todas as nações que assumam um compromisso com a dignidade da pessoa humana, não sendo esta entendida apenas através dos valores ocidentais, liberais e secularistas, mas compreendida também a partir das diferentes óticas culturais, como a do Mundo Árabe, especialmente permeada por valores religiosos.

No entanto, não foi construída desse modo a estrutura inicial das Nações Unidas. Dentro do Conselho de Segurança, um dos principais órgãos da organização, existem cinco países que são membros permanentes e possuem poder de veto, a França, o Reino Unido, a Rússia, a China e os Estados Unidos, os quais foram vencedores da Segunda Guerra Mundial. Tal configuração provoca a manutenção da predominância da perspectiva desses países nas tomadas de decisão do CS e torna invisíveis outros países que também estão interessados nas decisões do Conselho. Em toda sua história, o Conselho de Segurança foi reformado apenas uma vez, com a ampliação do número de membros não-permanentes, devido ao aumento do número de Estados-membros da ONU a partir dos processos de descolonialização na África e na Ásia a partir da segunda metade do século XX (VIOTTI, 2009).

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Atualmente, existem diversos movimentos pela ampliação do número de membros permanentes no Conselho de Segurança, abarcando as novas potências emergentes e dos países em desenvolvimento, bem como o aumento do número de membros não-permanentes, a fim de refletir a verdadeira pluralidade do mundo e da ONU. O Brasil, por exemplo, defende que ele mesmo, a Índia, a Alemanha, o Japão e outros dois países africanos se tornem membros permanentes do Conselho e sejam integrados mais nove membros não permanentes da América Latina, Ásia, África e Leste Europeu (VIOTTI, 2009). Apesar de pregar que eles devem atuar pelo interesse de suas nações e não como mandatários das regiões que representam, é natural que eles auxiliem na representação das forças políticas e da perspectiva de suas regiões.

Ainda, há questionamentos sobre a representação estatal em outro órgão essencial das Nações Unidas, a Assembleia Geral da ONU. Em suma, esse órgão abarca todos os membros das Nações Unidas e nele todos detêm o mesmo nível de importância, pois possuem igual direito ao voto, não possuindo uma nação um voto com peso maior do que da outra, pelo menos de acordo com o ordenamento. Primeiramente, esse sistema parece impassível de questionamentos, pois todas as nações são consideradas como iguais umas perante as outras.

Contudo, quando refletimos que, na realidade, as nações estão no sistema da ONU representando seus povos, percebe-se que nações que detém quase metade da população mundial, como Índia e China, possuem o mesmo poder que uma pequena nação em uma ilha no Pacífico, como Samoa, o que é um desequilíbrio da representação da sociedade civil mundial no Direito Internacional. Porém, se a importância do voto se torna proporcional à população representada por aquela nação, o Direito Internacional se tornaria injusto, pois todas as nações que fazem parte do sistema ONU estariam submetidas aos interesses das nações mais populosas, ou seja, Índia e China, as quais deteriam, praticamente, um monopólio decisório sobre o Direito Internacional Público (ALMEIDA, 2008).

O objetivo ao demonstrar toda essa discussão presente nos últimos anos no que concerne à representatividade estatal na ONU é colocar em evidência a importância da mesma e o modo como fornecer aos Estados menor ou maior capacidade decisória dentro do funcionamento da organização internacional é uma forma de garantir a ele a defesa de seus interesses e que seus valores não sejam submetidos aos valores de outras culturas. Ademais, é importante frisar que esses interesses e valores dos Estados são, a princípio, os próprios interesses e valores das populações que eles representam. Desse modo, garantir a representação dos Estados da forma mais ampla possível é garantir, também, a não submissão de populações inteiras aos valores de outras populações, os quais elas não são obrigadas a considerarem corretos. Garantir a ampla representação estatal nos mais variados órgãos do Sistema das Nações Unidas é permitir o pluralismo cultural e bloquear a cultura global de elementos exclusivamente ocidentais, conforme os conceitos utilizados por Ahmet Davutoglu (DAVUTOGLU, 2004).

Assim, é possível concluir, nos presentes termos, que a participação da Arábia Saudita na Comissão sobre o Status da Mulher da ONU não é equivocada, pois é o primeiro modo de garantir maior projeção da situação da mulher saudita dentro do cenário internacional sem o filtro da lente do olhar ocidental, que preza pelo secularismo e liberdades individuais. Além disso, é o primeiro passo para permitir um canal de diálogo sobre os direitos da mulher entre diferentes realidades, a ocidental e a árabe.

SOCIEDADE CIVIL COMO SUJEITO DE DIREITO INTERNACIONAL: ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS

Existe, na contemporaneidade do Direito Internacional, um movimento pela ampliação dos sujeitos desse Direito. De início, apenas os Estados, detentores de soberania originária, eram considerados sujeitos de Direito Internacional, ou seja, tinham sua personalidade jurídica reconhecida. Isso mudou a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, quando percebeu-se que um Direito Internacional centrado exclusivamente na figura dos Estados eram pouco estável e não contribuía para a paz entre as nações. Concretizando a ideia de Kant em A Paz Perpétua de uma federação de Estados livres, foi formulada a Organização das Nações Unidas, uma organização internacional com o objetivo principal de manter a paz e o diálogo entre as nações e defender o princípio da dignidade da pessoa humana.

Dessa forma, iniciou-se uma nova era nas Relações Internacionais, onde os atores principais não mais eram apenas os Estados, mas também as Organizações Internacionais. Em 1949, a Corte Internacional de Justiça reconheceu que as Organizações Internacionais possuem personalidade jurídica, podendo elas postularem perante tribunais internacionais e, inclusive, fazerem parte de outras organizações internacionais (CRETELLA NETO, 2013; TRINDADE, 2005). Conforme Alexandre Prola:

Desse ponto, pode-se compreender a inclusão gradativa de outros atores da ordem internacional na subjetividade, enfraquecendo, aos poucos, um domínio que era exclusivo do Estado. A humanização do Direito Internacional permitiu outras ramificações de sentido de subjetividade, além de acrescer novos entendimentos às facetas tradicionais. (PROLA, 2012)

No entanto, é reconhecido, na atualidade, um paradoxo existente no Direito Internacional Público. Apesar de as organizações internacionais serem detentoras de personalidade jurídica e serem capazes de atuar, em determinados casos, independentemente dos Estados que as constituem, quem as dirigem, principalmente, são os próprios Estados. Desse modo, nas Relações Internacionais, os Estados são regulados pelos próprios Estados e eles próprios produzem os ordenamentos aos quais vão se submeter, sendo que estes são direcionados às suas populações (PROLA, 2012).

Desse modo, é defendida a tese de a própria sociedade civil ser sujeito de Direito Internacional Público, incluindo um elemento humanístico nas Relações Internacionais e quebrando o paradigma subjetivista estatal, fortalecendo uma integração mundial. O objetivo é a construção de uma consciência jurídica universal, modelando o direito das gentes, como definido por Kant, permitindo a evolução de uma Ordem Internacional verdadeiramente protetora dos Direitos Humanos (PROLA, 2012).

É entendido por grande parte dos autores que discursam sobre essa ampliação do rol dos sujeitos de Direito Internacional que o principal meio pelo qual a sociedade civil atuaria nas Relações Internacionais seria através das Organizações Não Governamentais, ONGs (PROLA, 2012; BARROS-PLATIAU, 2001; CARESIA, 2007). Conforme Barros-Platiau:

Todavia, serão privilegiadas as ONGs, pelo fato de terem assumido um papel importante no desenvolvimento do direito internacional ambiental, principalmente porque elas se auto-atribuem o papel de representantes da sociedade civil global. Entretanto, esses novos atores não têm personalidade jurídica internacional e, portanto, não são sujeitos de direito internacional. (BARROS-PLATIAU, 2001)

Desse modo, é importante destacar o fato de, apesar de atribuírem a si mesmas esse papel de representantes da sociedade civil internacional, elas não detêm personalidade jurídica internacional e, portanto, não são sujeitos de Direito Internacional.

No entanto, há um grande problema quanto a representatividade das ONGs Internacionais. Elas atribuem a si mesmas esse papel de representantes. Contudo, essa representação delas não passa por nenhuma espécie de controle (BARROS-PLATIAU, 2001), como o voto popular, que legitima a representação dos agentes estatais nas democracias, ou as tradições e cultura local, que legitimam os representantes estatais em regimes monárquicos.

Diversas vezes ocorrem conflitos em questão de representatividade no interior das ONGs, até mesmo daquelas que especificam o grupo que representam. Por exemplo, uma conhecida ONG que defende os direitos dos LGBTs no cenário internacional, sendo observadora na ONU, a ILGA, teve um enorme problema quando uma das ONGs parceiras, a NAMBLA, vinculou publicidade que defendia a pedofilia. Devido a esse fato, apesar da ILGA ter sinalizado sua irresponsabilidade sobre a publicidade da outra ONG, ter finalizado a parceria com a mesma e frisado que não coadunava com o entendimento da ex-parceira, esta foi suspensa da ONU temporariamente[1].

Se tal fato ocorreu entre ONGs que, a princípio, representavam o mesmo grupo, como podemos garantir que ONGs como UN Watch, que criticou a eleição da Arábia Saudita para a CSW e não delimitam o grupo que representam, apenas alegam defender os Direitos Humanos e ser uma espécie de observatório das Nações Unidas (conforme sua página na internet: UN Watch is foremost concerned with the just application of UN Charter principles[2]), realmente representam o grupo que elas dizem defender ou o interesse da sociedade civil?

É de clareza solar que a crítica da UN Watch está estabelecida sobre o pilar dos valores ocidentais liberais, os quais defendem que limitações sofridas pelas mulheres em regimes como o da Arábia Saudita são um absurdo. Dentro da minha criação ocidental e da minha defesa do feminismo, reconheço que tais limitações e os valores que retiram a liberdade da mulher dentro desses regimes são intragáveis para mim e que eu sou incapaz de considerá-los justos ou corretos, vez que eu mesma não me submeteria a isso. No entanto, eu não sou uma mulher saudita, não fui criada nem mesmo próxima dos valores muçulmanos. Eu não sei dizer como uma mulher saudita se sente e nem posso ser porta-voz da mesma em qualquer instância representativa.

Por extensão, essa argumentação pode ser levada aos protestos proferidos pela UN Watch. Sediada em Genebra e inaugurada por Morris Berthold Abram, nascido nos Estados Unidos da América (um dos baluartes do liberalismo ocidental e centro do movimento globalizacional), ela claramente representa os valores ocidentais e ao afirmar simplesmente que é um absurdo estar presente a Arábia Saudita na Comissão sobre o Status da Mulher da ONU ela, inconscientemente, está fortalecendo o movimento da cultura global uniformizadora, o absolutismo cultural do Ocidente. Cala as manifestações dos países de origem árabe, ignorando o pluralismo cultural.

Na realidade, a presença da Arábia Saudita na CSW pode ser um meio efetivo de projetar a situação da mulher árabe, além de suas vontades, no sistema das Nações Unidas. Além disso, a própria Arábia Saudita aceitar fazer parte de uma Comissão como essa pode ser sinal de abertura ao diálogo com as demais nações sobre a situação das mulheres em seu país. Simplesmente fechar esse canal de diálogo sobre os direitos das mulheres, ao contrário de reforçar a importância desses direitos, pode contribuir para calar cada vez mais o status das mulheres sauditas, além de reforçar radicalismos nos países árabes, pois as nações ocidentais não estariam dispostas ao diálogo com eles.

Nessa perspectiva, vale citar a obra da Gayatri Spivak, Pode o subalterno falar?. A escritora indiana, nesse ensaio, discursa sobre a representação do indivíduo do Terceiro Mundo no discurso ocidentalizado. Em seu entender, o correto não é a representação desse indivíduo, mas fornecê-lo meios de se articular e se manifestar por conta própria, e meios de ele ser ouvido. Esse subalterno seria aquele pertencente

às camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante (SPIVAK, 2010)

Inclusive, em seu texto, ela coloca em destaque a subalternalização da mulher, exemplificando o indivíduo subalterno através de exemplos femininos e evidenciando como ela é mais arduamente imposta a esse gênero. A mulher como subalterna, não pode falar e quando tenta fazê-lo não encontra os meios para se fazer ouvir (SPIVAK, 2010).

Portanto, mais importante do que simplesmente combater a presença de um país como a Arábia Saudita na Comissão sobre o Status da Mulher da ONU, é reconhecer que essa presença é um primeiro passo para a projeção da situação mulher saudita no cenário internacional sem o filtro das lentes ocidentais, o que pode levar, futuramente, à possibilidade da própria mulher saudita falar por si mesma, combatendo o movimento de subalternalização, sobre o qual Spivak discorre.

CONCLUSÃO

Foram focados os conceitos de pluralismo cultural, relativismo cultural, absolutismo cultural e cultura global, a fim de evidenciar a movimentação presente nos dias atuais de uniformização da cultura e sufocamento daquelas que não respeitam o padrão ocidental de valores, o qual se dá o status de ser o único correto para a humanidade se desejamos manter a dignidade da pessoa humana. Ademais, foram apresentados os movimentos de ampliação da representação estatal no âmbito das Nações Unidas e a figuração da sociedade civil como sujeito de Direito Internacional, sendo sua representação realizada, principalmente, pelas ONGs.

Conclui-se que, apesar de o movimento para conferir personalidade jurídica à sociedade civil no âmbito internacional ser legítimo e conferir uma aparência mais democrática e humanística ao Direito Internacional Público, muitas vezes este, através das ONGs que clamam para si o papel de representar a sociedade civil, ao invés de proteger a democracia e a liberdade de expressão de todos os indivíduos, bloqueia suas falas, vez que elas não estão de acordo com a ideologia liberal dominante, mas seguem visões religiosas e tradicionalistas, as quais também devem ser ouvidas, pois não deixam de representar parte significante da sociedade civil.

A representação estatal nas Nações Unidas revela-se um meio para tanto, pois permite o diálogo entre as diferentes nações sobre diversos assuntos, flexibilizando seus entendimentos sem sufocar a cultura do outro. Assim, as ONGs devem reconhecer sua limitação na questão representativa a fim de exercerem um trabalho mais honesto dentro do sistema das Nações Unidas, além de reconhecer que sua animosidade irrefletida a culturas tidas como opressoras para os valores ocidentais é reflexo do absolutismo cultural. Antes de tudo, deve ser ofertado às populações às quais pertencem essas culturas o meio de manifestar por conta própria suas opiniões e pensamentos, a fim de que seus verdadeiros desejos sejam respeitados. Permitir que a Arábia Saudita integre a Comissão sobre o Status da Mulher da ONU é, antes de mais nada, abrir um desses meios.

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Sobre a autora
Carolina de Carvalho Byrro

Defensora Pública do Estado da Bahia. Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Pós-graduada em Direito Público e Direito Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Pós-graduanda em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade CERS, em parceria com o Curso CEI e Introcrim. Aprovada no III Concurso para a Carreira de Defensora Pública da Defensoria Pública do Estado de Goiás e no VIII Concurso para a Carreira de Defensora Pública da Defensoria Pública do Estado da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BYRRO, Carolina Carvalho. Multiculturalismo, sociedade civil como sujeito de direito internacional e direito das mulheres:: Arábia Saudita na comissão sobre o status da mulher da ONU. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6833, 17 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96516. Acesso em: 21 nov. 2024.

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