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O estado de coisas inconstitucional e o ativismo judicial do STF

17/03/2022 às 11:20
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O estado de coisas inconstitucional foi decretado pelo Ministro Marco Aurélio durante a pandemia, em vista da situação carcerária precária. Outrossim, o STF tem adotado o ativismo judicial para se pronunciar em temas espinhosos.

O Estado de coisas inconstitucional é uma técnica decisória desenvolvida pela Corte Constitucional da Colômbia, a partir da decisão SU-559, de 6 de novembro de 1997.

Foi adotado pelo STF primeiramente no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347.

A ação foi proposta em 2015 pelo Psol (Partido Socialismo e Liberdade), inspirada no precedente de 1997 da Corte Constitucional da Colômbia e pedia o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional, além de medidas para interromper a violação generalizada de direitos humanos nos presídios, bem como proteger a vida, saúde e dignidade das pessoas encarceradas.

A primeira decisão da Corte Constitucional Colombiana que reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional foi proferida numa ação promovida por diversos professores que tiveram seus direitos previdenciários sistematicamente violados pelas autoridades públicas.

Dentro dos fatores valorados pela Corte Colombiana1 para definir se existe um Estado de Coisas Inconstitucional, destacam-se os seguintes:

I - A vulneração massiva e generalizada de vários direitos constitucionais que afetam um número significativo de pessoas;

II - A prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações para garantir os direitos;

III - A adoção de práticas inconstitucionais, como a incorporação da ação de tutela no procedimento de garantia do direito violado;

IV - A não edição das medidas legislativas, administrativas ou orçamentárias necessárias para evitar a violação de direitos.

V - A existência de um problema social cuja solução compromete a intervenção de várias entidades, exige a adoção de um conjunto complexo e coordenado de ações e exige um nível de recursos que exige um significativo esforço orçamental adicional;

Quando a Corte Constitucional reconhece o Estado de Coisas Inconstitucional, determina aos demais poderes e entidades estatais a adoção de providências no sentido de mitigar e fazer cessar a violação recorrente dos direitos fundamentais.

O reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional pressupõe uma atuação ativista do Supremo Tribunal Federal na medida em que as decisões judiciais vão interferir nas funções executivas e legislativas, com repercussões, sobretudo, orçamentárias.

Confirmando tal assertiva pelo magistério de Carlos Alexandre de Azevedo Campos, temos:

Quando declara o Estado de Coisas Inconstitucional, a corte afirma existir quadro insuportável de violação massiva de direitos fundamentais, decorrente de atos comissivos e omissivos praticados por diferentes autoridades públicas, agravado pela inércia continuada dessas mesmas autoridades, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público podem modificar a situação inconstitucional. Ante a gravidade excepcional do quadro, a corte se afirma legitimada a interferir na formulação e implementação de políticas públicas e em alocações de recursos orçamentários e a coordenar as medidas concretas necessárias para superação do estado de inconstitucionalidades2.

Já o ativismo judicial do STF, bem como a utilização do Estado de Coisas Inconstitucional restou evidenciado na ADPF 347, por brilhantismo do Ministro Marco Aurelio, em plena pandemia COVID-19:

Ante a situação precária e desumana dos presídios e penitenciárias, no que levou o Colegiado Maior, na medida cautelar na arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 347/DF, a concluir pelo estado de coisas inconstitucional, considerada a integridade física e moral dos custodiados, assento a conveniência e, até mesmo, a necessidade de o Plenário pronunciar-se.

De imediato, conclamo os Juízos da Execução a analisarem, ante a pandemia que chega ao País infecção pelo vírus COVID19, conhecido, em geral, como coronavírus , as providências sugeridas, contando com o necessário apoio dos Tribunais de Justiça e Regionais Federais. A par da cautela no tocante à população carcerária, tendo em conta a orientação do Ministério da Saúde de segregação por catorze dias, eis as medidas processuais a serem, com urgência maior, examinadas:

a) liberdade condicional a encarcerados com idade igual ou superior a sessenta anos, nos termos do artigo 1º da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003;

b) regime domiciliar aos soropositivos para HIV, diabéticos, portadores de tuberculose, câncer, doenças respiratórias, cardíacas, imunodepressoras ou outras suscetíveis de agravamento a partir do contágio pelo COVID-19;

c) regime domiciliar às gestantes e lactantes, na forma da Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016 Estatuto da Primeira Infância;

d) regime domiciliar a presos por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça;

e) substituição da prisão provisória por medida alternativa em razão de delitos praticados sem violência ou grave ameaça;

f) medidas alternativas a presos em flagrante ante o cometimento de crimes sem violência ou grave ameaça;

g) progressão de pena a quem, atendido o critério temporal, aguarda exame criminológico; e

h) progressão antecipada de pena a submetidos ao regime semiaberto3.

E por ocasião da pandemia COVID-19, outra ADPF foi proposta, dessa vez pela AMPCON Associação Nacional do Ministério Público de Contas, autuada sob o n. 866 e reivindicando que o Supremo Tribunal Federal reconheça o Estado de Coisas Inconstitucional na saúde do país.

A entidade reclamou que as transferências de recursos no âmbito do SUS deixem de ser feitas com base no artigo 110 do ADCT - Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que instituiu o novo regime fiscal e fixou um teto de gastos para a União, assim como pretendeu a suspensão dos critérios de transferência de recursos estabelecidos pela portaria 2.979/19, do Ministério da Saúde, que fixou um novo modelo de financiamento de custeio da atenção primária na área, tendo em vista que tais medidas resultarão em repasse a maior de recursos para o SUS.

Ademais, a entidade também vindicou a transferência voluntária de recursos adicionais do fundo nacional de saúde, em caráter extraordinário e proporcional ao aumento de necessidade dos entes federados para a contenção da pandemia, bem como a recomposição imediata da perda financeira decorrente da mudança de regra do piso federal em saúde a partir de 2018.

A AMPCON postulou ainda a concessão de liminar para que todos os recursos disponíveis no Fundo Social do Pré-Sal fossem aplicados em ações e serviços públicos de saúde e no financiamento de atividades de ciência e tecnologia que se fizerem necessários ao enfrentamento da pandemia da covid-19.

Sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes; verificou que a ADPF não apresentaria condições processuais indispensáveis à sua tramitação, tendo em vista que a entidade não possui legitimidade ativa para ajuizar ADPF objetivando questionar a constitucionalidade do atual sistema público de saúde do país, visto não possuir relação direta da matéria com os interesses típicos da classe profissional que representa.

O ministro também pontuou que não foi preenchido outro requisito para o cabimento de ADPF´s, qual seja, a subsidiariedade, o que equivale a dizer que esse tipo de ação só será cabível quando não existir qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade a preceito fundamental e no caso em comento, havia a possibilidade do ingresso de ação direta de inconstitucionalidade e ações ordinárias, mandado de segurança e ações populares para postular medidas em relação ao SUS e por isso determinou o seu arquivamento4.

Dessa forma, inegável que o Supremo Tribunal Federal não se encontra divorciado de temas espinhosos que tratam de saúde, políticas públicas e demais temas que envolvam a dignidade da pessoa humana.

As origens do ativismo judicial remontam a Suprema Corte Americana, quando amparou a segregação racial em 1857.

No processo, o escravo Dred Scott tentou fazer valer sua liberdade alegando que havia vivido temporariamente em estados e territórios sem escravos nos Estados Unidos.

O julgamento ocorrido em 1857 sentenciou que as pessoas de ascendência africana, importadas para o país e mantidas como escravas, ou os seus descendentes, quer fossem ou não escravos, não estavam protegidos pela Constituição dos Estados Unidos e nunca poderiam se tornar cidadãos daquele país, bem como decidiu que o Congresso não tinha autoridade para proibir a escravidão nos então territórios federais da União. O tribunal também declarou que, como os escravos não eram cidadãos, não poderiam requerer em tribunais5.

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Nesse espectro, as questões tratadas pelo ativismo judicial são de alta complexidade e são temas que em sua grande parte ainda não foram decididos pelas Casas Legislativas ou se o foram, não da maneira esperada.

O Ministro Luís Roberto Barroso sempre se apresentou como defensor ferrenho do ativismo judicial, pois para ele:

A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário;(ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas6.

Pela docência de Montesquieu, a disposição das leis forma a relação da liberdade com a constituição, mas a relação do cidadão com exemplos recebidos, costumes e maneiras podem favorecê-la.

Somente a disposição das leis, e mesmo das leis fundamentais, forma a liberdade em sua relação com a constituição. Mas, na relação com o cidadão, costumes, maneiras, exemplos recebidos podem fazê-la nascer; e certas leis civis podem favorecê-la7.

Dessa maneira, através do ativismo judicial, a sociedade avança, assim como o direito, uma vez que as decisões prolatadas devem sempre se basear em racionalidade, motivação, correção e justiça.

Foi justamente através do ativismo judicial do STF que se fez possível a adoção de medidas igualitárias para grupos vulneráveis, tais como a comunidade LGBTQIA+, mulheres, negros e índios.

O ativismo judicial se mostra como um avanço na medida em que temas que antes eram excluídos da apreciação pelo Legislativo tornam-se direitos reconhecidos pelo STF.


Notas

  1. Corte Constitucional da Colômbia. Sentença T-025/04. Disponível em: <https://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2004/t-025-04.htm>. Acesso em 28 de setembro de 2021.

  2. CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. O estado de coisas inconstitucional e o litígio estrutural. Revista Consultor Jurídico, 01/09/2015, Seção Opinião. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural#author>. Acesso em 28 de setembro de 2021.

  3. Tutela provisória incidental na arguição de descumprimento de preceito fundamental 347 STF, 17/03/2020, Distrito Federal. Disponível em: <https://apublica.org/wp-content/uploads/2020/03/adpf-347-tpipdfpdf.pdf>. Acesso em 28 de setembro de 2021.

  4. Ministro arquiva processo que pedia declaração de "estado de coisas inconstitucional". Revista Consultor Jurídico, 21/07/2021, Seção Política e Saúde. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-jul-21/arquivada-acao-estado-coisas-inconstitucional-saude> Acesso em 28 de setembro de 2021.

  5. Caso Dred Scott. Wikipedia, 26/02/2021. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Dred_Scott> Acesso em 28 de setembro de 2021.

  6. BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Suffragium - Revista do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará, Fortaleza, v. 5, n. 8, p. 11-22, jan./dez. 2009. p.14. Disponível em:<https://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/handle/bdtse/5498> Acesso em 28 de setembro de 2021.

  7. Montesquieu. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.197.

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Sobre a autora
Ana Carolina Rosalino Garcia

Advogada graduada em Direito pela Universidade Paulista (2008). Membro da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo desde 2009. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Possui MBA em Administração de Empresas com Ênfase em Gestão pela Fundação Getúlio Vargas - FGV / EAESP - Escola de Administração de Empresas de São Paulo. Pós-graduada em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Ana Carolina Rosalino. O estado de coisas inconstitucional e o ativismo judicial do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6833, 17 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96605. Acesso em: 28 mar. 2024.

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