Capa da publicação Graça a Daniel Silveira: Quem é o guardião da Constituição?
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Quem é afinal, o guardião da Constituição?

26/04/2022 às 20:15
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A graça concedida ao deputado Daniel Silveira levanta debates que fazem lembrar do embate de Carl Schmitt e Hans Kelsen sobre quem é o guardião da Constituição.

A graça concedida pelo presidente Jair Bolsonaro ao deputado Daniel Silveira tem levantado uma série de questionamentos.

Alguns juristas apontam crime de responsabilidade, por sua vez, o ex-ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, no entanto, argumenta que o presidente da república está exercendo o mandato para o qual foi eleito e assim, não há que se falar em crime ou afronta à Constituição.

Essa posição adotada pelo ministro Marco Aurélio é perfilhada pelo jurista alemão Carl Schmitt.

Em 20 de julho de 1932, o chanceler Franz von Papen, da República de Weimar, fez uso do decreto de emergência previsto na Constituição. Esse decreto permitia destituir o governo da Prússia, de forma que o social-democrata Oto Braun restaurasse a ordem na Prússia, o então maior estado da Alemanha.

O estado de emergência estava previsto no artigo 48 da Constituição de Weimar e obrigava os estados da Alemanha a cumprirem obrigações para com o Reich, nem que fosse necessário o uso da força.

Para proteger e restaurar a ordem pública, era defeso ao presidente toda a sorte de medidas que se fizessem necessárias.

O último parágrafo do artigo 48 também previa que caberia ao presidente informar o parlamento, o Reichstag, imediatamente, após qualquer tipo de medida tomada com base no artigo 48, assim como devia suspender qualquer tipo de decisão se assim o Reichstag entendesse.

Contudo, desde 1930, a Alemanha era governada na base de decretos emergenciais e os partidos do Reichstag não tinham a maioria para suportar um governo parlamentar, de modo que sua atuação era limitada, o chanceler dependia mais do presidente do que do parlamento.

O partido de von Papen, assim que ganhou as eleições foram rápidos em se livrar da figura de um presidente e dissolver o parlamento, o que abriu caminho para Hitler.

A resistência da Prússia à decisão de von Papen foi levada à Corte de Justiça de Leipzig, a maior corte cível e criminal da República de Weimar, que entendeu que o governo federal não teria o poder de destituir todos os ministros da Prússia e tomar todas as competências do governo prussiano para si, ao mesmo tempo em que interpretou que as medidas em face da Prússia eram justificadas porque objetivava proteger a segurança pública e por isso, se negou a intervir no conflito.

Nesse momento começam a ganhar corpo duas correntes jurisprudenciais, a de Carl Schmitt e a de Hans Kelsen.

Carl Schmitt entendia que o guardião da constituição era o chefe do Executivo e não a Corte Constitucional.

Já Hans Kelsen argumentava que o guardião da constituição era a Corte Constitucional, um tribunal que teria poderes para invalidar atos inconstitucionais emanados do Legislativo, assim como controlar os atos oriundos deste último.

A Constituição de Weimar não previu a formação de uma corte constitucional e a Corte de Justiça de Leipzig não tinha status de tribunal constitucional porque não possuía autoridade de anular e rever decisões inconstitucionais e atos do governo.

Kelsen foi juiz do Tribunal Constitucional Austríaco de 1920 a 1929, e ajudou a desenvolver a Constituição austríaca de 1920, desenhando a ideia de hierarquia entre as normas.

Para ele, a Constituição é a lei mais importante de um país e uma garantia constitucional apenas poderia ser oferecida pela Corte Constitucional, que teria poderes de não só anular normas inconstitucionais, mas também atos inconstitucionais do governo.

A Corte Constitucional também seria importante para a democracia, para proteção das minorias contra uma eventual ditatura da maioria o temor de Tocqueville em uma democracia.

Carl Schmitt em 1920 foi uma das figuras centrais dos debates acalorados acerca da Constituição de Weimar e Tratado de Versalhes porque para ele a assinatura do documento mantinha a Alemanha fraca e contida no seu sentir era preciso uma nova lei internacional que equilibrasse os poderes das nações e que o princípio de igualdade de soberania fosse reestabelecido.

Schmitt passou a maior parte da Primeira Guerra Mundial no Ministério de Guerra da Baviera censurando propaganda estrangeira, antes de se ver na guerra Civil que eclodiu em Munique em 1919, depois que anarquistas instituíram uma República de Conselhos.

Em um dado momento, revolucionários comunistas entraram no escritório onde Schmitt estava trabalhando e atiraram em um oficial que estava ao seu lado.

Foi justamente depois desse episódio que o advogado público que até então se mostrava apolítico, optou por defender o Estado contra as massas revolucionárias.

Schmitt rebatia os argumentos de Kelsen no sentido de que uma Corte Constitucional poderia ser forçada a tomar decisões políticas, o que não lhe competia, para justificar a aplicação de determinadas normas.

Tudo o que, de alguma forma, for de interesse público, é de alguma forma político e nada do que diz respeito essencialmente ao Estado pode ser despolitizado. A fuga da política é a fuga do Estado[1].

E dessa maneira, a Corte Constitucional violaria a separação de poderes. No livro Lei e Juízo, de 1912, Schmitt já defendia que o juiz interpreta a lei. Para ele, em casos fáceis o juiz decidiria conforme a lei, mas em casos difíceis, julgaria de acordo com a "determinidade do direito", o que equivaleria a dizer que um juiz decidiria como outro juiz.

A previsibilidade da decisão resultaria da responsabilidade do juiz que deveria decidir pensando em justificar a sua decisão para um outro juiz. "Uma decisão judicial é hoje correta quando se deve assumir que um outro juiz teria decidido do mesmo modo. "Um outro juiz" significa aqui o tipo empírico do moderno jurista erudito"[2]

Carl Schmitt visualizava o presidente em uma posição neutra, a Constituição de Weimar o colocou nesta posição, de modo que o presidente é quem deveria assumir o poder legislativo em caso de disfunção.

Conforme o direito positivo da Constituição de Weimar, a posição do presidente do Reich, eleito pela totalidade do povo, só pode ser construída com a ajuda de uma teoria mais desenvolvida de um poder neutro, intermediário, regulador e preservador. O presidente do Reich está munido de poderes que o tornam independente dos órgãos legislativos, embora esteja vinculado, simultaneamente, à referenda dos ministros dependentes da confiança do parlamento.[3]

Kelsen vai responder ao livro de Carl Schmitt, escrevendo o texto Quem deve ser o guardião da Constituição, pontuando que a visão de Schmitt é perigosa e beira a autocracia.

Guardião da Constituição: no sentido original da palavra, significa um órgão cuja função é proteger a constituição contra violações. Fala-se, portanto, também e geralmente com uma "garantia" da constituição[4].

E vai mais além ao dizer que "em particular, não há razões suficientes para considerar a independência do chefe de Estado eleito como mais forte ou mais segura do que a de juízes e oficiais"[5].

Para Benjamin Constant, o poder do monarca seria neutro, ao passo que o poder dos ministros seria ativo, de maneira que o monarca não poderia agir no lugar dos outros poderes e isso diferenciava um monarca absolutista de um constitucional.

Constant partia do pressuposto que o poder real e o executivo fariam as leis, o poder executivo seria confiado aos ministros e executaria as leis, o judiciário afeto aos tribunais aplicaria as leis, de maneira que o monarca teria interesse em manter o equilíbrio entre os poderes.

Certo é que a França queria se ver livre da monarquia e essa transição da monarquia absolutista para a constitucional seria um grande passo para isso, e os monarcas, por outro lado, com medo de perder o poder, consentiam com essa monarquia constitucionalista, mais avançada que o absolutismo. Benjamin Constant teve papel relevante na Revolução Francesa.

Assim, quando os representantes da teoria constitucional do século XIX, orientadas para o chamado "princípio monárquico", propuseram a tese de que o "guardião da constituição" era o monarca - uma das muitas ideologias cujo sistema forma a chamada doutrina constitucional, através da qual esta interpretação constitucional procura ocultar a sua tendência fundamental: compensar a perda de poder que o chefe de Estado experimentaria através da transição da monarquia absoluta para a monarquia constitucional[6].

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Kelsen vai argumentar que o monarca, por essa teoria, é o órgão máximo do poder estatal e faz parte do poder legislativo, que é dele, e não do parlamento.

Schmitt vai dizer que um tribunal sentenciador somente pode ser entendido como guardião da constituição quando for protegido contra o Estado direitos fundamentais do Estado de direito civil, liberdade pessoal e propriedade privada, que devem ser protegidos pelos tribunais ordinários em face do Estado.

Carl Schmitt entendia que a Constituição de Weimar se autodestruiu porque não só permitia emendas, mas também sua revisão. E então para evitar um suicídio democrático, a Constituição da República Federal incluiu um artigo, chamada clausula de eternidade, vedando a possibilidade de revogar princípios fundamentais (MULLER, 2003: p.65).

O jurista alemão Bernhard Schlink, em seu ensaio Why Carl Schmitt vai explicar:

Uma emenda pode de fato mudar a identidade de uma constituição - transformando uma república em uma monarquia, um estado-federado em um centralizado, um estado com direitos fundamentais em um sem. Schmitt se opôs a essa flexibilidade. Ele afirmou que o poder de mudar a constituição surge da própria constituição e como tal, está em dívida aos seus princípios. De acordo com Schmitt, mudar a identidade da constituição não mais equivaleria a uma simples amenda, isso invalidaria a constituição[7].

Schmitt também influenciou a área de direitos básicos na Alemanha. Sua visão contribuiu para o fato de que hoje, todos os direitos básicos envolvem direitos individuais e responsabilidade do estado a criar um ambiente de proteção para esses direitos. A compreensão de Schmitt no que tange às garantias de liberdade também são importantes. De acordo com Schmitt, esses direitos (de liberdade) devem ser entendidos como um princípio distributivo. A distribuição é tal que no reino do indivíduo a liberdade é ilimitada, enquanto as possibilidades de intervenção do estado são limitadas, mensurável e controlável. (SCHLINK, 1996: p.430).

O jurista alemão Dieter Grimm, que foi juiz do Tribunal Constitucional Alemão diz que constituições dependem de condições que elas não podem criar, tais como Tribunais Constitucionais fortes.

Para ele, é importante que um Tribunal Constitucional tenha validação da sociedade, a fim de que fortaleça a Constituição, feita pelo povo e para o povo.

A sua opinião é de que todo populismo traz consigo um negacionismo, tanto da esquerda quanto da direita e se a Constituição de um país sobreviverá ao populismo, depende do quanto o populismo está arraigado na Constituição.

Através do populismo, políticos são alçados ao Parlamento e alteram constituições da forma que querem para que seus objetivos sejam alcançados, e não necessariamente tais objetivos estarão em sintonia com o que o povo espera desses governantes populistas, visto que estão lá para seguirem suas próprias agendas e não as do povo.

Nos artigos anteriores sobre Carl Schmitt, é possível verificar que ele já se preocupava com essas questões, o quanto desafiavam a democracia e um governo do povo, para o povo.

De fato, o Supremo Tribunal Federal é o guardião da interpretação constitucional e não se sabe como agirá nesse caso do deputado Daniel Silveira. Eventual anulação do decreto poderia validar a narrativa de interferência em outros poderes. Não anulando, corre o risco de ser considerado um tribunal fraco em momentos de crise.

Inegável que, com tudo isso, quem perde é o povo brasileiro, visto que estamos em um período de alta inflação, forte desemprego, e a maior economia da américa latina encontra-se mergulhada em situações que em nada aliviam a conjuntura atual.


  1. SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição, Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p.161.
  2. SCHMITT, Carl. Gesetz und Urteil: Eine Untersuchung zum Problem der Rechtspraxis. Berlin: Verlag von Otto Liebmann, 1912, p. 71.
  3. SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição, Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p.201.
  4. KELSEN, Hans. Wer sol der Hüter der Verfassung sein? Berlin-Grunewald: C. Schulze & Co, G.m.b.H., 1931, p.5.
  5. Ibidem, p.45.
  6. Ibidem, p.6.
  7. MULLER, Jan-Werner. A Dangerous Mind: Carl Schmitt in Post-War European Thought. London: Yale University Press, 2003.
  8. SCHLINK, Bernhard. Why Carl Schmitt? 1996, Disponível em: <https://de.booksc.org/book/9555690/be09e7> Acesso em 20 de dezembro de 2021, p.429.
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Sobre a autora
Ana Carolina Rosalino Garcia

Advogada graduada em Direito pela Universidade Paulista (2008). Membro da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo desde 2009. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Possui MBA em Administração de Empresas com Ênfase em Gestão pela Fundação Getúlio Vargas - FGV / EAESP - Escola de Administração de Empresas de São Paulo. Pós-graduada em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Ana Carolina Rosalino. Quem é afinal, o guardião da Constituição?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6873, 26 abr. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97499. Acesso em: 7 out. 2024.

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