Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/12614
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A mudança de nome e sexo do transexual e os seus reflexos na Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73)

A mudança de nome e sexo do transexual e os seus reflexos na Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73)

Publicado em . Elaborado em .

O STJ vem seguindo a visão moderna sulista, adotando a retificação registral com ressalvas, o que é bastante discutível e foco deste trabalho. Será que a ressalva constante da certidão de nascimento estaria protegendo o transexual?

1- Introdução

O presente trabalho tem por objetivo analisar a possibilidade ou não de alteração do sexo e do nome do transexual, à luz da Lei dos Registros Públicos (Lei nº 6.015/73). A tendência atual é para a aplicação dos princípios constitucionais diante da omissão legislativa de 1973.

Também é objetivo deste trabalho estudar a evolução doutrinária e jurisprudencial acerca do tema, partindo-se da posição mais tradicionalista, inviabilizando-se qualquer alteração, para a mais moderna em que se admitem as alterações, observando-se o caso concreto, aplicando-se a ponderação principiológica proposta por Alexy.

Alguns resistem em dar solução ao problema, pois os terceiros que se envolveriam com o transexual poderiam ser lesados, sendo este o posicionamento do tribunal de Minas.

Por outro lado, o STJ vem seguindo a visão moderna sulista, adotando a retificação registral com ressalvas, o que é bastante discutível e foco deste trabalho. Será que a ressalva constante da certidão de nascimento estaria protegendo integralmente o transexual? Eis aí uma discussão que tende a avultar nos nossos tribunais.

Trata-se ainda da visão processualista civil do manejamento da ação judicial para retificação do nome e sexo registral do transexual.

A Carta Magna prega a felicidade de todos, sendo esse o objeto de proteção do Estado. Não há espaços para tratamentos discriminatórios no ordenamento jurídico. Diante disso, surge a questão: como solucionar diante da omissão do legislador de 1973?


2 - O direito ao nome civil no Código Civil de 2002

O nome civil é um direito de identificação da pessoa, consagrado no art. 16 do Código Civil de 2002; e é composto pelo prenome - que designa cada membro da família, e sobrenome - que identifica o nome da família.

É obrigatória a atribuição de nome à criança, conforme dispõe o art. 50 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, cabendo aos pais a escolha do nome individual; aplica-se, nesse aspecto, o princípio da liberdade. Quanto ao nome de família, prevalece o princípio da veracidade.

São características do nome ser indisponível, imprescritível, inalienável, incessível, inexpropriável e irrenunciável.

O direito ao nome é híbrido, apresentando dois elementos: o público e o privado. O primeiro tem como regra a imutabilidade. Todos os seres humanos têm direito ao nome com o intuito de identificação, visando a atender ao interesse social de segurança. Já o elemento privado do nome é atributo da personalidade, é construção da autonomia da pessoa humana e, portanto, tende à mutabilidade, pois não podemos ser escravos do nome.


3 - O princípio da mutabilidade relativa do nome

A Lei nº 6.015/73 - Lei de Registros Públicos - LRP - adotou o critério da imutabilidade do nome como regra, sendo admitida a mutabilidade apenas em casos excepcionais trazidos pela doutrina. Eis o que dispõe o art. 58 dessa Lei:

Art. 58 - O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios.

(caput com redação dada pela Lei nº 9.708, de 18/11/1988).

Os professores Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2007, p. 174-175) elencam as possibilidades legais de alteração do nome civil:

- Quando expuser o titular ao ridículo ou à situação vexatória, bem como se tratando de nome exótico (LRP, art. 55, parágrafo único);

- quando houver erro gráfico evidente, caracterizado, e.g., por equívocos de grafia;

- para incluir apelido notório (art. 58 e parágrafo único; LRP).

- pela adoção (ECA, art. 47, § 5º e CC, art. 1627);

- pelo uso prolongado e constante de nome diverso(...);

- quando ocorrer homonímia depreciativa, gerando embaraços profissionais ou sociais;

- pela tradução, nos casos em que foi grafado em língua estrangeira; (fls. 174-175, Direito Civil, Teoria Geral, Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald, 6. ed., Lumen Júris, Rio de Janeiro, 2007).

O art. 56 da LRP possibilita a mudança do nome após a maioridade, até o indivíduo completar 19 anos. O exercício desse direito potestativo não pode prejudicar apelidos de família. Trata-se de única possibilidade de alteração do nome imotivada.

Nesse sentido se apresenta a doutrina do Professor Walter Ceneviva (2006), que segue a linha da imutabilidade como regra, admitindo alterações só nesses casos específicos. Nesse contexto, é relevante ressaltar que "o prenome, porém, deve ser definitivo, embora possa, por exceções motivadas, sofrer modificação em juízo, ouvido o Ministério Público". (CENEVIVA, 2006, p. 143).

Ceneviva (2006, p. 153) afirma, ainda, que

(...) A imutabilidade do prenome é clássica no direito brasileiro, pois o art. 58 subsistiu quase intocado na redação que lhe foi dada pelo Regimento nº 18.542, de 1928. Sofreu, porém, radical modificação, para pior, com a Lei nº 9.708⁄98, que, em lugar de ter o prenome por imutável, passou a afirmá-lo definitivo. A definitividade não conduz a interpretação diversa da que cabia para o texto anterior, pois alude à permanência do prenome, como regra. O vocábulo definitivo não tem, no caput, o significado de absoluto, final, como se colhe da leitura integral do artigo e de alternativas de mudanças inseridas na própria lei nos arts. 56 e 57. (...) .

Por outro lado, tem-se admitido a alteração do nome não só no que tange ao permissivo legal acima delineado, diante da complexidade social e da ausência de lei para solução dos inúmeros conflitos sociais, cabendo ao julgador o papel de intérprete do ordenamento jurídico, conforme o caso concreto.

O doutrinador Pontes de Miranda (1971, p. 284) critica o princípio da imutabilidade do prenome, afirmando que a função identificadora do nome não bastaria para considerá-lo imutável e inalterável. Para esse autor, não há um princípio jurídico de imutabilidade do prenome e sobrenome, tratando-se de uma regra jurídica adotada pelo nosso sistema.

Eis a orientação dos professores Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2007, p. 180) sobre a mutabilidade do nome civil:

(...) o princípio da inalterabilidade relativa do nome implica a possibilidade de o juiz modificar o nome (seja o prenome, seja o sobrenome) em casos justificáveis, na defesa da proteção integral da personalidade humana, independentemente de previsão legal. .

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais já se pronunciou sobre a possibilidade de alteração, principalmente quando o nome causa distúrbios psicológicos na pessoa, conforme o voto do Desembargador Wander Marotta, corroborando a nova visão hermenêutica:

o excessivo apego à lei pode levar, neste caso, a uma injustiça, ou à aplicação exacerbada do conceito corrente de justo, que nem sempre coincide com a regra jurídica. (...) ‘sentir’ e ‘compreender’ também é fazer hermenêutica. Talvez seja a melhor forma de ‘interpretar’. Sentir o drama humano; compreender que a lei não possui uma vontade única, mas várias vontades, que o intérprete, na complexidade da vida, tentará aplicar na realização do mais justo. (AC 1.0000.00.289.475-6-001, TJMG, publicação 01-04-2004, julgamento 30-09-2003, relator, Belizário de Lacerda)

Segundo Rubens Limongi França, citado nesse Acórdão, a jurisprudência não só humaniza como rejuvenesce a norma jurídica a ser aplicada ao caso concreto:

Uma coisa é a lei no papel, nas páginas indiferentes do Diário Oficial, mera cristalização fria, inflexível e despersonalizada de um ideal jurídico; outra é a lei analisada, atividade humanizada e adaptada pelos julgados. É quando as imprecisões se evidenciam, as incongruências emergem, as asperezas se realçam e as falhas se tornam patentes.

("Da Jurisprudência como Direito Positivo", Revista da Fac. de Direito da USP, LXVI, 1971, p. 221). (AC 1.0000.00.289.475-6-001, TJMG, publicação 1º/1/04, julgamento 30/9/03, Relator: Belizário de Lacerda)


4 - Teoria da Argumentação. Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade

Segundo a Teoria Qualitativa de Alexy (1997, p. 83), as normas diferem dos princípios pela qualidade da resolução dos conflitos e não se desenvolvem a partir de uma perspectiva estática. Diante do momento de resolução do conflito é que se verifica se se trata de regra ou princípio.

Para Alexy, a solução dos conflitos está nas regras de exceção. As regras são específicas, e os princípios são gerais, abarcam uma gama de situações. A ponderação dos princípios deve se dar no caso concreto, situação em que se devem verificar os aspectos jurídicos, sociais e morais.

A proposta desse estudioso é que os conflitos sejam solucionados com base na argumentação, na razoabilidade e na ponderação dos princípios.

Para Alexy, princípios são mandados de otimização no sentido de que algo deve ser concretizado da melhor forma possível, podendo ser cumpridos, portanto, em diferentes graus, ao passo que as regras são dotadas de uma estrutura fechada, cumpridas ou não; e, se válidas, essas devem ser aplicadas em seus exatos termos [01].

Dessa forma, a solução do conflito de regras opera-se no campo da validade ou da invalidade, em razão da objetividade decorrente desse tipo de norma, conquanto, no sistema aberto dos princípios, não haja espaço para a subsunção direta do fato à norma, haja vista ser da natureza dos princípios a amplitude do seu raio de ação. Dessa forma, busca-se a razoabilidade, e não a racionalidade.

Os princípios alcançam um campo de atuação mais abrangente do que as regras, pois se espraiam por todo o ordenamento jurídico, vinculando o aplicador intérprete a determinada diretriz.

Na antinomia entre regras, a conflitante é extirpada do ordenamento jurídico em função de sua incompatibilidade com outra que esteja situada no mesmo plano de validade por meio de critérios estabelecidos em cada ordenamento jurídico: o critério hierárquico - "lex superior derogat lex inferiorem" -; o critério da especialidade -" lex specialis derogat generalem"-; e o critério cronológico – "lex posterior derogat priorem".

Na antinomia entre princípios, o aplicador do direito faz opção por um dos princípios de acordo com o seu peso e a sua importância, de modo que o outro não seja excluído do sistema, podendo ser aplicado a outras hipóteses fáticas.

Na verdade, na ocorrência de colisão de princípios, o que há é uma precedência condicionada de acordo com elementos extraprincipiológicos, como fatos, regras, circunstâncias sociais e culturais, de forma que haja pesos que devem ser considerados no momento da escolha do princípio a ser aplicado.

Marcelo Galuppo, na obra que trata sobre a teoria de Alexy, demonstra, de forma peculiar, o sistema da ponderação ora analisado, conforme se observa do excerto a seguir transcrito:

Isso significa que o conflito de regras se dá na dimensão da validade, e o de princípios na dimensão do peso (Alexy, 1993b:89 e 91). Essa idéia de peso significa que o conflito entre princípios será resolvido tendo em vista uma hierarquização dos mesmos. Não se trata de uma hierarquização tendo-se em vista o caso concreto, realizada pelo procedimento da ponderação dos princípios envolvidos na situação. A ponderação, como concebida por Alexy, refere-se a ‘qual dos interesses, abstratamente do mesmo nível, possui maior peso no caso concreto’ (Alexy, 1993b:90). Como já disse, essa precedência condicionada não é absoluta, cuja determinação "consiste em que, tomando-se em conta o caso, indiquem-se as condições sob as quais um princípio precede a um outro. Sob outras condições, a questão da precedência pode ser solucionada inversamente’ (Alexy, 1993b:92)" [02].

Na solução dos conflitos, em que não há resposta no quadro proposto pelo legislador infraconstitucional, cabe ao julgador não só aplicar, mas interpretar o ordenamento jurídico, conforme o caso concreto, fazendo jus à técnica da ponderação, com fulcro nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Nessas situações, a solução mais racional e legítima é a que realiza a vontade constitucional.


5 - Discussões sobre a possibilidade de mudança do estado civil do transexual.

A visão dogmática do direito registral encontra entraves na hermenêutica contemporânea, tendo em vista que a sociedade atual é aberta, plural, porosa, multifacetária e globalizada. Dessa forma, rompe-se o prisma individualista e patrimonialista, configurando-se como fim maior do ordenamento jurídico o ser humano, ou seja, este deve ser protegido, respeitando-se as diferenças.

A mudança do nome e sexo do transexual, no Registro Civil, é um caso complexo, alvo de grandes discussões não só no cenário da medicina, mas nos diversos tribunais brasileiros, o que merece uma análise doutrinário-jurisprudencial diante do conflito entre princípios constitucionais e infraconstitucionais.

De fato, não se pode resolver tal conflito conforme a subsunção perfeita entre a norma e o caso concreto; inexistindo lei que preveja a possibilidade de mudança de nome e de sexo para o transexual na LRP, configura-se patente o conflito entre a legalidade estrita da LRP e as normas constitucionais e infraconstitucionais, a dignidade da pessoa humana, o interesse público, além dos princípios que norteiam a atividade do notário e registrador, que são a fé pública e a segurança jurídica dos documentos confeccionados por esses delegatários.


6 - Os princípios constitucionalistas

O direito civil contemporâneo é interpretado à luz da atual Constituição do Brasil, rompendo com o sistema tradicional patrimonialista e individual, que não reflete a sociedade atual pluralizada, e tem como foco o ser humano como sujeito de direitos e não mais como objeto de proteção jurídica.

Esse direito apõe seu olhar na defesa e proteção do ser humano em sua integralidade, visando à pacificação dos conflitos, de forma a atender ao princípio da dignidade humana insculpido no Texto Magno.

É sabido que a República Federativa do Brasil, de cunho democrático, pugna pelo respeito à diversidade, observando-se que a dignidade humana precede a toda a ordem social. Tal princípio é uma qualidade inerente, indissociável de todo e qualquer ser humano, relacionando-se com a sua autonomia, razão e autodeterminação de cada indivíduo (art. 1º, III, CR/88). É a autonomia que transforma o indivíduo em pessoa, sendo o ser humano o meio e o fim da existência do próprio Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, assim dispõe a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948:"Todos seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade".

Não há contradição entre os princípios de que os valores de realização individual tenham um grau hierárquico superior aos da primazia do bem-estar coletivo geral. Uma coisa são as condições essenciais para a realização dos valores da pessoa humana, e outra são os valores egoísticos de um indivíduo.

Em se tratando de direitos fundamentais, não há respostas certas, dependendo do caso concreto. Trata-se de direitos irrenunciáveis. Atualmente, conforme entendimento do STF, aplica-se, nas relações entre particulares, a eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais, ou seja, independe da existência de lei; os princípios fundamentais podem ser aplicados às relações entre particulares, consagrando-se a eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

Os princípios não são absolutos, sendo que os conflitos serão resolvidos conforme o caso concreto, adotando-se a ponderação.

O princípio da dignidade humana tem o aspecto negativo - que diz respeito à abstenção dos particulares e Poder Público. Segundo Kant, a dignidade é o que diferencia o ser humano do animal, sendo que o ser humano não pode ser tratado como instrumento, objeto, principalmente quando esse tratamento for fruto de desprezo.

O segundo aspecto é o positivo, que está ligado ao mínimo existencial, sendo que o Estado deve proporcionar os meios necessários para a existência digna.

Como solucionar a colisão de princípios relativa à autonomia da vontade, que tem fundamento no art. 1º, IV, da CR/88, e o da dignidade humana?

Sob essa perspectiva de colisão de princípios, deve-se verificar se é possível harmonizá-los. Não sendo possível, o Judiciário intervém para definir qual o princípio que deve prevalecer, orientado pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Conforme o caso concreto, um irá prevalecer em detrimento do outro.


7 - Os princípios da atividade do oficial registrador

A fé pública conferida ao oficial registrador diz respeito à verdade daquilo que atesta. O termo fé significa crença, crédito, confiança, testemunho autêntico, sendo a fé pública a qualidade e a autoridade do que se atesta, conforme outorga de poderes conferidos pelo Estado, sendo o registrador agente da paz social, prestigiando-se a segurança jurídica.

A autenticidade é a declaração de veracidade dos documentos apresentados ao registrador ou notário. O registro tem presunção relativa de verdade, é retificável, modificável.

Quanto à segurança jurídica, é a realização do Direito e é obrigação do registrador, como profissional do direito, assegurar a idoneidade técnica, satisfazendo os clamores sociais por informação e assessoramento frente a um direito cada vez mais complexo.

O serviço registral tem como função assegurar a publicidade erga omnes dos atos jurídicos conferidos ao oficial delegatário. Sobre esse aspecto, eis o escólio de Renan Lotufo (2003, p. 43):

(...) a publicidade não implica que todos saibam dos fatos registrados, mas sim que todos tenham possibilidade de vir a conhecer dos atos e fatos.

Tais princípios estão consagrados no art. 1º da Lei nº 8.935/94 - Lei dos Notários e Registradores:

Art. 1º - Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.

A atividade dos notários e registradores tem por fim garantir às pessoas - físicas ou jurídicas - o direito que lhes corresponde, tendo os atos jurídicos a natureza jurídica constitutiva ou declaratória.

Sobre a função de garantia conferida à atividade dos notários e registradores, assim se manifesta o estudioso Walter Ceneviva (2007, p. 26):

A garantia referida é, ainda, própria do serviço público. Gera responsabilidade para o Estado e para os titulares dos respectivos serviços em caso de dano aos terceiros que nelas confiarem.


8 - A cirurgia de transgenitalização

O transexual é o indivíduo que apresenta uma dissonância entre o corpo e a psique, podendo apresentar-se com o corpo feminino e o psicológico masculino e vice-versa.

O transexualismo é uma doença genética incurável prevista na Classificação Internacional de Doenças (CID 10 - F640) e provocada por defeito cromossômico ou fatores hormonais, sendo a cirurgia de transgenitalização a terapêutica para a adequação do sexo biológico de nascimento ao sexo psicossocial.

Diante disso, foi editada a Resolução do CFM nº 1.652⁄02, que revoga a Resolução nº 1.482⁄97 e determina que o transexual seja tratado como um caso médico, devendo preencher os seguintes requisitos para a realização da cirurgia de transgenitalização:

Art. 4º - Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo os critérios abaixo definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto:

1) Diagnóstico médico de transgenitalismo;

2) Maior de 21 (vinte e um) anos;

3) Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia. (www.mp.ba.gov.br pesquisa realizada no dia 10/10/08).

O Enunciado nº 276 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal - CJF - autoriza a cirurgia de transgenitalização em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina - CFM - e a conseqüente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil. (www.flaviotartuce.adv.br⁄secoes⁄enunciados⁄EN-IVJOR_CN.doc, consulta realizada no dia 10/11/08).

A medicina legal não mais admite o conceito do sexo fora da visão plurivalente, composto de fatores genéticos, somáticos, psicológicos e sociais. Em interessante digressão, Elimar Szaniawski (1999, p. 44-45) afirma que

(...) o transexual não redesignado vive em situação de incertezas, de angústias e de conflitos, o que lhe dificulta, senão o impede, de exercer as atividades dos seres humanos. Desse modo, a alteração do prenome para o sexo biológico e psíquico reconhecido pela medicina e pela justiça harmoniza-se com o ordenamento, não só com a Constituição, mas também com a lei dos Registros Públicos, não conflitando com seu artigo 58.


9 - A posição doutrinária conservadora

Verifica-se uma resistência da doutrina conservadora brasileira em admitir a mudança de nome e sexo do transexual, pois o registro deve ser preciso e regular, constituindo a expressão da verdade. Para essa corrente, a operação de mudança de sexo atribui ao interessado um sexo que não tinha nem poderá ter, não se atingindo o fim da procriação, não havendo que se falar em homem ou mulher.

Para ilustrar o disposto, colacionam-se as explanações dos professores Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barbosa e Maria Celina Bodin de Moraes (2007):

(...) A resistência maior diz com a retificação do registro de sexo, sob o argumento de que a cirurgia seria apenas cosmética, operando, uma transformação apenas aparente, sem realizar uma verdadeira mudança de sexo, uma vez que não haveria alteração nos órgãos internos.

Há uma corrente doutrinária intermediária à qual se filiam Caio Mário da Silva Pereira, Luíz Flávio Borges D’Urso, que admitem a retificação do registro, desde que haja referência às informações anteriores à realização da cirurgia de transgenitalização.

Eis o que considera o estudioso Luíz Flávio no artigo O Transexual, a Cirurgia e o Registro, na Revista Jurídica Síntese:

(...) poder-se-ia admitir a retificação do registro para o sexo aparente, desde que ficasse consignado o sexo, nome e demais informações anteriores que foram retificadas. Ao que parece, tal medida não impediria o constrangimento que se tenta evitar, mas continuaria a garantir nosso sistema, dando segurança a seus registros!


10

A contrario sensu, observa-se uma tendência à mitigação desse entendimento conservador, pautando-se os argumentos nas garantias constitucionais da dignidade humana, cuja interpretação deve considerar o ser humano integral, agregando-se o estado psíquico, objeto de proteção estatal. Assim sendo, faz-se necessária a mudança de nome e de sexo do transexual para a devida adequação à realidade vivenciada por ele, pois é papel do legislador constituinte a satisfação precípua da felicidade geral estatuída no art. 3º, III, da Carta Magna vigente.

Para a jurista Maria Berenice Dias (2006, p. 120), a sexualidade humana é plurivetorial; não diz respeito apenas ao aspecto biológico (instrumental), mas a aspectos somáticos, psicológicos e sociais, sendo papel do direito abarcar o aspecto plural do ser humano, nestes termos: "(...) Como os fatos acabam se impondo ao Direito, a rigidez do registro identificatório da identidade sexual não pode deixar de curvar-se à pluralidade psicossomática do ser humano".

Berenice Dias (2006, p.124) completa: "A inadequação do nome ao registro gera um desajuste psicológico, afronta ao comando constitucional, revelando severa violação aos direitos humanos."

Segundo a visão da jurista Maria Helena Diniz (2002, p. 301-302),

das retificações de prenome e de sexo do requerente, respectivamente para "Entendemos que deve haver a adequação do prenome ao novo sexo do transexual operado sem qualquer referência discriminatória na carteira de identidade, de trabalho, no título de eleitor, no CPF etc. O mandado judicial de retificação deveria, então, ordenar não só a averbação à margem do registro masculino" ou "feminino" (e não transexual!) O Estado atual do Biodireito. 2. ed. São Paulo:. Saraiva, 2002.

É válido acrescentar as palavras dos juristas Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2007, p. 125):

(...) o fundamento autorizador da permissão de mudança do estado sexual no registro civil, após a cirurgia de transgenitalização, é de ordem constitucional, buscando assegurar a preservação da dignidade humana e da igualdade substancial, diretrizes da Carta Maior brasileira.

Há, ainda, posicionamento favorável à retificação registral para adequação do estado civil do transexual. Quanto aos terceiros que incorrerem em erro essencial ao contrair casamento por erro, poderiam anulá-lo, com fulcro no art. 1550, III, por vício da vontade, afastado qualquer prejuízo.

Assim dispôs Henrique Olegário (2005, p. 20):

(...) Dizer igualmente que a omissão da informação acima poderia induzir um terceiro, com quem este vier a se casar, a erro essencial (CC 2002, art. 1557) é valer-se de argumento menor, quando se está em jogo o direito à dignidade do ser humano. Se mais a mais, não estaremos diante de nulidade e sim de ato anulável, cuja medida saneadora a própria lei codificada já prevê (CC, 2002, art. 1550, III).

É oportuno acrescentar as palavras de Flávio Tartuce, que assume posição semelhante à explanada acima:

Tudo isso justifica as razões pelas quais entendemos que deve ocorrer a alteração do registro do nome. Como conseqüência, deve nele constar como sexo o feminino e não a qualificação de transexual ou transgênero como entendem alguns doutrinadores. Essas denominações, não enquadradas em sexo masculino ou feminino, podem ser tidas até como mais discriminatórias do que a manutenção do nome anterior.

Entendemos que o argumento pelo qual terceiros de boa-fé podem ser induzidos a erro pelo transexual operado não pode prosperar.(...)

Nesse contexto, em situações tais, deve o transexual estar movido pela boa-fé, sob pena até de sua conduta ser enquadrada dentro do conceito de abuso de direito, previsto no art. 187 do novo Código Civil, a ensejar a sua responsabilização civil. (artigo: Mudança do nome do transexual. Flávio Tartuce. Pesquisa realizada no dia 9/12/08. www.flaviotartuce.adv.br⁄secoes⁄artigos⁄tartuce_transexual.doc)

Ademais, o fundamento de inviabilidade de alteração do registro de nascimento do transexual em função da demanda de proteção do terceiro de boa-fé, pressupondo-se a má-fé do transexual com quem se relaciona, contraria as diretrizes teóricas do Código Civil atual, entre elas o princípio da eticidade, que preconiza a boa-fé objetiva nas relações contratuais entre particulares, sendo que esse princípio extravasa a seara contratual, determinando ética, honestidade, transparência, comportamento com retidão, que respeita as expectativas da outra parte, sendo a idéia desse standard inserido no Código Civil.


11 - Via processual para a ação de redesignação do estado sexual

Cabe salientar que os posicionamentos jurisprudenciais são esparsos, não há que se falar em uma consolidação de entendimento em nossos Tribunais Superiores, mas já se percebe uma mudança de paradigma de interpretação jurisprudencial na qual, no passado, predominava forçosamente a resistência à alteração da identidade do transexual.

Apesar de o Judiciário do Estado de Minas Gerais apresentar-se resistente à alteração registral do sexo e do nome do transexual, conforme se verifica pelos Embargos Infringentes nº 1000.00.296.076-3⁄001, o relator e o vogal foram vencidos. Entendeu-se pela impossibilidade jurídica do pedido, com fulcro na Lei nº 6.015/73:

O certo é que isso envolve questão de Direito Natural, e envolve razoabilidade, dispensando especificação na lei. Sexo sempre foi determinado pela natureza, no momento em que a pessoa nasce, apresentando não apenas os caracteres sexuais secundários e externos, mas conformação cromossômica definidora de um ou de outro sexo.

A identificação que se exige seja lançada no registro é exatamente para a individualização da pessoa, de maneira que fique a mesma conforme com a natureza. Se assim não fosse, não haveria necessidade e nem motivo para tal indicação no registro civil.

Assim, quando o legislador fala em referência ao sexo no assento de nascimento, o faz, evidentemente, se reportando ao sexo biológico, e não ao sexo psicológico ou ao sexo de eleição.

A partir daí, convém repisar, resta clara a impossibilidade de se lançar, num registro, originalmente ou por modificação, indicação identificadora de sexo diverso do gênero da pessoa, determinado pela natureza, ou seja, por sua conformação cromossômica.

Como colocar, num registro civil, que uma pessoa que mantém a carga genérica compatível com determinado sexo pertença ao sexo oposto?

Fazer isso, como já demonstrado, é falsear a verdade. É dizer que o sol é lua, ou que a noite é dia.

Como bem destacado no voto do eminente Desembargador Almeida Melo, proferido na sessão anterior, há evidente impossibilidade jurídica.

Como se vê, longe de qualquer postura preconceituosa, a conclusão é eminentemente técnica, baseada em considerações de natureza científica, e também jurídicas; tudo aliado a raciocínio lógico.

Resta induvidosa a constatação de que não existe, no caso, qualquer circunstância legal autorizadora da pretendida alteração de registro. Seja quanto ao sexo, seja no que diz respeito ao nome.

Se a humanidade está passando por modificações modernizadoras – e isso é fato – o que importa é que, enquanto não houver modificação legislativa, as vedações expressas na lei não podem ser ignoradas.

Torna-se instável e perigosa a sociedade em que os juízes decidem, não com a lei, mas segundo suas próprias consciências, ainda que contrariamente à lei.

Todos nós desejamos ver a Justiça modernizada, com conceitos avançados e progressistas; mas não vejo como assim agir sem a sustentação legal.

Uma coisa é interpretar de maneira benevolente, progressista ou ampliativa, um determinado texto legal; outra coisa é autorizar aquilo que a lei expressamente veda, criando norma permissiva que o legislador ainda não criou.

A fundamentação para uma decisão negativa – repito - é eminentemente jurídica; deixadas de lado as considerações de natureza pessoal ou sentimental, incabíveis em se tratando de um julgamento judicial.

E não se venha dizer que essa decisão é antiga e proferida em época em que vigorava situação fática e jurídica diversa; porque não é. A única alteração que se invoca como ocorrida reside nas Resoluções do Conselho Federal de Medicina, que cuidam da possibilidade de realização da cirurgia e não da alteração registral.

Quanto à alteração legislativa que modificou o teor do artigo 58 da Lei dos Registros Públicos – também mencionada na sustentação oral, se mostra aqui irrelevante, porque a situação vivenciada nestes autos ali não se enquadra. O embargante está pretendendo a mudança de seu nome, não porque o nome que tenha seja feito, anti-natural ou ridículo, mas por não comprovada inadequação ao sexo original. (Embargos Infringentes nº 1000.00.296.076-3⁄001,TJMG, 4ª Câmara Cível, relator: Carreira Machado, data de julgamento: 22-04-04,data de publicação:08-06-2004, www.tjmg.gov.br , consulta 12-12-08)

Sobre a imutabilidade registral em tela, cita-se o voto do Desembargador Relator, Almeida Melo, na AC nº 1.000.00.296.076-3⁄000, tendo sido dado provimento à apelação formulada pelo MP, nestes termos:

Walter Ceneviva (Lei de Registros Públicos Comentada, 8ª edição, Saraiva, 1993, São Paulo, p.115) transcreve, em sua obra, parte do Acórdão nº 154.678, proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que se consigna:

Não se deve confundir a retificação do prenome com a sua mudança, nem mesmo com alteração propriamente dita. Na mudança substitui-se, na alteração modifica-se o que era certo e definitivo, sem qualquer eiva de erro.

Ensina também Walter Ceneviva que, no requerimento, alegando exposição ao ridículo, o interessado deve: a) afirmar que o prenome o submete ao riso e ao escárnio dos demais; b) explicar porque, subjetivamente, sente-se ridículo; c) comprovar, no seu meio social, o afirmado ridículo (p. 115).

Em verdade, a causa do constrangimento, alegada pelo apelado, não é o seu prenome, que é adequado a seu sexo, mas, sim, a falta de correspondência entre a atual aparência e seu sentimento psicológico. (www.tjmg.gov.br , data de julgamento: 20/3/03, data de publicação:2/4/03, consulta dia 12/12/08, 4ª Câmara Cível).

Por outro lado, têm-se inúmeras decisões do Sul, que autorizam a modificação do nome e do sexo sob a justificativa de que o direito à identidade sexual não se apóia no instrumento, mas na realidade sexual. Ademais, segundo o TJRS, a LRP autoriza a mudança de prenome que causa constrangimento, havendo amparo legal:

Portanto, resulta estreme de dúvidas que, diante da excepcionalidade do caso em tela, é de prevalecer à regra da imutabilidade o direito à alteração do prenome, por força do art. 58 da Lei 6.015/73. Inclusive, tem-se por desnecessária prova a respeito das situações vexatórias vivenciadas pelo recorrente, sendo do conhecimento de todos os constrangimentos diários pelos quais passam pessoas como o apelante.

A exteriorização da condição de transexual, nos termos requeridos pelo Ministério Público ad quem, mostra-se descabida. Tomando-se por base toda a ordem de fatores que envolvem a presente alteração de registro civil, consoante explicitado na fundamentação acima, a publicização da condição de transexual, além de ser discriminatória, sujeitaria o recorrente às mesmas situações de preconceito e discriminação pelas quais vem passando até agora.

Dessa forma, o Ofício do Registro Civil somente deverá informar a respeito dos motivos que ensejaram a retificação mediante pedido do próprio interessado ou em atendimento à requisição judicial.

(Apelação Cível 700.116.911-85, www.tjrs.gov.br, Relatora: Maria Berenice Dias, Data de julgamento:5⁄4⁄06, publicação no DJ do dia 17⁄4⁄06, pesquisa realizada no dia 7-12-08, 7ª Câmara Cível).

Saliente-se que esse é o entendimento do TJSP, neste sentido:

E a Constituição em vigor inclui, entre os direitos individuais, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (art. 5o, X). Reside aqui o fundamento legal autorizador da mudança do sexo jurídico, pois sem ela ofendida estará a intimidade do autor, bem como sua honra. O

constrangimento, a cada vez que se identifica, afastou o autor de atos absolutamente corriqueiros em qualquer indivíduo, pelo medo da chacota. A busca da felicidade, que é direito de qualquer ser humano, acabou comprometida. (AC 165.157.4-500, relator: Boris Padron Kauffmann, 5º Câmara de Direito Privado de Férias, data de registro: 17/4/01, www.tj.sp.gov.br)

Discute-se, ainda, a proteção dos terceiros de boa-fé que se relacionem com o transexual. Diante disso, o STJ tem entendimento intermediário, autorizando a retificação do registro de nascimento do transexual, constando dele a averbação de autorização judicial para a alteração, sendo permitida a extração de certidão de inteiro teor, desde que haja autorização judicial:

Não se pode esconder no registro, sob pena de validarmos agressão à verdade que ele deve preservar, que a mudança decorreu de ato judicial, nascida da vontade do autor e que tornou necessário ato cirúrgico complexo. Trata-se de registro imperativo e com essa qualidade é que se não pode impedir que a modificação da natureza sexual fique assentada para o reconhecimento do direito do autor. Conheço do especial e lhe dou provimento para determinar que fique averbado no registro civil que a modificação do nome e do sexo do recorrido decorreu de decisão judicial. (RESP 678933⁄RS, relator: Carlos Alberto Menezes Direito, terceira turma, Data de julgamento:22/3/07,data de publicação: 2/5/07, DJ, p 571, consulta: 10/11/08, www.stj.gov.br )

Insta ressaltar que a tendência é de adotar o entendimento do STJ.

Cabe ressaltar que a jurisprudência brasileira vem avançando no que tange à hermenêutica, tendo contribuído forçosamente para a solução dos hard cases, através de um processo de ponderação principiológica, conforme o caso concreto, abandonando-se a rígida dogmática tradicional, o que se pode designar como o "Começo da história" nas palavras de Luiz Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos.

A jurisprudência produzida a partir da Constituição de 1988 tem progressivamente se servido da teoria dos princípios, da ponderação de valores e da argumentação. A dignidade da pessoa humana começa a ganhar densidade jurídica e a servir de fundamento para decisões judiciais. Ao lado dela, o princípio instrumental da razoabilidade funciona como a justa medida de aplicação de qualquer norma, tanto na ponderação feita entre princípios quanto na dosagem dos efeitos das regras. (Barroso, Luiz Roberto; Barcellos, Ana Paula. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. www.camara.rj.gov.br/setores/proc/revistaproc/revproc2003. pesquisa realizada no dia 4/10/08)


13

O transexual padece de disforia de gênero, consistindo numa inadequação entre o estado psíquico e o biológico, sendo necessária a realização do procedimento cirúrgico de transgenitalização para redesignação do estado sexual dele, a fim de promover essa adequação.

Quanto à mudança de nome e de sexo do transexual, isso é impossível para parte da doutrina mais conservadora, sob o fundamento de que LRP é omissa quanto a essa possibilidade, sendo numerus clausus. O segundo argumento é que o aspecto cromossômico é que deve prevalecer. Além do mais, a alteração do nome pelo juiz causaria insegurança jurídica, por exemplo, no caso de casamento, esse se daria entre pessoas do mesmo sexo, o que é vedado pelo Código Civil.

Outra controvérsia é saber se o transexual, ao participar de um concurso público para delegado civil, participará do teste físico com a identidade masculina ou feminina. E se, nas olimpíadas, se identificará como homem ou mulher, sabendo-se que aquele apresenta uma estrutura genética mais favorável; não haverá afronta ao princípio da isonomia quando da competição?

Pode-se concluir que a solução em tela não está na aplicação ou não da lei, concepção mecânica, lógico-dedutiva, ultrapassada. Então, o conflito tem por base a colisão de princípios, que poderá ser solucionada pela hermenêutica contemporânea, cabendo a avaliação do caso concreto.

A visão hermenêutica de Alexy parece mais adequada. Esse teórico propõe a avaliação dos elementos extraprincipiológicos como, por exemplo, fatos, regras, circunstâncias sociais e culturais, de forma que haja pesos a serem considerados no momento da escolha do princípio a ser aplicado ao caso concreto.

Diante desse modelo hermenêutico, em situações extremas como a presente, deve prevalecer a interpretação do direito mais adequada ao caso concreto, sucumbindo o interesse particular, aplicando-se a técnica da ponderação ao caso concreto, de forma a funcionalizar o desenvolvimento e a realização da pessoa humana.

Cabe também salientar que a jurisprudência vem apontando alternativas para a pacificação desse caso emblemático. O STJ vem argumentando a possibilidade de alteração do nome e do sexo do transexual, sendo que o primeiro fundamento é o art. 5º, VI, da CR/88, que delineia o direito fundamental à orientação sexual. Vinculado a esse posicionamento, tem-se o direito à diferença dos que se encontram à margem da sociedade, devendo-se integrá-lo ao seio social, não o fazendo forçosamente, e respeitando-se os direitos dos minoritários e excluídos. Por fim, entende-se que, se não muda o nome, a pessoa está sendo instrumentalizada pela sociedade, reforçando-se a discriminação.

Na verdade, o interesse maior a ser atingido pelo direito é a felicidade do ser humano, porquanto é esse o fim de todo o ordenamento jurídico. Diante disso, é oportuno questionar: qual é o interesse público a ser tutelado: o dos particulares de boa-fé ou daquele que apresenta uma doença que pode levar ao suicídio?

É de sabença geral que cabe ao Estado a proteção da vida do ser humano de forma ampla. Poder-se-ia afirmar que o atual posicionamento do STJ vai de encontro aos fundamentos da nossa Carta Magna? O entendimento desse órgão atende ao princípio da isonomia?

Diante da releitura do Código Civil de 2002, pautado na presunção da boa-fé, da lealdade, da honestidade do ser humano, é possível fundamentar as decisões de alteração registral do prenome do transexual na presunção de má-fé?

Essas são algumas questões que demandam uma releitura do posicionamento jurisprudencial brasileiro, de forma a propiciar a realização do ser humano no âmbito da sociedade, extirpando o ranço criado de transexualismo.

Não há espaços para tratamentos discricionários em uma sociedade como a nossa, que proclama a democracia e a igualdade de todos, independentemente de raça, cor, credo, origem e religião, e sob essa visão maximalista do direito, que reflete a sociedade complexa contemporânea.

A questão é mais profunda, tendo em vista que o direito registral intervém diretamente na confecção do ato jurídico (art. 6º, inciso II, da Lei nº 8.935/95), pois visa não só a garantir o direito das partes, mas também a segurança jurídica e a eficácia jurídica dos atos, conforme o art. 1º da Lei nº 8.935/95.

Diante disso, mandar retirar a averbação de transexual do assento de nascimento, sob o argumento de que fere a dignidade da pessoa humana dele, é questionável, pois o registro civil retrata a realidade, ou seja, transexual é o estado que indica a sexualidade de uma pessoa que tem uma anatomia e um desejo diverso da carga genética.

Válido questionar se caberia ao cônjuge que descobre ter se casado com um transexual alegar erro essencial relativo à outra pessoa, para anular o casamento sob fundamento da insuportabilidade da vida em comum, pois o erro essencial se dá quando a pessoa se casa enganada quanto à outra, em outras palavras, tinha falsa percepção da realidade, emitindo uma vontade não esclarecida em virtude do equívoco. Entretanto, no caso em tela, o cônjuge acreditava que estava contraindo núpcias com uma mulher, por exemplo, não cabendo alegar posteriormente identidade diversa, para justificar o erro, sendo o casamento válido, sem qualquer equívoco.

Vê-se que ao proteger-se a dignidade da pessoa humana do transexual, poder-se-ia ofender outra dignidade. Como se sabe nenhum direito é absoluto, nem mesmo os que envolvem a personalidade, podendo relativizar-se visando à proteção da coletividade.


REFERÊNCIAS

BARROSO, Luiz Roberto; BARCELLOS e Ana Paula. O Começo da história. a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro.www.camara.rj.gov.br/setores/proc/revistaproc/revproc2003. Acesso em: 4 out. 2008.

CENEVIVA, Walter. Lei de Registros Públicos Comentada. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

CENEVIVA, Walter. Lei dos Notários e dos Registradores comentada. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

DIAS, Maria Berenice. União Homossexual. O preconceito e a Justiça. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

DINIZ, Maria Helena. O Estado atual do Biodireito. 2. ed. São Paulo : Saraiva, 2002.

D’URSO, Luíz Flávio Borges. O Transexual, a Cirurgia e o Registro. Revista Jurídica. Síntese. Ano XLI, nº 229. Rio Grande do Sul: La Salle, nov. 1996.

GALUPPO, Marcelo Campos. Princípios jurídicos e a solução de seus conflitos - a contribuição da obra de Alexy. Revista da Faculdade Mineira de Direito da Puc Minas. Parte Geral. n. 2 , v. 1, 1998.

LOTUFO, Renan. Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva. v. 1. Parte Geral, 2003.

MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, Tomo VII, 1971.

PACHECO, Henrique Olegário. Transexualismo e a dignidade da pessoa humana: possibilidade jurídica de mudança de nome e de sexo no registro civil após operação transexual. Belo Horizonte, 2005.

ROBERT, Alexy. Teoria de los derechos fundamentales. Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1997.

ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil. Teoria Geral. 6 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

SZANIAWSKY, Elimar. Limites e possibilidades de direito de redesignação do estado sexual: estudo sobre o transexualismo: aspectos médicose jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 44-45, 276p.

TEPEDINO, Gustavo; BARBOSA, Heloísa Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, conforme a Constituição da República. Parte Geral e obrigações. 2 ed., Rio de Janeiro, São Paulo e Recife: Renovar, 2007.

TJMG, AC 1.0000.00.289.475-6-001. Rel. Desembargador Belizário Lacerda. 7ª Câmara Cível. Data de julgamento: 30 de setembro de 2003. Data de publicação: 1ºde abril de 2004, DJ. www.tjmg.gov.br . Acesso em: 1º ago. 2008.


Notas

  1. Alexy, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1997, p. 83.
  2. Galuppo, Marcelo Campos. Princípios jurídicos e a solução de seus conflitos – a contribuição da obra de Alexy. Revista da Faculdade Mineira de Direito da Puc Minas, n. 2 , v. 1, 1998, p. 174.

Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GURGEL, Patricia da Cunha. A mudança de nome e sexo do transexual e os seus reflexos na Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2111, 12 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12614. Acesso em: 25 abr. 2024.