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Direito de amar: vulnerabilidade e mitigação da autonomia privada do grupo LGBT pela ausência de garantia da possibilidade de celebração do casamento civil

Direito de amar: vulnerabilidade e mitigação da autonomia privada do grupo LGBT pela ausência de garantia da possibilidade de celebração do casamento civil

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Negar jurisdição ao caso concreto por ignorar qualquer aspecto da personalidade do indivíduo, incluindo a sua sexualidade, é discriminação inadmissível diante da compreensão dos Direitos Fundamentais e/ou naturais de todo cidadão, que põe em risco, inclusive, a probidade intelectual necessária para que o Direito seja respeitado enquanto ciência.

“[...] Transformai-vos pela renovação do vosso entendimento”

(Carta de Paulo aos Romanos, capítulo 12, versículo 2)

Resumo: A insegurança a respeito da possibilidade do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo representa a mitigação dos direitos fundamentais – especialmente a autonomia privada – do grupo LGBT, e denuncia a sua vulnerabilidade no contexto social da atualidade. A reflexão a respeito da interação necessária entre o fato social e a hermenêutica jurídica nos levará ao estudo da necessidade de revisão de determinados dogmas juscivilísticos, na busca de uma jurisdição não-discriminatória, ativamente includente. Veremos as relações de necessidade entre laicidade e conduta estatal, e entre os princípios constitucionais e a geração e aplicação do Direito Civil.

Sumário:1.Introdução. 2.Vulnerabilidade do Grupo Social LGBT. 3.Liberdade e Autonomia Privada nas Relações de Direito de Família. 4.O Mito da Heterossexualidade. 5.Casamento e Celebração: A Realização Pessoal enquanto Valor Inerente ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 6.A Controvérsia das Relações Homoafetivas no Direito Brasileiro. 7.Conclusão. Referências.


1.  Introdução

Em Outubro de 1988, a nova Constituição da República trouxe à Ciência do Direito, ou melhor, à inteligência dos intérpretes e aplicadores do Direito, um novo e profundo desafio: não discriminar.

E é no caminho dessa busca que a Pós-Modernidade dos tempos traz à tona uma discussão que nos remete à investigação científica de fatos da vida humana que remontam ao princípio da civilização: qual é o limite para estabelecer o que é ou não permitido aos indivíduos em suas vidas particulares e na constituição de suas famílias?

Em sendo a família a base da sociedade, e sendo mutável – e constantemente mutante – a própria sociedade, pode ser estática a fonte da metaética que define seus padrões e valores? Ou, antes, a instituição Família é meio ou finalidade?

Trataremos neste trabalho de tema que provavelmente sequer precisaríamos abordar não fossem os preconceitos, de todas as ordens, que se abatem sobre o assunto: a união de pessoas do mesmo sexo com objetivo de formar família e sua repercussão na sociedade e nas vidas das pessoas envolvidas.

Em toda o mundo ocidental, a discussão a respeito do "casamento gay" divide opiniões, toma a posição de paradigma eleitoral e ocupa as manchetes dos principais meios de comunicação. Aqueles que outrora foram o símbolo do estereótipo de promiscuidade e perversão moral, agora “saem do armário” reivindicando a revisão das ideias e conceitos que os relegaram a tal situação. Borbotam a cada dia estatísticas de uma nova realidade na sociedade brasileira, quiçá mundial, na qual os homossexuais demonstram inequivocamente a integridade de sua moral e vivem suas uniões afetivas com cada vez maior estabilidade, publicidade e aceitação social.

Não há que se discutir a ilegalidade de legitimar a condição de marginalidade de qualquer grupo dentro da sociedade. Agora, também, não cabe mais discussão quanto à marginalidade em que estão postos os homossexuais, condenados, pela discriminação que sofrem por parte das camadas mais conservadoras e preconceituosas do Poder Legislativo, muitas vezes endossada pelo Judiciário e pela Doutrina Jurídica, a uma existência sob sua própria conta e risco, sem o reconhecimento do seu direito natural, intrinsecamente humano, de terem seus projetos de vida em comum protegidos pela Lei e, portanto, mitigados em seu acesso à Justiça.

Diante do inegável impasse que se estabeleceu após a louvável decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto da ADI 4277 e ADPF 132, quando decidiu possível o reconhecimento de união estável com natureza familiar entre pessoas do mesmo sexo, o operador e o intérprete do Direito, conhecendo a lamentável morosidade e falibilidade da Legislatura no Brasil, precisam assumir a responsabilidade pela efetivação dos Direitos Humanos e Fundamentais previstos na Constituição da República, e, através de uma postura includente e antidiscriminatória, dar concretude e efetividade social aos imprescindíveis preceitos constitucionais de Igualdade, Liberdade, Justiça, Solidariedade e Dignidade da Pessoa Humana.


2. Vulnerabilidade do Grupo Social LGBT

A Constitucionalização do Direito Civil, premissa da qual parte este trabalho, já deixou de ser uma inovação acadêmica e é, atualmente, um fenômeno doutrinário e jurisprudencial observável em todas as esferas de operação do Direito no Brasil. Trata-se da recentralização axiológica do ordenamento na Constituição, norma que é o seu vértice. Como esclarece Cézar Fiuza:

 “[...] Por constitucionalização do Direito Civil deve-se entender, hoje, que as normas de Direito Civil têm que ser lidas à luz dos princípios e valores consagrados na Constituição, a fim de se implementar o programa constitucional na esfera privada. [...] Falar em constitucionalização do Direito Civil não significa retirar do Código Civil a importância que merece como centro do sistema, papel este que continua a exercer. [...] No entanto, apesar disso, se a Constituição não é o centro do sistema juscivilístico, é, sem sombra de dúvida, o centro do ordenamento jurídico, como um todo. É, portanto, a partir dela, da Constituição, que se devem ler todas as normas infraconstitucionais. Isso é o óbvio mais fundamental no Estado Democrático.” (FIUZA, 2009)

A melhor definição de Direito Civil-Constitucional é, provavelmente, a síntese feita por quem foi seu precursor no cenário jurídico nacional: “[...] Uma interpenetração do Direito Público e Privado, de tal maneira a se reelaborar a dogmática do Direito Civil”(TEPEDINO, 2004).

Este novo paradigma de interpretação impõe ao Direito Civil a realocação de determinados valores de modo a orientar a lógica do Ordenamento para uma perspectiva centrada na pessoa e em sua realização:

“[...] As situações existenciais a serem tuteladas exprimem-se não só em termos de direitos subjetivos, mas ainda em termos de direitos potestativos, de deveres, de ônus, de poderes, faculdades, estados: ‘... no centro do ordenamento está a pessoa, não como vontade de realizar-se libertariamente, mas como valor a ser preservado também no respeito de si mesma’. O princípio da liberdade individual consubstancia-se, hoje, numa perspectiva de privacidade, intimidade e livre exercício da vida privada. Liberdade significa, cada vez mais, poder realizar, sem interferências de qualquer gênero, as próprias escolhas individuais – e mais: o próprio projeto de vida, exercendo-o como melhor convier.” (MORAES, 2010a)

Há menos de vinte anos (tempo, certamente, insuficiente para uma mudança significativa na mentalidade social), o grande civilista Orlando Gomes sustentava que “[...] somente o grupo oriundo do casamento deve ser denominado família, por ser o único que apresenta os caracteres de moralidade e estabilidade necessários ao preenchimento de sua função social”(GOMES, 1994), em claro resquício da formatação familiar anterior à Constituição de 1988, conforme elucida novamente Gustavo Tepedino:

“A hostilidade do legislador pré-constitucional às interferências exógenas na estrutura familiar e a escancarada proteção do vínculo conjugal e da coesão formal da família, inda que em detrimento da realização pessoal de seus integrantes – particularmente no que se refere à mulher e aos filhos, inteiramente subjugados à figura do cônjuge-varão – justificava-se em benefício da paz doméstica. [...] O sacrifício individual, em todas essas hipóteses, era largamente compensado, na ótica do sistema, pela preservação da celula mater da sociedade, instituição essencial à ordem pública e modelada sob o paradigma patriarcal.”(TEPEDINO, 2001)

A orientação abstrata do Ordenamento era claramente a conformidade ao padrão de comportamento familiar cristão-burguês, não restando espaço para que o indivíduo fosse livre para sequer querer se determinar de maneira diversa. A autodeterminação, apesar de lícita, era desencorajada, como explica Norberto Bobbio:

“No caso de um comportamento permitido, o agente está livre para fazer ou não fazer alguma coisa, ou seja, está livre para valer-se da própria liberdade para conservar ou inovar. Se o Ordenamento jurídico julga positivamente o fato de o agente valer-se o mínimo possível da sua liberdade, procurará desencorajá-lo a fazer o que é lícito. Como se vê, a técnica do desencorajamento tem uma função conservadora. Se, ao contrário, o mesmo ordenamento jurídico julga positivamente o fato de o agente servir-se o máximo possível da sua liberdade, procurará encorajá-lo a se valer dela para mudar a situação existente: a técnica do encorajamento tem uma função transformadora ou inovadora. O exemplo mais interessante que se pode oferecer hoje, fazendo referência aos ordenamentos jurídicos de Estados dirigistas ou planificadores, é o das chamadas leis de incentivo, as quais, na vertente das medidas negativas, têm a sua correspondência nas leis de desincentivo.” (BOBBIO, 2007)

A já referida resistência à inclusão social de configurações familiares diversas do matrimônio heteroafetivo, que se caracterizava claramente como disposição de desencorajamento, teve papel fundamental na consolidação da vulnerabilidade do grupo social LGBT, cuja correção, através de uma concepção funcionalista da família, é, agora, imprescindível.

Como ensina a valiosa lição da eminente professora Heloisa Helena Barboza, todas as pessoas, em princípio, são vulneráveis, se partirmos de uma análise do próprio conceito de vulnerabilidade – do latim vulnerabilis, “que pode ser ferido”. O fato é que qualquer ser vivo “pode ser ‘vulnerado’ em condições contingenciais”(BARBOZA, 2009).

Tal vulnerabilidade, evidentemente, apresenta gradações que observam relação direta com as potencialidades do indivíduo: certos grupos sociais, como, por exemplo, os portadores de deficiência, os idosos, os integrantes do grupo LGBT, entre outros, por determinadas condições socioeconômicas ou psicofísicas, se encontram em condição de negativa desigualdade em relação aos demais, o que os torna vítimas em potencial, ou seja, estão inevitavelmente submetidos a uma constante situação de risco.

A vulnerabilidade à qual nos referimos é essa condição, na qual o risco deixa de ser uma hipótese eventual para se tornar uma realidade constante e concreta na existência do indivíduo. A pessoa que se encontra nessa condição “está impedida ou tem diminuída a possibilidade de exercer seus direitos”, e, por essa razão, “necessita de proteção especial”(BARBOZA, 2009).

É, em apertada síntese, um estado de impossibilidade de realização da Dignidade da Pessoa Humana, na configuração em que magistralmente a apresenta a professora Maria Celina Bodin de Moraes:

“O substrato material da Dignidade assim entendida pode ser desdobrado em quatro postulados: i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência de outros como sujeitos iguais a ele, ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado. São corolários desta elaboração os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral – psicofísica -, da liberdade e da solidariedade.”(MORAES, 2010b)

Ainda nesse contexto, Ricardo Pereira Lira nos leva à reflexão no sentido de que a atribuição do Estado não é de favorecimento de grupos sociais específicos, mas de retificação das circunstâncias de desfavorecimento:

“A Constituição de 1988 estabelece que a República tem como fundamento a Dignidade da Pessoa Humana, declara que é objetivo fundamental dessa mesma República erradicar a pobreza e a marginalização, bem como reduzir as desigualdades sociais. [...] Dessa forma esses princípios fundamentais presidem toda a interpretação e aplicação do direito infraconstitucional, de forma a conduzi-lo à equidade e à Justiça Social. Esses princípios fundamentais estão acima dos próprios Princípios Gerais de Direito de que cuida a Lei de Introdução ao Código Civil, como processos de integração e suprimento das lacunas do Ordenamento.”(LIRA, 1997)

Assim, é dever do Estado-Juiz assumir o papel de corretor das injustiças que culminam na vulnerabilidade de qualquer grupo social. O Direito, enquanto ciência de ativa relevância e direta influência nas relações entre os grupos sociais, deve buscar o ideal da possibilitação do "desenvolvimento sustentável do patrimônio cultural brasileiro", através de uma proativa observação da evolução da consciência coletiva e dos costumes da sociedade.

A Ciência Jurídica não pode se restringir ao estudo da norma rígida, engessada. Durante longo período, a reflexão jurídica foi entravada pela névoa positivista, sendo permitida apenas ao estudo do “dever-ser” convalidado pela norma em sua autonomia existencial. Superada, hoje, a dissociação feita por Kelsen entre o Direito e a noção de Justiça, sabemos que cientificidade não tem necessariamente a ver com não-valoração, uma vez que o Direito é, também, ciência eminentemente humana.

O jurista não pode deixar de observar o fato social porque não podemos abrir mão da busca da Justiça no estudo do Direito. É dela que ele deriva. Nesse sentido, faremos coro com o conceito jusnaturalista de que o Direito é intrínseco à sociedade e anterior à Norma, e, mais ainda, superior a ela. A investigação científica da Justiça, baseada nos valores sociais do que é ou não justo ou ético, é necessariamente o ponto de partida da hermenêutica jurídica.

Como novamente nos ensina Bobbio, o Direito Natural é o conteúdo valorativo e essencial da formação das normas do Direito Positivo(BOBBIO, 1999) e, por isso, deve-se buscar a integração entre os conceitos de ética e justiça e a aplicação da norma jurídica positivada na legislação.

A efetividade social da jurisdição depende da sua adequação à realidade fática e, além disso, à percepção social da realidade fática. Assim, novas circunstâncias na esfera social demandam novas perspectivas nas leituras dos enunciados normativos, já que é na prática jurisdicional que a inteligência interpretativa do operador do Direito pode encontrar soluções para os conflitos sociais com mais eficiência e tempestividade que o sempre lento e, muitas vezes, falho processo legislativo.

O ordenamento jurídico não pode ser indiferente às transformações da sociedade que tutela, nem legitimar a marginalidade de qualquer grupo dentro dessa sociedade. E, sim, os homossexuais ainda são relegados à margem da sociedade e do ordenamento jurídico, violados em seus direitos fundamentais por serem impossibilitados de legitimar socialmente seus projetos de vida em família.

A desvinculação entre o Estado e a mentalidade religiosa, especialmente a cristã, obriga a um necessário reexame da nossa realidade cultural, e dentro dela, também, das relações homoafetivas (e da própria homossexualidade, consequentemente) e as possibilidades de discussão do tema e conscientização da sociedade.

E é justamente neste momento de iluminação e elucidação dos fatos, de quebra de estereótipos, que o Direito não pode se isentar da responsabilidade de corrigir o malcumprimento do dever de legislar do Estado, e dar respostas lúcidas à população. O status de Estado Democrático de Direito do Brasil depende de uma atitude ativa de atendimento às urgências de positivação dos direitos fundamentais de todos os grupos dentro da nossa sociedade.


3. Liberdade e Autonomia Privada nas Relações de Direito de Família

Liberdade e autonomia privada são dois conceitos que, na Ciência do Direito, assumem posições opostas, mas complementares: enquanto esta representa o aspecto negativo, de limitação da ingerência do Estado e da intervenção de terceiros nas escolhas e relações privadas dos indivíduos, aquela tem caráter positivo, se referindo à própria faculdade individual de autodeterminação do conteúdo e dos efeitos de tais relações. E essa relação de complementariedade representa, por excelência, a ponderação de interesses individuais e coletivos que é a interseção essencial entre Direito Público e Privado.

E podemos adicionar que o conceito de liberdade, que a própria Constituição da República classifica como Direito Fundamental, envolve ainda duas dimensões básicas: a liberdade subjetiva, ou de pensamento, que é a característica interna da liberdade do indivíduo, ou seja, a liberdade de escolha, de crença, de convicção - e que demanda do indivíduo a prévia consciência das diversas possibilidades que a realidade lhe oferece; e a liberdade objetiva, ou de ação, que é a efetivação ao nível material das escolhas e ideologias produzidas pela liberdade de pensamento.

Note-se que, apesar de "autonomia privada" e "privacidade" terem sido tratados pela Doutrina civilista durante muitos anos como institutos diversos - atribuindo-se a esta natureza existencial e àquela natureza patrimonial -, tratam-se ambas, apesar de terem objetos diferentes, exatamente do mesmo fenômeno jurídico: a atribuição de potencial jurígeno ao exercício da liberdade.

A tutela das relações de Direito Privado Patrimonial prestigiou tanto, ao longo da evolução do Direito, essa noção de autonomia privada que a tríade propriedade privada, liberdade negocial e livre iniciativa ocupou o próprio cerne dos sistemas jurídicos baseados na norma civil. Vide, como exemplo, a massiva influência nos ordenamentos jurídicos da Europa continental e de suas colônias do Code Napoléon, Lei civil que ostentou o status de norma fundamental no Estado Francês, durante o período pós-Revolução, a despeito da posição hierárquica da própria Constituição.

Entretanto, como nos ensina o eminente civilista italiano Pietro Perlingieri, nenhum outro Princípio além da Dignidade da Pessoa Humana tem, no Direito, valor intrínseco por si só, de modo que os demais princípios jurídicos merecem tutela na medida em que e somente enquanto concorrerem para a promoção daquele(PERLINGIERI, 2008).

Tanto é assim que o Direito ocidental contemporâneo, contrariando a normativa liberalista e patrimonialista instituída pelas revoluções burguesas do final da Era Moderna, subordina a tutela da autonomia privada à realização da sua função social. Essa inversão axiológica, que flexibilizou o antigo dogma pacta sunt servanda e submeteu a liberdade de contratar à intervenção estatal, através da funcionalização do instituto, se baseou justamente na necessidade de evitar que a autonomia fosse utilizada contra o próprio indivíduo que a exerceu, de modo a atingi-lo em sua dignidade.

A clara disposição constitucional do caput do artigo 170 ("A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna") informa que mesmo aqueles princípios conceituados e estudados ao longo dos séculos de estruturação da civilização ocidental sob uma perspectiva estrutural e patrimonialista, tais como a propriedade e a liberdade de iniciativa, hoje estão condicionados à função existencialista de promoção da dignidade. Tal encadeamento de valores é evidente no Ordenamento brasileiro pela leitura dos artigos 5º, caput e seu inciso XXIII, e 170, caput e seu inciso III, da Constituição da República, e 421 e 2.035, par. ún., do Código Civil.

Podemos, então, tomar como paradigma a conclusão de que liberdade e autonomia privada devem ser, hoje, consideradas primordialmente por seu aspecto existencial, e só secundariamente sob seu aspecto patrimonial. Isto considerado, resta óbvia a inadequação da redução do estudo da autonomia negocial a uma perspectiva meramente contratual, como já observado também por Perlingieri: liberdade e autonomia privada, em função da dignidade, são princípios que se aplicam a todas as relações privadas, não somente àquelas que têm caráter patrimonial, mas principalmente às que dizem respeito a elementos integrantes da personalidade do indivíduo(PERLINGIERI, 2008).

Apesar disso, influenciada pela histórica perspectiva patrimonialista do Direito, a tutela da personalidade, das relações familiares e da sucessão teve, desde a sua origem romana até as codificações dos séculos XVIII e XIX, um viés essencialmente regulador, restringindo a autonomia privada nas interações jurídicas de natureza pessoal em privilégio da conservação do patrimônio familiar e da sustentação da economia das comunidades.

A evolução histórica da tutela da autonomia privada nos leva à observação de que o rompimento dessa tendência reguladora de restrição, apesar de fartamente sustentado por princípios de Direito e pela doutrina jurídica, é um movimento lento pela própria natureza do processo legislativo nos sistemas jurídicos positivistas, e dificultado sempre por disputas (só cosmeticamente ideológicas) entre grupos parlamentares.

Em que pese, entretanto, o embate entre as convicções particulares dos diversos grupos sociais representados no Poder Legislativo, há que se reconhecer na autonomia existencial um espaço de não-legislabilidade, como já observado por Stefano Rodotà: o legislador não pode violar a consciência individual dos cidadãos impondo-lhes como padrão a sua própria.

“A saída deste dilema não pode ser aquela, antiga, de reconhecimento da liberdade de consciência individual aos parlamentares. Não é a liberdade deles que deve ser resguardada, mas a de cada um de nós. ‘A Lei não pode, em nenhum caso, violar o limite imposto do respeito à pessoa humana’, diz, com sua bela linguagem, a própria Constituição [italiana] no artigo 32. É a consciência individual, com todas as suas vicissitudes, que deve ser respeitada por um legislador a quem se impõe sobriedade e, nos casos extremos, o silêncio. Além disso, consentindo que exista uma área ‘indecidível’ pelo legislador e remetida à decisão individual no quadro dos princípios gerais, se chegará a uma regra capaz de evitar conflitos violentos onde um ou mais dos partidos políticos faça referência a valores reconhecidamente não negociáveis.”[1](RODOTÀ, 2006)

Assim informa o próprio Ordenamento normativo (artigos 5º, X da Constituição da República, e 21 do Código Civil), reservando ao indivíduo a liberdade de determinação do seu próprio projeto de vida. Somente a funcionalização dos institutos de Direito Privado justifica a intervenção do Estado na autonomia existencial do indivíduo. Logo, tal intervenção deve se restringir ao mínimo necessário para garantir a centralização das relações subjetivas de direito na promoção da dignidade dos seus integrantes e na realização de sua função social.

A Emenda Constitucional nº 66/2010, que suprimiu da norma constitucional os requisitos objetivos para o divórcio, representa a consolidação dessa tendência de intervenção mínima do Estado na autonomia existencial dos indivíduos. Exemplos anteriores de tal tendência eram, em sua maioria, infraconstitucionais: a possibilidade de duas pessoas não se casarem, mesmo após terem firmado pacto antenupcial (art. 1.653 do Código Civil); a retirada do ordenamento da norma que criminalizava o "rapto", último resquício da histórica exigência legal de consentimento paterno para o casamento; o privilégio garantido pela Lei ao consenso entre as partes nas questões a respeito do exercício do poder familiar (art. 1.631 do Código Civil) e guarda dos filhos (art. 1.584 do Código Civil), casos em que a intervenção do Estado-Juiz é tratada sempre como excepcional; e a dispensa da própria atividade jurisdicional quando o divórcio consensual não envolver filhos menores (art. 1.124-A do Código de Processo Civil).

A intenção de constituir família não mais inclui necessariamente a intenção de gerar prole(FACHIN, 2001). Planejamento familiar, adoção, fertilização assistida, reprodução natural ou a simples opção por não ter filhos: a evolução nos dá escolhas e descaracteriza a família como núcleo de reprodução humana do qual fazem parte, necessariamente, duas gerações.

A função da família é muito mais que de reprodução biológica ou de conservação de patrimônio: a função da família ocidental contemporânea é ideológica, de reprodução de valores éticos e sociais por seus membros. O sentido de ser família não passou por uma simplesmente modificação: a liberdade de escolha dos indivíduos substituiu os instintos, os impulsos e as necessidades naturais numa sofisticação do comportamento – e, por que não dizer, do próprio ser – humano, que o Direito não pode reter nem deixar de acompanhar.

Assim, embora paulatinamente, a normativa civil vai avançando em direção ao necessário reequilíbrio dos seus institutos de acordo com os valores informados pela Constituição da República, subordinando a autonomia privada nas relações patrimoniais ao cumprimento de sua função social enquanto devolve às relações de natureza pessoal a autonomia que lhes é inerente.


4. O Mito da Heterossexualidade

Como nos ensinou Jurandir Freire Costa, toda época produz crenças a respeito dos conceitos de bem e mal, do mundo e do indivíduo, que parecem óbvias e indubitáveis aos olhos dos observadores contemporâneos(COSTA, 1992). A partir do século XIX - período definido por Foucault como uma era marcada pela classificação do que é ou não “normal” - impôs-se na consciência ocidental, como um dado universalmente válido para todas as circunstâncias, a uma crença de que poderia haver uma divisão dos indivíduos de uma sociedade entre heterossexuais e homossexuais.

O estudo para a categorização – e, consequentemente, valoração – das diversas práticas sexuais da humanidade teve início na transição dos séculos XVIII e XIX, principalmente como uma forma de exercício e afirmação de poder, aprendida principalmente com a Igreja Católica, das instituições sobre a individualidade.

A previsibilidade dos comportamentos humanos é elemento essencial à prosperidade da economia no sistema capitalista. Na transição do sistema econômico feudal para o sistema capitalista, a organização do Estado passou, então, a se preocupar ostensivamente com aspectos da vida pessoal dos indivíduos, entre elas, especialmente, a sexualidade, mais por suas consequências sociais, familiares e patrimoniais que por qualquer atribuição de valor intrínseco aos comportamentos.

A perseguição instituída contra o “desvio” – termo recém-inventado para designar a característica dos indivíduos que pudessem, eventualmente, perturbar a expectativa de ordem social da classe dominante, como os extremamente pobres, os “loucos”, os vadios, os homossexuais – legitimou a intervenção social na vida privada.

Sob a ótica daquela realidade social, civilização significava disciplina e esta, por sua vez, significava controle dos impulsos – inclusive os sexuais – dos indivíduos. A manutenção da civilização da sociedade ocidental era responsabilidade de instituições de controle da disciplina, como prisões, hospícios e escolas. Todas essas instituições tinham, então, o objetivo de promover a predominância de uma impressão de “normalidade” dos indivíduos dentro da sociedade.

Devemos considerar o fato de que estabelecer o que é “normal” ou “anormal” tem estreita relação com a definição do que é “adequado” ou “desviante”, e que esta classificação é inevitavelmente uma postura de dominação política.

Entretanto, o ensino trazido pela Igreja Católica de que a prática sexual sem fins de reprodução – a homossexualidade, portanto – era contrária à natureza divinamente predeterminada para a humanidade já não era mais suficiente para justificar os interesses do nascente Estado Laico. A criminalização da “sodomia” por leis divinas não tinha mais espaço na sociedade civilizada ocidental.

A classificação é sempre, necessariamente, uma discriminação. O exercício desse “poder de discriminar”, portanto, precisou se mascarar de cientificamente justificado – por piores, escusas e anti-científicas que fossem as justificativas.

Daí nascem, na transição entre os séculos XIX e XX, as correntes médicas que afirmavam que os homossexuais eram diferentes, moral, psiquiátrica e/ou biologicamente, dos indivíduos considerados heterossexuais[2], da figura do “homem-pai” legitimada como ideal de comportamento masculino da sociedade patriarcal cristã-burguesa dominante. Dessa forma, a medicina forja a ficção do “homossexualismo”, relacionando o comportamento homossexual à doença, afirmando que tais práticas eram anti-higiênicas, perversões da naturalidade das relações sexuais, aberrações.

A consequência natural dessa concepção foi que a medicina passou, então, a propor soluções “médicas” para o “problema” que a homossexualidade representava para a sociedade. Na transição dos séculos XIX e XX, a medicina elencava três possíveis causas para a homossexualidade, então chamada “homossexualismo”: a hereditariedade, defeitos congênitos ou desequilíbrios hormonais. A pretensa “cura” seria, então, a reversão desses fatores, convertendo homossexuais em heterossexuais.

Note-se que, acompanhando o conceito de “doença” e “cura”, vêm os juízos de valor, os conceitos de “bom” e “ruim”, legitimando a concepção de que havia práticas aceitáveis ou não para os indivíduos em suas vidas particulares.

O saber “científico” da medicina oitocentista, resguardando para si o poder sobre o conhecimento do “natural”, se reveste então um caráter – nocivo à sua própria natureza – de interferência na vida do indivíduo, na medida em que conhece o que é o “certo” ou o “errado”, e assume a responsabilidade, outrora exclusivamente eclesiástica, por orientar a sociedade no caminho de uma sexualidade “pura”, aceitável e conveniente, que respeitasse o que se entendia por natureza humana.

O termo “homossexualidade” foi cunhado em 1869 pelo médico húngaro Karoli Kertbeny para designar todas as formas de conjunção carnal e atração física entre pessoas do mesmo sexo(FÉRAY, 1981). Westphal, em 1870, escreve o primeiro artigo teórico – ou especulativo, melhor dizendo – acerca da homossexualidade. Posteriormente, como definição do inverso da homossexualidade – e produto direto da invenção desta – nasceu, somente nos idos de 1888, o termo heterossexualidade, como início da busca da definição de um conceito “científico” que sustentasse a consolidação da moral sexual cristã-burguesa(FOUCAULT, 1976).

O Século XIX é marcado não só pela definição dos conceitos de “normal” e “anormal” pela classificação em si, mas essencialmente pelo estabelecimento de um policiamento do que, sendo anormalidade, poderia eventualmente vir a perturbar a ordem socioeconômica instituída. A heterossexualidade é então criada como uma matriz de exclusão(BUTLER, 1999): nesse caminho, a homossexualidade e as demais formas de sexualidade marginalizadas pela consciência social são categorizadas para que os instrumentos de poder – do Estado e da Igreja, nesse caso – possam, a partir daí, obrigar a confissão, vigiar, controlar e, principalmente, “adestrar”, na medida do que fosse virtualmente possível.

Sob essa perspectiva, estabelecer a “normalidade” dependeu de estigmatizar, estereotipar, subalternalizar determinadas categorias para se consolidar socialmente a supremacia de outras. Podemos compreender, daí, que a invenção da homossexualidade como definição se deu, então, como uma das formas de estabelecer socialmente a ficção da normalidade - e, portanto, obrigatoriedade - do formato cristão-burguês do casamento heterossexual adulto monogâmico como padrão a ser seguido.

Não podemos deixar de ressaltar que o surgimento dos estudos relativos à homossexualidade é contemporâneo ao surgimento dos demais estudos guiados pela concepção eugênica de que se poderia comprovar cientificamente a superioridade de determinados grupos com relação a outros, a mesma ideologia que conduziu estudos sobre a superioridade de homens sobre mulheres e de negros sobre brancos.

Note-se que ainda no século XX, os cientistas que se dedicavam às áreas do saber que diziam respeito exclusivamente aos fenômenos da natureza e às relações animais não se isentavam do julgamento a respeito da moral (ou da falta dela) contida na homossexualidade.

O autor do livro “Biological Exuberance – Animal Homossexuality and Natural Diversity” afirma que, durante seus estudos, se deparou com uma pesquisa sobre o comportamento das baleias orca, financiada pela Marinha Norte-Americana em 1979, na qual a conclusão de que fora constatado comportamento homossexual entre os machos da espécie foi vetada pelos militares por ser “imoral”[3].

Em 1987, o biólogo americano W. J. Tennent, num estudo científico sobre o comportamento homossexual de certa espécie de borboletas, afirmou que “talvez seja um sinal dos tempos o fato de a literatura entomológica estar no caminho da decadência moral e das ofensas sexuais”[4].

Somente com o amadurecimento da separação entre a sociedade e a moral religiosa cristã, a partir da segunda metade do século XX, a comunidade científica passou a admitir que a homossexualidade podia não ser o que tão categoricamente afirmara que era. Em 1973, a homossexualidade deixou de ser considerada como doença pela Associação Americana de Psiquiatria. Em 1985, o então “homossexualismo” foi promovido de doença mental a “sintoma de desajustamento psicossocial” pela Organização Mundial da Saúde. Somente em 17 de Maio de 1990, a Assembleia Geral da OMS retirou a homossexualidade da sua relação de patologias mentais.

Apesar disso, não se pode ignorar que a associação entre homossexualidade e doença ainda não deixou de permear a consciência social, e que, pelo contrário, foi reforçada, obviamente contando com uma grande ajuda institucional e religiosa nesse sentido, pela epidemia do vírus HIV, que se propagou geometricamente entre os homossexuais dos grandes centros urbanos durante as décadas de 70, 80 e 90 do século passado.

Atualmente, sabemos que as variáveis que definem a sexualidade humana são complexas e não admitem categorizações simplistas. Na própria definição do sexo de uma pessoa, levam-se em consideração pelo menos, além dos seus aspectos biológicos congênitos, a sua identidade sexual, seu papel social e sua preferência afetiva.

Foucault já alertava para a futilidade da investigação acadêmica da homossexualidade(FOUCAULT, 1976), uma vez que todas as características das subjetividades dos indivíduos, inclusive a sexualidade, são produto direto da direção que a sociedade lhe dá ao modo de aprender a perceber, sentir, descrever, definir ou avaliar moralmente o que se é. Como salienta Freud, as inclinações sexuais de cada indivíduo estão intimamente atreladas à cultura da sociedade na qual se insere a respeito da sexualidade.

Entretanto, a ignorância com relação à origem de nossas inclinações sexuais ainda vigora com a hegemonia social do heterossexismo, sustentando no espaço-comum ideológico a ideia de que seja “distúrbio” qualquer comportamento sexual diferente da heterossexualidade.

Entretanto, abrimos a consciência para a constatação de que a heterossexualidade não é simplesmente “natural”, e sequer uma escolha livre: é a organização da sociedade que forma os indivíduos para que estes se relacionem obrigatoriamente com indivíduos do sexo oposto(KATZ, 1996). São as instituições, como a Igreja, o sistema educacional, a mídia e o próprio modelo institucionalizado de família, que reproduzem o ideal de perpetuação da espécie e consecução dos objetivos sociais dos papéis de “homem” e “mulher” na sociedade burguesa, incutindo nos indivíduos a pressuposição de uma heterossexualidade[5] – muitas vezes irreal – que limita suas percepções sobre as próprias individualidades sexuais.


5. Casamento e Celebração: A Realização Pessoal enquanto Valor Inerente ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

A Pós-Modernidade degredou a Tragédia aos meios de informação, polarizando a cultura de massa em meios ficcionais, nos quais são imperativos os finais felizes, e em meios não-ficcionais, condenados a suportar o ônus de contar as histórias tristes. Em clara contrapartida às capas de jornais denunciando diariamente o caos de uma realidade permeada de catástrofes, violência e injustiça, cada vez mais numerosos filmes, livros, programas de televisão e letras de música insistem que o ser humano - seja movido por um sentimento abstrato como o amor, ou por uma bondade supostamente inerente à sua própria natureza - é capaz de fazer tudo terminar bem.

Esse fenômeno, somado às tecnologias de comunicação que possibilitam ao indivíduo interagir com a sociedade ao mesmo tempo em que se mantém fisicamente isolado dela, cria a ilusão de que a tragédia é uma possibilidade distante e rara, enquanto a plenitude do bem-estar - a felicidade, portanto - é a conclusão de todo empreendimento bem-intencionado de vida humana. Essa nova metaética subconsciente, segundo a qual as pessoas "boas" são felizes, leva os indivíduos a uma subordinação da própria autoestima à sua percepção de realização pessoal, o que termina por converter o ideal de felicidade do homem numa expectativa de adequação da realidade ao seu desejo individual, e nunca o inverso.

Diante disso, embora estejam intimamente ligadas uma à outra, podemos perceber uma clara diferença entre a felicidade e a realização pessoal: o que se chama de felicidade é um ideal de estado metafísico do ser humano, uma condição psicológica cuja mensuração talvez sequer seja possível; a realização pessoal, por sua vez, é a verificação prática de progresso nos passos definidos pelo próprio indivíduo na busca daquele seu íntimo ideal de felicidade. Por exemplo, se o ideal de felicidade de uma pessoa consiste no alcance de determinado emprego, a sua realização pessoal estará em conseguir tal emprego, ainda que esse sucesso fático não proporcione a felicidade que a pessoa acreditou que proporcionaria.

Do mesmo modo, a constituição de uma família nos moldes idealizados por uma pessoa, embora configure a sua realização pessoal, pode não garantir que ela será tão feliz quanto idealizou que seria. A própria condição humana de constante sujeição à possibilidade de ocorrência de eventos radicalmente modificadores do estado das coisas, desde um incidente de proporções trágicas até o simples esgotamento da intenção de vida em comum, se coloca como desafio de transposição absolutamente imprevisível para o efetivo alcance do ideal de felicidade.

Em que pese, portanto, a impossibilidade da garantia de que todos os indivíduos alcançarão de fato a felicidade, a sua realização pessoal, ou seja, o alcance das metas pessoalmente definidas para a busca dessa felicidade, pode e deve ser garantida. Esse direito à busca da felicidade, embora não mencionado expressamente no Ordenamento Normativo brasileiro (ao contrário de vários dos países com os quais a nossa cultura se intercambia), representa a dimensão concreta do conteúdo axiológico da cláusula geral de tutela da pessoa humana.

Tal como nos foi ensinado por Kant em sua célebre "Crítica da Razão Prática", a moralidade, característica essencial da natureza humana, reside no reconhecimento racional de que todo ser humano existe como um fim em si mesmo. Portanto, a Ordem Normativa sobre a qual se assenta o Estado Democrático de Direito precisa ter como objetivo final o respeito do homem por si próprio e de todos uns pelos outros. Esse pensamento foi o que inspirou a Constituição da República a consagrar a Dignidade da Pessoa Humana como seu fundamento no inciso III do seu artigo 1º, consolidando o imperativo principiológico segundo o qual o valor intrínseco de cada indivíduo deve ser situado acima de qualquer outro interesse.

Nesse sentido, para o exercício da função promocional do Estado, torna-se imprescindível o reconhecimento dos padrões sociais que são recorrentemente representados no consciente coletivo como os elementos indispensáveis a uma existência humana feliz: i. Patrimônio, ou seja, a participação da pessoa na economia da sua sociedade e as relações de empoderamento e interdependência que surgem de tal participação, e o acesso aos bens de consumo em circulação nessa economia; ii. Saúde, significando a integridade psicofísica do indivíduo; e iii. Família, compreendida como o núcleo de interrelações íntimas do indivíduo com aqueles outros que lhe são mais próximos, biológica, social ou afetivamente.

As revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX marcaram a Idade Moderna com a reivindicação da liberdade do homem para constituir e manter seu próprio patrimônio; o repúdio global contra as atrocidades cometidas nas grandes guerras do século XX despertou o surgimento de uma doutrina geral de proteção da liberdade e da integridade psicofísicas da pessoa. Mas, apesar dos avanços sociais e ideológicos do final do século XX, ainda falta muito para a consolidação de uma proteção integral à intimidade e à liberdade de autodeterminação nas relações privadas do indivíduo.

A doutrina jurídica contemporânea vem constantemente reafirmando a conclusão de que a tutela jurídica da família é uma proteção instrumental, nunca essencialmente formal, àquele núcleo de relações humanas que tem a capacidade de criar um ambiente próprio ao desenvolvimento da personalidade do indivíduo e de efetivação da sua dignidade e dos direitos que dela emanam. E, muito embora tenha passado por modificações tão radicais quanto as que sofreu a própria civilização em seu desenvolvimento, o casamento não somente perdura, como ocupa posição de prestígio inabalável na consciência social. Tanto é assim que o texto da norma constitucional que garante a proteção especial do Estado à família (art. 226) menciona expressamente o casamento em quatro de seus oito parágrafos.

A conclusão natural dessa observação é que o casamento é uma instituição intrínseca à própria ideia de família. Comparando os dados obtidos em nossa pesquisa com os resultados de outra publicada por Bernardo Jablonski em 1991, podemos verificar que as pessoas em cujo planejamento de vida está incluída a formação de família também planejam se casar(JABLONSKI, 1991). Note-se que, passados mais de vinte anos e apesar da drástica transformação - causada pela difusão da internet nesse mesmo período - no modo como o público interage com a mídia de massa, os efeitos da representação social do casamento permanecem idênticos.

Assim, filtrado por essa cultura que identifica quase necessariamente casamento e família, o ideal de felicidade que inclui a formação de uma família inclui, também necessariamente, o casamento. Daí porque não basta a possibilidade de reconhecimento de uma união estável entre duas pessoas do mesmo sexo para que esteja garantida a efetivação da dignidade dessas pessoas: o planejamento familiar, direito garantido constitucionalmente e inquestionavelmente incluído na tutela da pessoa humana, tem como condição, na esmagadora maioria dos casos, o casamento.

Trata-se de uma questão lógica de causa e efeito: se o casamento é a celebração do projeto de vida em comum acordado entre duas pessoas, a família formada sem esse projeto prévio é o resultado de um processo que envolve, quando não o acaso, a superação de uma série de obstáculos aos quais o casamento não está submetido. Nossa pesquisa demonstra que mais de 17% das pessoas que responderam "sim" à pergunta "Você pretende se casar um dia?" responderam "não" à pergunta "Você se imagina passando o resto da vida com a mesma pessoa?", o que dá suporte à conclusão de que o casamento, além de ser a união de duas pessoas, representa para muitos um marco de passagem de estágios de vida, e tem, por isso, uma função essencial na construção da auto estima e no alcance da realização pessoal, ainda que este mesmo indivíduo não tenha a expectativa de que este estado dure indeterminadamente.

A própria norma constitucional determina que o ordenamento infraconstitucional deve facilitar a conversão de união estável em casamento porque, nos parece óbvio, o casal que superou todas as vicissitudes da vida em comum e permaneceu no mesmo status, mantendo a intenção de formar uma família em conjunto, já deu com isso prova de sucesso naquilo do que a celebração do casamento é somente o projeto.

Assim, possibilitar aos pares homoafetivos o reconhecimento da união estável mas negar-lhes o casamento equivale a condenar esses casais a se submeter ao teste da convivência para, somente após a superação deste, garantir-lhes alguns dos direitos civis inerentes à formação de uma família.

Em que pese o reconhecimento constitucional da relevância da união estável e da sua inquestionável legitimidade enquanto família, ainda é evidente a sua posição subalterna com relação ao matrimônio, não somente no que diz respeito aos direitos conferidos aos casais em um e outra, mas principalmente quanto à situação de ambos no meio social: pessoas casadas afirmam a sua união pelo próprio estado civil, festejam seu "chá-de-panela" e "despedida-de-solteiro", escolhem padrinhos e madrinhas de casamento, podem convidar toda a comunidade de que fazem parte para uma festa que representa o ritual de passagem que marca, especialmente para as mulheres na vasta maioria dos casos, a saída definitiva da casa parental, recebem presentes de casamento e ainda têm direito à licença gala para aproveitar seus primeiros dias de vida em comum.

A inadequação social da união estável, por sua vez, pode ser exemplificada pela simples observação do fato de que o Facebook®, a rede social virtual mais difundida no mundo - e cuja relevância na sociedade brasileira já se tornou impossível de ignorar, considerando-se a ultrapassagem da marca de sessenta milhões de usuários no Brasil no ano de 2012 - define suas opções de "status de relacionamento" como "solteiro", "em um relacionamento sério", "noivo", "casado", "em um relacionamento enrolado", "em um relacionamento aberto", "viúvo", "separado" e "divorciado". Às pessoas que vivem maritalmente sem serem casadas resta dizerem-se casadas, mesmo sem sê-lo, ou denegrir a sua união classificando-a como "um relacionamento sério" (que é a mesma classificação normalmente atribuída ao namoro de dois adolescentes em idade escolar).

Apesar de, nas últimas décadas do século XX, o aumento da quantidade de dissoluções de casamentos ter alarmado a sociedade ao ponto de motivar pesquisas acadêmicas das mais diversas áreas do saber, a inconteste - e inalterada - posição de privilégio do matrimônio na sociedade contemporânea, refletida indubitavelmente no Ordenamento Jurídico, demonstra que a aparente crise representa apenas uma fase de adaptação da instituição às pós-modernas expectativas sociais a seu respeito, que decorrem das próprias transformações sociais observadas nesse mesmo período.

O casamento continua sendo sinônimo de celebração, não somente no sentido de estabelecimento de um pacto, mas também no sentido de comemoração. Uma comemoração que, como vimos, é essencialmente o reconhecimento social do atingimento de uma das metas do ideal de felicidade do indivíduo, que é a constituição de uma família. Essa, em apertada síntese, é a razão pela qual o direito ao casamento civil integra, em conjunto com outras garantias, o direito à busca felicidade, à realização pessoal, e que, portanto, representa um valor inerente à garantia constitucional fundamental de proteção à Dignidade da Pessoa Humana.


6. A Controvérsia das Relações Homoafetivas no Direito Brasileiro

Passados já dois anos da histórica decisão proferida por unanimidade no plenário do STF, que pacificou a possibilidade de reconhecimento de entidade familiar formada por um par homoafetivo, ainda muito se discute a respeito dos efeitos de tal reconhecimento. A imprecisão conceitual da decisão do Supremo, embora proposital e bem-intencionada, longe de ser uma solução final, provocou muitas outras questões que Doutrina e Jurisprudência vêm tentando responder.

A consequência jurídica de ser família é o natural reconhecimento dos direitos oriundos de tal status. Direitos que, aliás, dizem respeito não só à legitimidade da relação, mas à sua preservação e à possibilidade de efetivação social do caráter familiar da união e, principalmente, à garantia da dignidade das pessoas envolvidas. Embora algumas das questões pacificadas em decorrência da decisão da Suprema Corte já fossem razoavelmente comuns na jurisprudência (deferimento de benefício previdenciário e inclusão em planos de saúde, por exemplo), a necessária definição de alguns outros elementos cruciais da vida em comum se tornou sensível.

Consideraremos como primeiro e mais relevante a possibilidade de candidatura conjunta à adoção, que constitui principalmente a proteção de um direito do próprio adotando. O artigo 227 da Carta Magna prevê a família, em primeiro lugar, como responsável pela garantia dos direitos humanos e pelo desenvolvimento físico, psicológico, e social das crianças e adolescentes. O reconhecimento do caráter familiar das uniões homoafetivas é, nesse sentido, o oferecimento a crianças e adolescentes desacolhidos o incremento das possibilidades de encontrar um lar onde possam ter o tão necessário afeto e condições de vida mais salutares e adequadas ao seu crescimento e desenvolvimento que os orfanatos, instituições de internação ou, no pior dos casos, que as ruas e a delinquência.

O Superior Tribunal de Justiça julgou recentemente Recurso Especial do Ministério Público do Estado de São Paulo (REsp 1281093 / SP), que questionava a possibilidade jurídica da adoção unilateral por uma mulher de filha biológica de sua companheira, passando ambas a ostentar o status de mães.

Contrariando o argumento do Parquet, que já houvera sido vencido em primeira e segunda instâncias, a relatora, Min. Nancy Andrighi, fez menção à "[...] evidente necessidade de se aumentar, e não restringir, a base daqueles que desejam adotar, em virtude da existência de milhares de crianças que longe de quererem discutir a orientação sexual de seus pais,  anseiam apenas por um lar"[6] para negar provimento ao recurso e, assim, reforçar a tendência includente da jurisprudência na questão da adoção homoparental.

Extrema relevância tem também o direito de curatela em caso de incapacidade civil, uma vez que a comunhão de vida estabelecida pela formação de família não diz respeito somente aos bons momentos da convivência.

Não se pode admitir que seja justo, ou mesmo que atenda aos interesses do incapaz, o deferimento de curatela a um parente consanguíneo em detrimento daquela pessoa que com ele conviveu e que melhor o conheceu durante anos a fio. A própria intenção legal da curatela é desafiada quando é deferida a qualquer um que não seja a pessoa que mais intimamente entende – e, portanto, é capaz de atender – os interesses do curatelado.

Embora ainda sejam raros na jurisprudência os exemplos de deferimento de curatela a companheiros homoafetivos (provavelmente porque a maioria das decisões de primeira instância não são chegam a ser contestadas), pode-se observar que boa parte das decisões condiciona o deferimento da curatela ao reconhecimento prévio de união estável. Assim, antes da decisão do STF, nos tribunais cuja jurisprudência dominante era contrária à possibilidade de reconhecimento da existência de união estável entre pessoas do mesmo sexo, o deferimento da curatela também era, por conseguinte, impossível.

Finalmente, a controvérsia mais acirrada, e principal foco deste trabalho, nos parece ser a respeito da possibilidade de casamento civil para os pares homoafetivos, seja oriundo do procedimento jurisdicional de conversão da união estável, como autoriza o §3º do art. 226 da Constituição da República, seja pelo procedimento administrativo direto ordinário.

Poucos meses depois do julgamento conjunto da ADI 4277 e ADPF 132 na Suprema Corte, o jornal Folha de São Paulo publicou uma pesquisa realizada pelo IBOPE [7], com margem de erro de dois pontos percentuais, segundo a qual a maioria dos brasileiros (63% dos homens e 48% das mulheres) ainda se manifestava contrária à institucionalização de algum tipo de apoio estatal à oficialização das famílias homoafetivas.

O mesmo estudo, entretanto, constatou que um percentual ainda maior da população afirma não ter problemas em aceitar e conviver com um amigo homossexual, ou mesmo aceitar a ocupação de posições de relevância social como médico, policial ou professor do ensino fundamental por pessoas homossexuais.

Esses dados demonstram que a tolerância da consciência coletiva à ideia de um casal formado por pessoas do mesmo sexo ainda esbarra no limite da publicidade das atitudes que, entende-se comumente, devem ser mantidas na esfera da intimidade(SEMPRINI, 1999). A compreensão e aceitação de que uma pessoa homossexual não é, por sê-lo, desprezível ainda não abarca a aceitação de que essa mesma pessoa demonstre publicamente sua condição.

Entretanto, o objetivo constitucional de construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I) conduz à natural conclusão de que o atraso do pensamento de uma parcela da sociedade, mesmo que esta seja a majoritária, não pode ser legitimado como inibidor do progresso e da efetivação de direitos de qualquer grupo dentro da sociedade.

O papel que a Ciência Jurídica representa na sociedade está intimamente atrelado ao interesse humano de mútua convivência, suas faculdades, seus deveres, sua liberdade, sua moralidade, seu comportamento. Todos esses valores compõem o Direito na medida em que ele é a aplicação de uma perspectiva normativa ao estudo do homem e dos fatos da sua conduta e organização social.

O operador do Direito precisa, então, estar atento ao fato de que o seu saber depende diretamente da observação da sociedade, dos seus hábitos, de suas peculiaridades, de sua concretude fática. Enquanto ciência humana, o Direito não pode abandonar o compromisso que tem de produzir saberes e soluções que possam efetivamente tutelar e valorar a diversidade dos fenômenos socioculturais.

Apesar disso, a despeito do paradigma hermenêutico estabelecido pela decisão do STF, e da clara tendência jurisprudencial do STJ de desconsiderar a diversidade de sexos como requisito para o casamento – video julgamento do REsp 1183378 / RS[8] – a jurisprudência ainda está longe de ser pacífica quanto à possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Nos Estados de São Paulo, Bahia, Alagoas e Piauí, em reação à recusa dos cartórios em receber os pedidos de conversão de união homoafetiva em casamento, ou a habilitação para o casamento direto entre pessoas do mesmo sexo, foram editadas pelas respectivas corregedorias normas regulamentando a habilitação para o casamento de pares homoafetivos e a conversão em casamento de suas uniões anteriormente registradas.

Nos demais Estados, as questões têm chegado lentamente aos tribunais, mas ainda sem uma resposta de caráter geral. No Rio de Janeiro, por exemplo, sete das dez apelações em ações de conversão de união homoafetiva em casamento julgadas pelas Câmaras Cíveis foram providas. Como a Corregedoria, entretanto, não publicou norma que regulamente a habilitação de pares homoafetivos para o casamento, diante dos pedidos, os cartórios do Registro Civil de Pessoas Naturais têm suscitado dúvidas ao juízo da Vara de Registros Públicos, que, por sua vez, os indefere.

Na doutrina, a divergência é ainda mais marcada. Autores como Carlos Roberto Gonçalves, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Arnaldo Rizzardo, entre outros, mantém seu entendimento clássico de que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é um negócio jurídico inexistente, uma vez que carente de pressuposto essencial, que seria a heterogeneidade de sexos.

A obra de Caio Mário da Silva Pereira, atualizada por Tânia da Silva Pereira, sustenta a classificação do casamento entre pessoas do mesmo sexo como inexistente, argumentando, para tanto, que a própria Constituição estabeleceria "a heterossexualidade como base do casamento"(PEREIRA, 2012).

Nesse mesmo entendimento, Maria Helena Diniz assevera enfaticamente que "absurdo seria admitir que o matrimônio de duas mulheres ou dois homens tivesse qualquer efeito jurídico"(DINIZ, 2012). Roberto Senise Lisboa corrobora a afirmação, dizendo, por sua vez, que "as uniões homoafetivas não foram expressamente reconhecidas como entidade familiar, a ser constituída a partir do casamento ou da união estável, que pressupõem a união de um homem e uma mulher"(LISBOA, 2012).

Silvio de Salvo Venosa, em que pese seu entendimento contrário à tese de inexistência do ato jurídico, tem um discurso ainda mais carregado, afirmando que "as uniões homossexuais nunca terão o estado de casamento nem a índole de família"(VENOSA, 2011).

Constatamos, entretanto, que a sustentação de uma argumentação de impossibilidade do casamento civil direto por pares homoafetivos através de uma interpretação negativa do texto legal, além de violar o Princípio da Não-Discriminação e o valor fundamental da Dignidade da Pessoa Humana e contrariar diretamente a orientação constitucional de efetivação da liberdade e autonomia privada, não tem a virtude – ou mesmo a intenção – de proteger a instituição do casamento; antes, pelo contrário, a reduz a instrumento de controle social por partes não legitimadas para tal.

De outro lado, capitaneados pela eminente jurista, ex-desembargadora e ativista dos direitos civis LGBT, Maria Berenice Dias, se posicionam renomados autores como Cristiano Chaves de Farias, Flávio Tartuce, Fábio Ulhôa Coelho, Daniel Sarmento, Roger Raupp Rios, Marianna Chaves, Paulo Roberto Vechiatti, sustentando, em termos gerais, a incompatibilidade da exegese contemporânea dos princípios constitucionais de não-discriminação, justiça, igualdade e solidariedade com a manutenção do modelo heterossexista do casamento.

Regina Beatriz Tavares da Silva, revisando a obra do saudoso jurista Washington de Barros Monteiro, retoma a definição clássica de casamento adaptando-a à realidade jurídica atual, conceituando-o como "a comunhão de vida entre dois seres humanos" (grifo nosso), claramente retificando o entendimento da necessidade de diversidade de sexos, ou mesmo a atribuição de papéis de gênero aos cônjuges(MONTEIRO e SILVA, 2012).

Dentre os enunciados apresentados e aprovados por ocasião da V Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, e que contou com a participação de renomados professores e profissionais de Direito de todas as áreas e de todas as regiões do país, o de número 526 afirma o entendimento atualmente majoritário, embora longe de ser pacífico, na doutrina: "Art. 1.726. É possível a conversão de união estável entre pessoas do mesmo sexo em casamento, observados os requisitos exigidos para a respectiva habilitação"[9].

Lenio Luiz Streck e Rogério Montai de Lima, apesar de reconhecerem que o direito à conversão da união homoafetiva em casamento é um dos efeitos decorrentes da decisão do STF no julgamento da ADPF 132 e ADI 4.227, reiteram duras críticas à atuação da Corte Suprema[10].

Às críticas desses e dos demais doutrinadores que classificam a atuação do Poder Judiciário como usurpadora da competência do Legislativo, tentando atribuir ao termo "ativismo judicial" uma conotação pejorativa, respondemos que o Princípio Constitucional da Não-Discriminação requer uma interferência direta e ativa do Direito em conceitos sociais e atos administrativos reconhecidamente discriminatórios.

A exigência de diversidade de sexos para o casamento, derivada da interpretação tradicional do texto do art. 1.517 do Código Civil, afronta os princípios constitucionais de Liberdade e Não-Discriminação, além de violar a previsão constitucional de proteção às diversas formas de família e o valor fundamental da Dignidade da Pessoa Humana (artigos 1º, III; 3º, IV; 5º, caput e 226 da Constituição).

O respeito à dignidade da pessoa humana abrange a proteção à possibilidade de efetivação das escolhas que a pessoa faz no exercício dos seus demais direitos, como à intimidade, à individualidade, à igualdade, à liberdade, à diferença, à exclusividade, à privacidade.

A homossexualidade não só é, hoje em dia, aceita pela sociedade cosmopolita brasileira como, antes de tudo, compreendida pela comunidade científica como condição natural do ser humano. Antropologia, Sociologia, Psicologia, Medicina, o próprio Direito e os demais ramos do saber que têm por objeto o conhecimento e a valoração do ser humano já são unânimes em afirmar que, ao contrário do que se pregou durante longo tempo, a homossexualidade não é doença, nem desvio de conduta, nem desvio de moral.

Negar jurisdição - e, portanto, a efetivação social de direitos - ao caso concreto por ignorar deliberadamente qualquer aspecto da personalidade do indivíduo, incluindo a sua sexualidade, é discriminação inadmissível diante da compreensão dos Direitos Fundamentais e/ou naturais de todo cidadão, que põe em risco, inclusive, a probidade intelectual necessária para que o Direito seja respeitado enquanto ciência.

O Direito tem a intrínseca responsabilidade de conduzir a sociedade ao esclarecimento, através do exercício racional de constante evolução dos institutos jurídicos, das instituições jurídico-sociais, dos discursos do Direito, das realizações político-jurídicas, do tratamento jurídico que se dá à pessoa humana[11].

Dar eficácia ao Princípio da Não-Discriminação contido na Carta Maior significa minimizar os preconceitos através de uma jurisdição inteligentemente includente e realística. É fato que, se o preconceito é alimentado pelas relações institucionais entre os grupos sociais, ele também pode ser reduzido pelo tratamento institucional que iguale os iguale em status social.

Não se pode ignorar o poder de internalização de valores que o Direito tem sobre os indivíduos na sociedade. A tutela jurisdicional efetiva tem caráter não só coercitivo, mas, principalmente, didático, na medida em que funciona como meio de transformação social, de exemplo e transmissão dos valores institucionais, resultando, por fim, na transformação da percepção e dos conceitos da sociedade.

Entendendo isso, entenderemos, por consequência, como uma prestação jurisdicional includente e antidiscriminatória tem o efeito social de desfazer, ainda que num processo naturalmente lento – afinal, tratam-se de transformações sociais – a própria discriminação, quiçá o preconceito que a motiva.


7. Conclusão

Concluímos nosso estudo com a constatação de que a efetivação dos direitos civis dos pares homoafetivos ainda é injustificadamente insuficiente e, portanto, ainda resta um longo caminho a percorrer para que o Direito tenha cumprido o seu papel de pacificador e equalizador social.

A questão a respeito da possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo permanece sem uma resposta definitiva, deixando o grupo social LGBT em situação de insegurança e desencorajamento. Tal ausência de resposta denuncia o embate entre a Democracia e valores cuja origem é exclusivamente religiosa. E, por isso mesmo, é evidente a sua extrema relevância, na medida em que se apresenta como um reflexo da própria laicidade do Estado Democrático de Direito.

A função do Direito é contramajoritária. É chegado, então, o momento em que o Direito precisa assumir essa posição e se manifestar em defesa das famílias e da própria instituição do matrimônio, contra “proteções” falaciosas que, em verdade, intentam transmutá-lo de situação jurídica subjetiva, pertinente à realização pessoal dos indivíduos, em símbolo do domínio hegemônico de determinada corrente de pensamento.

Em uma sociedade na qual já se tornou impensável a restrição ao casamento entre pessoas de etnias diferentes, também se torna óbvia a falta de justificativa para o impedimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

A instituição do casamento já experimentou, ao longo dos séculos, várias e drásticas mudanças. Chegamos, agora, ao ponto de concretizar definitivamente mais uma, a fim de adequá-la aos ideais de justiça, liberdade e solidariedade, e, principalmente, ajustá-la à sua função de realizadora da Dignidade da Pessoa Humana.

Vimos que o casamento é civil, e os efeitos externos dele decorrentes resultam da Lei, de modo que somente o Estado tem legitimidade para tutelá-lo. Vimos, também, que o casamento é instituição que diz respeito à realização do plano mais íntimo de existência do ser humano, de modo que a sua tutela deve seguir, tanto como parâmetro quanto como objetivo, a Dignidade.

Reiteramos, assim, nosso entendimento de que a interpretação segundo a qual o art. 1.517 do Código Civil exige diversidade de sexos para o casamento afronta a Ordem Constitucional de garantia de Liberdade e Não-Discriminação, endossa o preconceito, viola o direito à Autonomia Existencial do grupo LGBT e o expõe a uma injustificável situação de marginalidade e vulnerabilidade.

Encerramos com a sabedoria das palavras do eminente Min. Luis Felipe Salomão, “[...] O direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença”, e com a esperança de que esta sabedoria continue a transbordar dos Tribunais Superiores e contagiar a hermenêutica de todos os operadores do Direito, de modo a confirmar que a Justiça, meta principal do Estado Democrático de Direito, é sempre superior ao dogma e nunca cega.


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Notas

[1]Livre tradução do trecho “La via d' uscita da questi travagli e da questi dilemmi non può essere quella, vecchia, del riconoscimento ai singoli parlamentari della libertà di coscienza. Non è la loro libertà a dover essere salvaguardata, ma quella di ciascuno di noi."La legge non può in nessun caso violare i limiti imposti dal rispetto della persona umana", dice con il suo bel linguaggio la Costituzione proprio nell' articolo 32. E' la coscienza individuale, con i suoi tormenti, a dover essere rispettata da un legislatore al quale si addice la sobrietà e, nei casi limite, il silenzio. Inoltre, convenendo che vi sia un' area "indecidibile" per il legislatore e rimessa alle decisioni individuali nel quadro di principi generali, si troverebbe una regola capace di evitare conflitti laceranti là dove una o più delle parti politiche faccia riferimento a valori ritenuti non negoziabili.” RODOTÀ, Stefano. "I Diritti e la politica", artigo publicado no periódico italiano "La Repubblica" em 27/12/2006. Disponível em <http://ricerca.repubblica.it/repubblica/archivio/repubblica/2006/12/27/diritti-la-politica.033i.html> . Acesso em 14/02/2013.

[2]“A palavra 'homossexual' está excessivamente comprometida com o contexto médico-legal, psiquiátrico, sexológico e higienista de onde surgiu. O 'homossexual', como tento mostrar, foi uma personagem imaginária com a função de ser a antinorma do ideal de masculinidade requerido pela família burguesa oitocentista. Sempre que a palavra é usada evoca-se, querendo ou não, o contexto da crença preconceituosa que até hoje faz parecer natural dividir os homens em homossexuais e heterossexuais.” COSTA, JurandirFreire.Opus cit.

[3]BAGEMIHL, Bruce. Biological Exuberance – Animal Homossexuality and Natural Diversity. Nova Iorque: St. Martin’s Press, 1999.

[4]TENNENT, W. J. A Note on the Apparent Lowering of Moral Standards in the Lepidoptera.In: The Entomologist’s Record and Journal of Variation. Nova Iorque: 1987.

[5]“Os discursos dominantes da heterossexualidade produzem seu próprio conjunto de ignorâncias tanto sobre a homossexualidade quanto sobre a heterossexualidade” BRITZMAN, Deborah. Curiosidade, sexualidade e currículo. In. LOURO, Guacira L. O corpo educado - pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autentica, 1999.

[6] Disponível em

https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=26262373&sReg=201102016852&sData=20130204&sTipo=5&formato=PDF.Acesso em 20/02/2013.

[7] Disponível em http://media.folha.uol.com.br/cotidiano/2011/07/28/casamentogay.pdf.Acesso em 20/02/2013.

[8] Disponível em

https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=18810976&sReg=201000366638&sData=20120201&sTipo=5&formato=PDF. Acesso em 23/02/2013.

[9]Disponível em http://www.jf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direito-civil/jornadas-cej/v-jornada-direito-civil/VJornadadireitocivil2012.pdf. Acesso em 02/03/2013.

[10]LIMA, Rogério Montai; STRECK, Lenio Luiz. “A Conversão da União Estável em Casamento”. Disponível em http://www.conjur.com.br/2011-jul-06/uniao-homoafetiva-direito-conversao-uniao-estavel-casamento. Acesso em 01/03/2013.

[11]“Não há que se confundir estabilidade e segurança com imutabilidade. Os fatos da existência do homem são variáveis no espaço e no tempo, não podendo revestir-se de inalterabilidade, também, as normas que os disciplinam.” (MARINHO, 1997)


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OLIVEIRA, Daniel Rocha de. Direito de amar: vulnerabilidade e mitigação da autonomia privada do grupo LGBT pela ausência de garantia da possibilidade de celebração do casamento civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3583, 23 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24248. Acesso em: 18 abr. 2024.