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Desdobramentos políticos-jurídicos do Mensalão

Desdobramentos políticos-jurídicos do Mensalão

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Este estudo objetiva dissertar sobre as implicações político-constitucionais provenientes da Ação Penal nº470, extraindo dos contextos fático e jurídico os subsídios materiais necessários ao pleno desenvolvimento teórico-discursivo da temática proposta.

1. INTRODUÇÃO 

O presente trabalho volta-se aos desdobramentos político-jurídicos da Ação Penal nº 470, conhecida como o Processo do Mensalão, escândalo no qual veio à tona uma sofisticada organização criminosa dedicada à finalidade de compra de apoio político em favorecimento a cúpula do Poder Executivo nacional.

O tema demonstra sua relevância por se tratar de importantíssimo acontecimento sócio-jurídico, haja vista que, a intensa exposição midiática proporcionou o conhecimento das questões relativas ao processo a uma considerável quantidade de cidadãos, ao passo que, no que tange ao âmbito acadêmico, impulsionou-se a criação de uma nova teoria de vício de constitucionalidade.

Valendo-se do método bibliográfico-documental, em privilégio ao raciocínio dedutivo, este estudo intenta estabelecer os contornos fáticos correlatos às condutas que impulsionaram a responsabilização dos envolvidos no esquema de compra de apoio parlamentar, de modo a destacar os aspectos constitucionais que lhe são inerentes, apresentando noções primordiais à Democracia, como a Soberania Popular, a Representação Política e o Controle de Constitucionalidade.

Intenta-se nesta investigação a delimitação da interpretação constitucional apta ao mister de revelar a amplitude política e jurídica das condutas perpetradas pelos parlamentares condenados pelo Supremo Tribunal Federal, de modo a explicitar eventuais incongruências entre o sistema instituído pela Constituição e a atuação dos congressistas corruptos.


2. MENSALÃO: INTRODUÇÃO AOS ASPECTOS GERAIS          

Dos temas políticos mais explorados pelos veículos midiáticos brasileiros, sem sombra de dúvidas, o popularmente denominado ‘Mensalão’ é aquele ao qual fora direcionado maior destaque, desde as manifestações em prol das eleições diretas e do impeachment de Collor. O aludido assunto transpassou os muros das Academias e dos redutos intelectuais especializados e adentrou a casa do homem médio, o cidadão que, via de regra, permanece alheio aos acontecimentos jurídicos e políticos.

Constatada a evidentíssima relevância das informações correlatas a um dos maiores escândalos políticos do século, faz-se necessário perquirir, conforme seus contornos fáticos, “O que foi o Mensalão”?

É no corpo do relatório, baseado na denúncia recebida pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal que se pode encontrar a definição jurídica primordial ao pleno desenrolar das problematizações propostas ao longo do artigo.

A exordial acusatória que impulsionara o Poder Judiciário, originando assim a Ação Penal nº 470, remete a uma organização criminosa que executou operações financeiras ilegais, movimentando fundos empregados na compra de apoio político, de modo a viabilizar a aprovação parlamentar de determinadas propostas jungidas aos interesses do partido que detinha o comando Poder Executivo Federal.

Conforme o relatório lavrado pelo ministro Joaquim Barbosa (2007, p.6)

O Procurador-Geral da República narrou, na denúncia, uma “sofisticada organização criminosa, dividida em setores de atuação, que se estruturou profissionalmente para a prática de crimes como peculato, lavagem de dinheiro, corrupção ativa, gestão fraudulenta, além das mais diversas formas de fraude” (fls. 5621).

Isto posto, conforme as palavras proferidas na denúncia levada a cabo pelo Procurador Geral da República, tecnicamente, o Mensalão consistia em práticas periódicas de direcionamento de prestações pecuniárias (oferecidas pela cúpula do Partido dos Trabalhadores) a determinados membros do parlamento, que, a título de contraprestação apoiavam politicamente (através de seus votos) as iniciativas do aludido partido.

Segundo a acusação, todos os graves delitos que serão imputados aos denunciados ao longo da presente peça têm início com a vitória eleitoral de 2002 do Partido dos Trabalhadores no plano nacional e tiveram por objetivo principal, no que concerne ao núcleo integrado por JOSÉ DIRCEU, DELÚBIO SOARES, SÍLVIO PEREIRA e JOSÉ GENOÍNO, garantir a continuidade do projeto de poder do Partido dos Trabalhadores, mediante a compra de suporte político de outros Partidos Políticos e do financiamento futuro e pretérito (pagamento de dívidas) das suas próprias campanhas eleitorais. (BRASIL, 2007, p.6)

Disso decorre a assertiva de que, o Mensalão, propriamente dito, era essa “mesada”, percebida pelos parlamentares cooptados. Mensaleiros, conforme o teor da denúncia, foram os (originariamente) quarenta réus que, omissiva ou comissivamente, incorreram em condutas antijurídicas tipificadas pela lei, residindo na incidência de tais condutas o início da persecução penal iniciada.

Nesse sentido a lição de Harada (2006, p.1)

Literalmente, a palavra ‘mensalão’ significa uma grande soma de dinheiro que se paga, ou se recebe todo mês, em virtude de uma determinada obrigação. Não é nesse sentido que a mídia tem noticiado. Antecipando ao trabalho dos dicionaristas pode-se afirmar, com base naquilo que passou a ser do conhecimento público, que o ‘mensalão’ significa um recurso financeiro extra a ser pago, com regularidade, a determinados deputados, para agilizar a aprovação de projetos legislativos de interesse do governo, nem sempre coincidentes com o interesse público, assim entendido como o somatório dos interesses individuais dos cidadãos.

A precitada organização criminosa, conforme o que fora apurado ao longo de todo o desenrolar do processo, atuou no período de 2003-2007, revelando-se complexa no tocante à distribuição de suas atribuições internas, posto que, composta de vários núcleos, cada qual com suas responsabilidades dentro do esquema, todos de extrema relevância à plena fruição das práticas escusas engendradas.

Como era de se esperar, à primeira vista, a feição penal ínsita à temática proposta é a que mais chama a atenção daquele que se lança ao trabalho de interpretação dos contornos jurídicos do mencionado esquema de compra de apoio político. Desde o nome da ação que visa responsabilizar os envolvidos (Ação Penal nº 470), passando pela extensa gama de tipos penais subsumidos às diversas condutas praticadas, até a possibilidade real de cumprimento de pena privativa de liberdade, inicialmente em regime fechado, pelos que forem condenados, há uma extrema remissão aos aspectos penais e processuais-penais afetos à temática, ora abordada.

No entanto, os aspectos de índole constitucional que interpenetram os desdobramentos fáticos provenientes do desfecho da ação penal supracitada são aqueles que, primordialmente, interessam a este estudo.

Nesse sentido, conforme as deliberações do pleno do Supremo Tribunal Federal, no decorrer do longo julgamento, amplamente divulgado pela mídia, o qual culminou na condenação de vinte e cinco réus, dentre eles, sete deputados federais, muitos deles líderes das bancadas de seus respectivos partidos (inclusive um que, pasme-se, chegou a exercer a presidência da casa), coloca-se a questão da constitucionalidade das diversas espécimes normativas expostas ao crivo do parlamento, ao longo dos quatro anos em que o sistema de compra de apoio politico perdurara.

A expectativa é de que, no mais tardar, até o fim do primeiro semestre do corrente ano (2013), a sentença penal condenatória emitida pela Corte Constitucional transite em julgado para que o writ passe a gerar todos os efeitos que lhe são inerentes, como a perda do mandato e a prisão dos réus condenados que (tranquilamente) ainda continuam exercendo função legiferante. “Com a publicação do acórdão, diferentes graus de impactos poderão ser verificados em variadas áreas do Direito” (ANDRADE, 2013, p.2).

Destarte, dada a constatação da veracidade dos fatos alegados e devidamente apreciados pelo Tribunal Constitucional, evidenciada a cabal existência de um sistema escuso de compra de apoio político e o notório enquadramento do Mensalão na categoria de práxis eminentemente antidemocrática, faz-se necessário demonstrar, sob o viés constitucional, a profundidade e a extensão dos efeitos gravosos afetos às perniciosas condutas perpetradas


3. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, SOBERANIA POPULAR E REPRESENTAÇÃO POLÍTICA  

A República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito (art.1º, caput CB/88), conforme a ideia incorporada à tipologia do Estado Brasileiro, trata-se de uma república constitucionalmente erigida, pautada pelos princípios da Democracia e pelo império da lei.

São oportunas as palavras de Mendes et. al. (2009, p.170)

Em que pesem pequenas variações semânticas em torno desse núcleo essencial, entende-se como Estado Democrático de Direito a organização política em que o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes, escolhidos em eleições livres e periódicas, mediante sufrágio universal e voto direto e secreto, para o exercício de mandatos periódicos, como proclama, entre outras, a Constituição brasileira. Mais ainda, já agora no plano das relações concretas entre o Poder e o indivíduo, considera-se democrático aquele Estado de Direito que se empenha em assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e políticos, mas também e sobretudo dos direitos econômicos, sociais e culturais, sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles direitos.       

Conforme é possível depreender sem maiores dispêndios, no que concerne à titularidade material do poder, pertence ao povo, que pode exercê-la direta ou indiretamente, como asseveram as disposições do parágrafo único do já mencionado art.1º da Magna Carta.

No tocante às possibilidades de exercício direto do poder pelo seu titular, considerando-se as disposições constitucionais, tem-se que possuem reduzida incidência fática. Na realidade, os preceitos da Democracia Indireta são aqueles que se fazem sentir de forma mais enfática quando se tem em tela a práxis política brasileira.

Assim, considerando-se que, numa Democracia, “todo poder emana do povo” e que, a aludida soberania popular, por força da tradição que mitiga os instrumentos que viabilizam a prática da Democracia Direta, manifesta-se mais enfaticamente nas ações dos representantes, eleitos via sufrágio universal e voto direto, os quais são incumbidos da administração do Estado (Poder Executivo) e da criação das leis (Poder Legislativo).

Não se pode olvidar que os representantes preservam sua autonomia no que concerne a decisões e ações que desenvolvam, mas, estão inelutavelmente vinculados ao interesse público, nessa senda, como já fora exposto em momento oportuno, as condutas atribuídas aos condenados na Ação Penal nº 470, na qual fora constatado o detrimento do interesse público em privilégio aos interesses particulares de certos representantes, são verdadeiros atentados ao Estado Democrático por afrontarem os preceitos da Soberania Popular, deturpando a essência do conceito pragmático de Representação Política.

Impende destacar que a exacerbada distância que há entre o cidadão e as questões fundamentais correlatas ao Estado constitui um abismo que propicia a predominância da Democracia Formal. As normas e princípios positivados na Lei Maior encontram na inércia dos jurisdicionados o maior obstáculo à sua concretização no plano fático, mecanismos teoricamente utilíssimos como a Iniciativa Popular de Projeto de Lei (§2º do art. 60, CF/88), infelizmente, não são muito utilizados.

Nesse sentido, o demasiado interesse midiático voltado ao, popularmente conhecido, “Processo do Mensalão”, que provocou relevante comoção social atraindo considerável atenção em todos os segmentos da sociedade. Por força dos instrumentos de tecnologia da informação, passando pela transmissão ao vivo pelo canal institucional do Poder Judiciário (TV Justiça), os momentos mais decisivos do julgamento foram observados e debatidos por uma imensa gama de pessoas. O povo se voltou criticamente às ações de seus representantes, o que é extremamente necessário ao exercício material das prerrogativas democráticas.

Por certo, não há democracia sem informação, pressuposto lógico do exercício da garantia constitucional à Liberdade de Expressão (art.5º, IX CF/88). Rememora-se que desde seus primórdios, em se tratando de Democracia , as práticas discursivas são indispensáveis à sua plena efetivação. Deve-se ressaltar, que o modus operandi midiático tradicional é capaz de criar e manutenir certas concepções ideológicas que se incorporam ao inconsciente coletivo e, muitas vezes desviam o foco da atenção dos receptores, que, induzidos pelas tendências incorporadas às informações recebidas, tomam por pequeno o que é grande e vice-versa. É o caso da polarização engendrada no tocante às atuações dos ministros relator e revisor da Ação Penal nº 470, percebida enfaticamente nas redes sociais, locus no qual surgiram diversas manifestações de repúdio às posições defendidas pelo ministro Lewandowski, ao passo que despontara uma espécie de culto à personalidade do magistrado Joaquim Barbosa, suposto “Vingador Negro”, suposto restaurador da honra do Estado Brasileiro. Assim, se por um lado os assuntos públicos tornam-se um Espetáculo, como argumenta Swartzemberg apud Bittar (2011), num outro viés, os cidadãos, frente aos ilícitos contra a Democracia praticados por alguns de seus representantes, sem sombra de dúvidas, começaram a pensar com mais intensidade na coisa pública e, pensar é o primeiro passo para agir.

Uma sociedade materialmente democrática, “livre, justa e solidária” (art.3º, I, CB/88), é uma sociedade na qual o exercício da soberania popular transcende o momento do voto. Não se intenta aqui diminuir a importância da previsão constitucional do sufrágio universal corporificado no voto direto, secreto e periódico a ser exercido em eleições livres (art.14, CF/88), o que se pretende demonstrar é que o ato de votar é, tão somente, o impulso oficial do processo contínuo do exercício material da soberania pelo seu titular constitucionalmente exigido, que considerada a democracia indireta, precisa exercer a devida fiscalização das ações de seus representantes, posto que, os cidadãos, por força do pacto constitucional também são, por excelência, guardiões da Democracia e, por conseguinte da Constituição.

Portanto, reitera-se que a Ação Penal nº 470 fora amplamente divulgada pela mídia e que uma quantidade considerável de pessoas passou a se interessar com mais intensidade pelos assuntos do Estado, nesse ínterim, verificou-se que o acesso à informação, privilegiado pela tecnologia contemporânea mostra-se muito útil aos desdobramentos do exercício da soberania popular, pois incute nos representados criticidade no tocante aos atos de seus representantes, postura primordial ao cumprimento do projeto constitucional, que privilegia a concretização dos objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito Brasileiro.


4. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DOS ATOS LEGISLATIVOS  

Conforme assevera expressa disposição constitucional, os três poderes estatais são “independentes e harmônicos entre si” (art.2º CF/88), disso decorre o fato de, a princípio, a Constituição não permitir ingerências entre poderes, primando para que as principais funções do Estado, considerado em todas as suas esferas, se desenvolvam com a devida autonomia.

Ocorre que o próprio sistema constitucional que vigora desde a Magna Carta de 1988 institui situações em que Poder Judiciário, exercendo a salvaguarda das disposições constitucionais, pronunciar-se-á acerca da viabilidade constitucional de determinada lei em manifestação positiva ou negativa sobre o mérito de sua constitucionalidade.

Nenhuma norma, a priori, gerará efeitos se oposta aos desígnios positivados pela Constituição Federal, o sistema constitucional só pode operar em perfeita consonância com os fins que objetiva se houver coerência estrutural em seu âmago, sendo que, é necessária a coesão, de natureza hierárquico-normativa, entre a norma fundamental situada no cume da pirâmide e as demais regras, até a base da escala valorativa. “A ideia de controle de constitucionalidade está ligada à Supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico e, também, à de rigidez constitucional e proteção dos direitos fundamentais” (MORAES, 2011, p.729).

Compete ao Poder Judiciário, principalmente, à Corte Constitucional, mediante o devido impulso, deliberar acerca da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de determinada lei ou ato oriundo de quaisquer dos poderes instituídos, sempre que a controvérsia comprometa a efetivação de determinado direito individual ou coletivo.

Considerando-se a disciplina jurídica brasileira referente ao Controle de Constitucionalidade Jurisdicional, tem-se que, tanto atos imputáveis ao Poder Executivo (administrativos) quanto os correlatos à atuação do Congresso Nacional (legislativos) são passíveis de apreciação pelo Poder Judiciário. Assim, para fins de simetria temática, este estudo se centrará na questão do Controle Jurisdicional de Constitucionalidade dos Atos Legislativos, nesse mister, faz-se necessário indagar: Quando uma lei pode ser considerada inconstitucional?

A doutrina clássica identifica duas categorias de inconstitucionalidade, uma que é verificada tendo-se por parâmetro o procedimento legiferante em si (inconstitucionalidade formal) e outra, aferível pela análise substancial da lei, na qual a matéria tratada pelo instrumento normativo será crivada (inconstitucionalidade material).

Há ações legislativas que ensejam a devida correção constitucional pela via jurídica, por não observarem o procedimento legalmente imposto, por tratarem de matéria que exorbite a sua competência, ou ainda, por apresentarem disposições conflitantes com o texto constitucional.

Impende destacar que a omissão do Parlamento também dá ensejo ao controle de constitucionalidade. A alusão se refere àquelas normas, positivadas pela Constituição Cidadã, precipuamente, as inseridas no amplexo dos direitos e garantias fundamentais que exigem complemento legislativo para que gerem os efeitos que constituem seu aspecto teleológico.

Sempre que a inércia do Congresso causar lesão a direito, individual ou coletivo, poderá ser pleiteada a declaração de inconstitucionalidade por omissão. Veja-se que, tanto condutas comissivas quanto posturas omissivas, provenientes do órgão funcional legiferante, poderão autorizar o controle de sua constitucionalidade.

A constitucionalidade de um ato comissivo, ou de uma omissão parlamentar pode ser declarada pela via direta ou pela via incidental. Sempre que verificados no plano fático vício formal, vício material ou omissão legislativa, aqueles legitimados presentes no rol do art. 103 I-IX da Constituição estarão autorizados à propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade ou Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, a ser apreciada pelo Tribunal Constitucional, caracterizado o Controle Concentrado. Nesse diapasão a crítica de Silva (2009) direcionada à ausência de legitimidade para “qualquer do povo” propor a supracitada ação direta.

Noutro viés, de modo incidental, em qualquer processo, desde que presente contrariedade a dispositivo constitucional, pode ser suscitada a questão da inconstitucionalidade a ser decidida pelo juízo no qual tramita a ação, independentemente de sua posição hierárquica, evidenciando-se assim o Controle Difuso.

Como se tentou explicitar ao longo deste item, no tocante ao controle jurisdicional de constitucionalidade dos atos do Poder Legislativo, fora demonstrado que, tanto ações quanto omissões oriundas dos representantes políticos que exercem função legiferante são passíveis de controle de constitucionalidade que, conforme a doutrina tradicional, em se tratando de conduta comissiva, pautar-se-á pela ocorrência de vício formal ou material, relembrando que, no que tange à estrutura procedimental de verificação da constitucionalidade, pode ser utilizada a via direta (Controle Concentrado) e a via incidental/indireta (Controle Difuso). Dessarte, passa-se à análise de uma nova espécie de vício, maculador da atuação legislativa, passível de ser submetido ao controle de constitucionalidade.


5. TEORIA DO VÍCIO DE DECORO PARLAMENTAR

A Constituição é a lei maior de um Estado. Considerando-se um Estado comprometido em igual medida tanto com o Direito, quanto com a Democracia, tem-se que a Magna Carta jurídico-política, instituidora da facticidade estatal, traz em seu âmago as bases instrumentais do Estado erigido sob a égide de suas disposições.

Conforme os preceptivos que delineiam o sistema constitucional brasileiro, em hipótese alguma pode haver norma jurídica que destoe das previsões constitucionais situada no topo da pirâmide hierárquica. Sempre que qualquer disposição normativa, integrante da Carta Maior ou de diplomas normativos infraconstitucionais (destacando-se que também podem haver normas constitucionais inconstitucionais, BACHOF, 1994) não se coadunar com o que fora positivado pelos constituintes (originário e derivado), tal disposição legal será passível de Controle de Constitucionalidade.

A doutrina clássica apresenta duas espécies de vício tendentes a macular a constitucionalidade de uma norma, desse modo, ensejando discussões acerca da produção dos efeitos das leis nas quais os mesmos se verifiquem. Pode haver vício de constitucionalidade formal, de cunho procedimental, referente à inobservância dos trâmites impostos constitucionalmente como requisito de eficácia das disposições de determinado espécime normativo, como exemplo uma Emenda Constitucional aprovada em inobservância do quantum relativo ao quórum qualificado previsto pelo §2º do art.60 da Constituição Federal de 1988.

A seu turno, o vício material se constata quando o teor de determinada disposição normativa atenta flagrantemente contra disposição presente no arcabouço constitucional. É o caso de uma hipotética lei que regulamente a pena de trabalhos forçados a condenados por crimes hediondos. Ora, não obstante a natureza da infração penal, a lei constitucional vigente é expressa ao vedar a aplicação de pena de trabalhos forçados (art.5º, XLVII, “c”, CB/88).

Classicamente, como fora demonstrado, apresentam-se os vícios de ordem formal e os de natureza material como fatores tendentes a motivar o pleito pela declaração de inconstitucionalidade das leis que porventura venham a inquinar, tanto pela via direta, quanto pela via incidental.

Dessarte, ao se considerar o escândalo do Mensalão, transfigurado na Ação Penal nº 470, faz-se necessário dissertar sobre as implicações científico-jurídicas inerentes à temática, relevando-se que o aspecto estritamente jurídico, exteriorizado na responsabilização penal dos representantes condenados pelo Supremo Tribunal Federal traz apenas uma das diversas possibilidades de estudo correlatas ao mencionado julgamento. Há implicações político-constitucionais que não podem ser olvidadas, nesse sentido, indaga-se: Os atos oriundos de representantes políticos, eleitos para o mister de zelar pelo interesse público, que não se coadunam com a finalidade inerente a atividade de representação política, são constitucionalmente válidos? Noutras palavras, a postura do parlamentar que no exercício de suas atribuições, ao votar pela aprovação ou rejeição de determinado projeto de lei, age para promover a satisfação de seus interesses pessoais, mediante percepção (ilícita) de pecúnia, pode ser questionada sob o viés de sua constitucionalidade?

A resposta se situa na obra do professor Pedro Lenza, estudioso do Direito Constitucional que, provocado pela Ação Penal nº 470, cunhou um raciocínio teórico-discursivo muito pertinente acerca do controle de constitucionalidade dos atos legislativos, apresentando a Teoria do Vício de Decoro Parlamentar.

Como se sabe e se publicou em jornais, revistas etc., muito se falou em esquema de compra de votos, denominado “mensalão”, para votar de acordo com o governo ou em certo sentido. As CPIs vêm investigando e a Justiça apurando, e, uma vez provados os fatos, os culpados deverão sofrer as sanções de ordem criminal, administrativa, civil etc. O grande questionamento que se faz, contudo, é se, uma vez comprovada a existência de compra de votos, haveria mácula no processo legislativo de formação das emendas constitucionais a ensejar o reconhecimento da sua inconstitucionalidade. Entendemos que sim, e, no caso, trata-se de vício de decoro parlamentar, já que, nos termos do art. 55, § 1.º, “é incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”. [...] Em nosso entender, sem dúvida, trata-se de inconstitucionalidade, pois que maculada a essência do voto e o conceito de representatividade popular. (LENZA, 2011, p.129) (grifo do autor) 

Percebe-se que a teorização do aludido professor, baseia-se, precipuamente, no teor no §1º do art.55 da Constituição Brasileira de 1988, ipsis litteris :

Art.55 [...] §1º É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.

Com a lavratura do acórdão referente à Ação Penal nº 470, transcorrido o prazo para a apresentação dos recursos cabíveis, haverá o trânsito em julgado do decisum. Em caso de manutenção das condenações iniciar-se-á o cumprimento das penas pelos vinte e cinco réus condenados, dentre os quais quatro são deputados federais que se encontram em pleno gozo de suas funções políticas. Como prevê a legislação, a condenação implicará, além das penas de reclusão/detenção/multa, na perda do exercício do mandato eletivo, assim, num viés temporal, considerando-se a teoria de Lenza e a certeza da veracidade das ilicitudes perpetradas e provadas ao longo do processo, questiona-se a validade e a eficácia dos projetos de lei de interesse da cúpula do Poder Executivo (grande favorecida pela distribuição das “mesadas”) aprovados por força das intervenções dos réus condenados, reitera-se, a maioria, líderes de bancada em suas respectivas agremiações político-partidárias.

Pedro Lenza centra-se na questão das Emendas Constitucionais, porém, nada obsta a interpretação extensiva da teorização sub examine, assim, as demais espécies normativas apreciadas pela câmara no período de 2003-2007, quando o esquema de compra de apoio político apelidado de Mensalão vigorou a pleno vapor, incitam o devido questionamento concernente à sua constitucionalidade.

A Teoria do Vício de Decoro Parlamentar abre caminho para que os pretórios, desde que devidamente impulsionados, se manifestem acerca da coerência constitucional das leis cunhadas durante o supracitado período. O professor da Universidade de São Paulo elenca, em complemento ao que dispõe a doutrina clássica, uma terceira espécie de vício, passível de ensejar a inconstitucionalidade de uma norma. Se há o vício material e o formal, também há o vício de decoro parlamentar.

Soa evidente que os parlamentares condenados na Ação Penal nº 470 abusaram das prerrogativas inerentes a seus cargos e perceberam vantagens indevidas (§1º do art.55, CB/88). Posto que, etimologicamente, decoro significa “decência” (FERREIRA, 2001, p.221), probidade, lisura, conformidade com padrões éticos, morais e, sobretudo, jurídico-constitucionais, pode se dizer que os parlamentares condenados no processo do Mensalão são indecorosos de per si.

À luz do pensamento cunhado por Lenza (2011) as disposições legais aprovadas pelo parlamento, especificamente, pela Câmara dos Deputados, podem ser submetidas ao Controle de Constitucionalidade, direto ou incidental, pois, o vício evidenciado contraria tanto uma disposição constitucional específica (art.55, §1º, CF/88), quanto toda a essência do sistema constitucional.

Pragmaticamente, as polêmicas reformas tributária e previdenciária, se apresentam como motivações mais propícias ao questionamento de sua constitucionalidade. Em Minas Gerais, por meio do controle difuso, a Emenda Constitucional nº41 (Reforma Previdenciária) fora questionada e a sentença de primeiro grau, exarada pelo juiz federal Geraldo Claret de Arantes (2013, p.6), ao decidir pela declaração de inconstitucionalidade afirmara que:

A inconstitucionalidade advinda do vício de decoro resulta diretamente da mácula que teria envolvido o voto que constitui, em suma, o sagrado valor de representação popular conferida pelo povo que se faz assim representar pelo parlamentar corrompido, ferindo o que consta do artigo 1º, inciso I da Constituição Federal, que estabelece como ilar do Estado Democrático de Direito a soberania popular, neste caso, violada dramaticamente pela venda de votos no parlamento que a representaria.

Dessarte, como asseveram os estudiosos do Direito, a ciência jurídica é dinâmica, qual seja, deve manter um diálogo contínuo com a realidade social e se molda conforme os fatos que são expostos ao seu crivo.

A Teoria do Vício de Decoro Parlamentar é consequência científica do Mensalão, trata-se de uma interpretação constitucional referente aos desdobramentos políticos dos ilícitos praticados pelos representantes condenados, fundamentada na Lei Maior do Estado Democrático Brasileiro.

Por certo, dada a incipiência dos estudos voltados à aludida temática, as construções jurisprudenciais e científicas concernentes ao tema ainda levarão algum tempo para se consolidar. O próprio Supremo Tribunal Federal não tem um posicionamento definido sobre a questão, “Gilmar Mendes entendeu que a legalidade das reformas está mantida” (TERRA, 2013, p.1), ao passo que Lewandowski adverte o fato de a questão ser controvertida aludindo que a mesma “se revela muito problemática” (idem).

Portanto, demonstrada a existência e pertinência da Teoria do Vício de Decoro Parlamentar, problematização científica voltada à teleologia constitucional contrastada com a atuação criminosa de certos representantes políticos, devidamente condenados em devido processo legal-constitucional, caberá aos estudiosos do Direito, bem como aos demais cidadãos atentarem para os vindouros desdobramentos jurídico-políticos de sua aplicação, nunca perdendo de vista que, em se tratando da teoria em comento, é perceptível que sob o viés da racionalidade constitucional, trata-se de uma proposição muito condizente com o espírito da Constituição Brasileira, posto que, quaisquer lesões ao patrimônio jurídico individual ou coletivo, advindas de leis engendradas por parlamentares cooptados, infratores condenados que se valeram da coisa pública para a obtenção de benefícios particulares, devem ser coibidas.


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Conforme se apurou no julgamento da Ação Penal nº 470, durante o primeiro mandato presidencial exercido pelo Partido dos Trabalhadores, uma organização criminosa composta por uma quantidade considerável de representantes políticos, assessorados por empresários, marqueteiros e diversos outros integrantes da administração pública operou no Congresso Brasileiro com a finalidade de comprar apoio político intentando a cooperação de determinados parlamentares na aprovação das propostas legislativas favoráveis aos desígnios da cúpula do Poder Executivo.

O popularmente denominado “Processo do Mensalão” atraiu demasiada atenção da mídia, tornando-se um dos assuntos mais explorados pelos veículos midiáticos, fator que contribuíra muitíssimo para despertar a curiosidade dos cidadãos no tocante aos temas relativos ao Estado.

Toda a gama de condutas ilícitas praticadas pelos réus condenados, principalmente no que concerne aos que à época exerciam mandato eletivo de representação política, remete a uma análise conceitual dos aspectos essenciais do Estado Democrático de Direito Brasileiro, no qual predominam as práticas de democracia indireta para as quais a representação política é primordial. Dessa perquirição, surge a constatação de que, mais do que condutas tipificadas pela legislação penal, os parlamentares infratores cometeram notório atentado ao sistema constitucional vigente.

Nenhuma disposição normativa pode conflitar com o que prescreve a Constituição. Nesse sentido, a Supremacia da Magna Carta apresenta-se como o principal fundamento do Controle de Constitucionalidade, o qual permite que o Poder Judiciário atue como guardião da Lei Maior em exercício de salvaguarda dos prescritivos positivados pelo legislador constituinte.

 Em complemento à doutrina tradicional acerca da disciplina do Controle de Constitucionalidade, que preleciona dois vícios aptos a propiciar o debate acerca da constitucionalidade de determinado ato normativo (vício formal e vício material), surge a Teoria do Vício de Decoro Parlamentar, fundamentada pelo §1º do art.55 da Constituição Federal de 1988, que institui uma terceira categoria de vício.

Verificada a correlação existente entre a teoria citada e o julgamento da Ação Penal nº 470, tem-se que, a nova categoria de vício trazida pela teoria em comento seria passível de ensejo de Controle de Constitucionalidade, considerada a postura indecorosa dos representantes que no exercício de seu mister vilipendiaram o interesse público.

Em recente decisão proferida num mandado de segurança julgado na Primeira Vara da Fazenda e Autarquias de Belo Horizonte, o titular do juízo optou pela concessão da segurança pleiteada pela impetrante, citando a teoria do vício de decoro parlamentar na parte dispositiva da sentença.

 Portanto, no decorrer deste breve artigo foi possível constatar que o escândalo do Mensalão é um objeto de estudo que não se vincula tão somente à sua conotação penal, percebeu-se que os aspectos constitucionais correlatos às ações da organização criminosa julgadas pelo Supremo Tribunal Federal possuem a mesma relevância, sobretudo, por sinalizarem possíveis consequências políticas advindas das condutas criminosas que imiscuíram o processo legislativo constitucional ao tempo em que foram praticadas. Assim, conclui-se que conforme se verificou in concreto a Teoria do Vício de Decoro Parlamentar demonstra pertinência no raciocínio que prescreve para o pleito do Controle de Constitucionalidade dos Atos Legislativos, lesivos ao interesse público, praticados pelos representantes políticos condenados na Ação Penal nº 470.


REFERÊNCIAS 

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PAPALINO, Pedro Igor. Desdobramentos políticos-jurídicos do Mensalão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3998, 12 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28225. Acesso em: 25 abr. 2024.