Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/31323
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Igualdade e discriminação à luz das políticas de ações afirmativas

Igualdade e discriminação à luz das políticas de ações afirmativas

Publicado em . Elaborado em .

Quais as relações entre igualdade, discriminação e ações afirmativas? Cotas e ações afirmativas significam a mesma coisa? Este trabalho pretende demonstrar que a igualdade formal, por si só, não contribui efetivamente para diminuir a discriminação social

Resumo: Quais as relações entre igualdade, discriminação e ações afirmativas? Cotas e ações afirmativas significam a mesma coisa? Qual o seu fundamento legal? Este trabalho pretende demonstrar que a igualdade formal, representada pelo princípio da igualdade perante a lei, por si só, não contribui efetivamente para diminuir o preconceito, a discriminação social e racial ou qualquer outra forma de discriminação. Faz-se necessário promover, portanto, a discriminação positiva através de políticas de ações afirmativas. Para tanto, em um primeiro momento, apresentaremos os conceitos básicos de etnia, diversidade, preconceito, racismo, estereótipos, reparação e discriminação social e racial. Já  segundo momento, trataremos de uma questão básica para promover a igualdade, que é o debate e a discussão sobre desigualdade e discriminação. Em um terceiro momento, analisaremos o que significam e a finalidade das ações afirmativas e cotas. Tratando da origem e experiências dos Estados Unidos da América e do Brasil no que tange as políticas de ação afirmativa e as cotas. No caso brasileiro será destacando a importância da Lei Federal nº 12.711/2012, que contempla cotas raciais e sociais para afrodescendentes, indígenas e estudantes que tenham cursado integralmente o Ensino Médio nas escolas públicas.

Palavras chaves: Igualdade, discriminação, preconceito, ação afirmativa e cotas.

Sumário: 1. Considerações iniciais; 2. Conceitos básicos utilizados no contexto da igualdade e discriminação; 3. Igualdade, desigualdade e discriminação; 4. Ação afirmativa e cotas como medidas compensatórias; 5. Considerações finais; Referências bibliográficas.


1. Considerações iniciais

A Constituição Federal declara que “todos são iguais perante a lei” [...] (art. 5º “caput”), mas a desigualdade e discriminação são históricas e permanentes, fazendo parte da atual realidade brasileira. Então, como promover a igualdade neste contexto para atender o princípio da isonomia previsto na Constituição Federal? Por um lado, este trabalho pretende analisar e/ou demonstrar que a igualdade formal não é suficiente, por si só, para efetivamente diminuir o racismo, o preconceito e qualquer outra forma de discriminação. Por outro lado, apresenta as ações afirmativas como um porto seguro para implementação de medidas compensatórias, que incluem o sistema de cotas, propondo uma discriminação positiva de inclusão social, que atenda o princípio da isonomia como base de sustentação do Estado Democrático de Direito.

Para tanto, no primeiro momento vamos apresentar conceitos básicos utilizados no contexto da igualdade e discriminação, como das expressões etnia, diversidade, preconceito, racismo, estereótipos, reparação, discriminação, discriminação racial. No segundo momento, vamos analisar e discutir a igualdade, a desigualdade e a discriminação (racial e positiva) do ponto de vista teórico, legal e no Direito Internacional dos Direitos Humanos. No terceiro momento, responderemos algumas indagações como: o que é ação afirmativa? Cotas e ação afirmativas significam a mesma coisa? Qual o fundamento legal? Qual a relação da discriminação positiva com as ações afirmativas? Em relação às ações afirmativas e cotas vamos tratar das experiências dos Estados Unidos da América e do Brasil. No caso brasileiro, vamos destacar a importância dos programas de ações afirmativas e cotas no campo da educação, em especial no curso superior.

Enfim, estamos em um bom momento para refletir, discutir e contribuir para as políticas de ações afirmativas e de cotas raciais e sociais, quer sejam na educação ou no mercado de trabalho. Observamos que nos meados da década de 1990, mais precisamente a partir do século XXI, os governos passaram a desenvolver programas de ações e políticas públicas afirmativas principalmente na área da educação, fato que vem provocando a participação e a discussão dos diferentes segmentos da sociedade brasileira, por ser tema de política de Estado e de interesse geral. Aliás, em uma sociedade do conhecimento e globalizada, a educação é prioridade.


2. Conceitos básicos utilizados no contexto da igualdade e discriminação

Antes de adentrarmos ao tema proposto, é importante apresentar os conceitos e entendimentos das expressões etnia, diversidade, preconceito, racismo, estereótipos, reparação e discriminação social e racial.

a) Etnia – Etnia refere-se a um conjunto de dados culturais — língua, religião, costumes alimentares, comportamentos sociais — mantidos por grupos humanos (grupo étnico) não muito distantes em sua aparência, os quais preservam e reproduzem seus aspectos culturais no interior do próprio grupo, sem que estejam necessariamente vinculados por nacionalidade comum, ainda que compartilhem um território comum e se organizem, em determinados casos, como população geral deste território (SILVA, 2002, p.18). Para alguns autores, a noção de etnia supõe uma base biológica, um grupo com características raciais próprias. Isto significa que uma etnia pode ser definida tanto como cultura, como por uma raça, ou por ambas. Apesar da constante associação entre etnia e raça, estes dois conceitos não podem ser tomados como sinônimos. Em suma, raça é um conceito cuja fundamentação científica é exclusivamente biológica, enquanto que etnia tem base social e cultural e, tal como grupo étnico (Dicionário de Ciências Sociais – Fundação Getúlio Vargas MEC, 1987, p.435).

b) Diversidade – A expressão diversidade pertence ao vocabulário da doutrina do multiculturalismo, não raro associada à ideia do relativismo cultural, ou seja, à ideia de que todas as culturas e formas de vida têm um valor equivalente. Os Estados Unidos é o país onde o argumento da diversidade foi articulado pela primeira vez devido à política de ação afirmativa. Nas últimas décadas, o termo diversidade adquiriu grande popularidade no cenário político e institucional norte-americano, tornando-se central em discursos multiculturalistas e na justificação das políticas de identidade. No caso brasileiro, a diversidade cultural engloba o conjunto de culturas que existem com identidades próprias, reforçando as diferenças culturais que existem entre os seres humanos, justificando assim tratamentos ou medidas diferenciadas. O reconhecimento da existência da diversidade exige tratar desigualmente as pessoas que estão em situações de desigualdade em razão de discriminação racial e social. O argumento da diversidade não é muito comum no debate jurídico sobre ação afirmativa, mas presente nos debates públicos, principalmente nos discursos de pessoas ligadas aos movimentos sociais e movimento negro (Igualdade, diferença e direitos humanos, 2008, p. 356).

c) Preconceito – É um julgamento prévio ou pré-julgamento de uma pessoa com base em estereótipos, ou seja, simples carimbo. Este conceito prévio nada mais é do que preconceito. Trata-se de atitudes negativas, desfavoráveis, para com um grupo ou seus componentes individuais. É caracterizado por crenças estereotipadas. A atitude resulta de processos internos do portador e não do teste dos atributos reais do grupo. Nas ciências sociais, o termo preconceito é usado quase exclusivamente em relação aos grupos étnicos. Preconceito é a atitude desfavorável para com um grupo étnico ou membros individuais do grupo. Mas os psicólogos, em geral, se referem a uma atitude como preconceito, quando ela não está de acordo com testes adequados da realidade dos atributos do grupo contra o qual é dirigida, nem se baseia neles (Dicionário de Ciências Sociais – Fundação Getúlio Vargas – MEC, 1987, p 962). O preconceito localiza-se na esfera da consciência dos indivíduos e, por si só, não fere direitos. Mas o preconceito inconsciente também é problemático na medida em que ele não pode ser objeto de autocorreção pelas vias jurídicas. Embora violando as normas do bom-senso e da afetividade, o preconceito não implica, necessariamente, em violação de direitos. Isto porque ninguém é obrigado a gostar, por exemplo, do portador de deficiência, do homossexual, do idoso, do índio ou do afrodescendente. Aliás, a legislação pouca alusão faz ao preconceito. Embora o Preâmbulo da Constituição Federal manifeste o seu repúdio ao preconceito, bem como o art. 3º, IV dispõe: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

d) Racismo – É uma doutrina ou ideologia que defende a existência de hierarquia entre grupos humanos, ou seja, algumas raças são superiores a outras, assim os superiores teriam o direito de explorar e dominar os inferiores. As teorias racistas surgem na Europa, em meados do século XIX, preconizando superioridade do povo europeu em contrapartida à inferioridade dos povos não europeus. E, atualmente, em várias partes do mundo, as teorias racistas servem para justificar a dominação e a exploração de determinados grupos humanos sobre outros. O racismo inclui no seu conceito de raça, indiscriminadamente, agrupamentos não biológicos tais como seitas religiosas, nações, grupos linguísticos e grupos culturais (Dicionário de Ciências Sociais – Fundação Getúlio Vargas – MEC, 1987, p 962). Trata-se de um equívoco, pois além das dificuldades de definir uma raça pura, não existem raças superiores, e sim culturas e valores diferentes. No entanto, mesmo admitindo que a raça não exista do ponto de vista biológico, ela existe do ponto de vista sociológico, e continua a atuar no plano social e político.[1] No Brasil, 98% dos brasileiros reconhecem que existe racismo, mas 95% declaram que não são racistas. Percebe-se que, apesar da existência do racismo, ele muitas vezes é oculto e/ou invisível, manifestando-se em determinadas situações e momentos. Na realidade, ninguém nasce racista e/ou com preconceito, estas atitudes são adquiridas na convivência social, inicialmente na família e também na sociedade, inclusive devido aos padrões e/ou estereótipos criados no contexto social e institucional.

e) Estereótipos – O termo deve ser claramente distinguido do preconceito, pois pertence à categoria das convicções, ou seja, de um fato estabelecido. Trata-se de uma convicção que não está alicerçada por hipótese apoiada na evidência, mas é antes confundida, no todo ou em parte, com um fato estabelecido. Uma vez “carimbados” os membros de determinado grupo como possuidores deste ou daquele “atributo”, as pessoas deixam de avaliar os membros desses grupos pelas suas reais qualidades e passam a julgá-los pelo carimbo. Exemplo: todo judeu é sovina; todo português é burro; todo negro é ladrão; toda mulher não sabe dirigir (Dicionário de Ciências Sociais – Fundação Getúlio Vargas – MEC, 1987, p 419).

f) Reparação – É um argumento de grande apelo moral e social, para justificar medidas compensatórias tanto para descendentes de africanos, os quais foram trazidos para este país à força e escravizados, como para os indígenas e seus descendentes, que foram, em grande parte, dizimados ou, às vezes, escravizados. Existe, hoje, um grau razoável de consenso acerca da existência de desigualdade e discriminação racial em nosso país, da perpetuação dessa realidade desde os tempos da colônia e da necessidade de se fazer algo para remediar esse problema. Não é por acaso que indígenas e afrodescendentes são os únicos grupos humanos nomeados explicitamente na Carta de 1988, o qual recomenda a proteção de suas manifestações culturais por parte do Estado. O argumento da reparação é muito comum no debate público sobre as cotas e também se faz presente no discurso jurídico (Igualdade, diferença e direitos humanos, 2008, p.357). No entanto, a medida compensatória de reparação justifica-se pelo fato de o Estado, após a abolição da escravatura, ter negado aos descendentes africanos a educação, a qualificação para o trabalho e a reforma agrária.

g) Discriminação – Diferentemente do preconceito, a discriminação depende de uma conduta ou ato (ação ou omissão), que resulta em violar direitos com base na raça, sexo, idade, estado civil, deficiência física ou mental, opção religiosa e outros. A Carta Constitucional de 1988 alargou as medidas proibitivas de práticas discriminatórias no país. Algumas delas como, por exemplo, discriminação contra a mulher (discriminação de gênero), discriminação contra a criança e o adolescente, discriminação contra o portador de necessidades especiais,  discriminação em razão da idade, discriminação em razão de credo religioso, discriminação em virtude de convicções filosóficas e políticas, discriminação em função do tipo de trabalho. Além disso, é oportuno combater a discriminação contra o índio, o homossexual, o cigano, a cultura afro-brasileira[2] e as religiões de matriz africana (JOAQUIM, 2009, p.255).

h) Discriminação racial – A discriminação racial está em foro constitucional, que considera prática do racismo como crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão (art. 5º, incisos XLI e XLII). Para o direito penal brasileiro, a prática da discriminação e preconceito por raça, etnia, cor, religião ou procedência nacional consiste em delito previsto na lei 7.716/89, alterada pela lei 9.459/97. Aqui, segundo art. 140, parágrafo terceiro do Código Penal: Se a injúria utilizar elementos relacionados à raça, cor, etnia, religião ou origem, a pena é de reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos e multa. De acordo com a intenção da lei nova, chamar alguém de judeu, pretão, negão, crioulo, miserável, preto, fanático religioso, pobretão etc., desde que com intenção ou vontade de lhe ofender a honra e a dignidade relacionada com a cor, religião, raça ou etnia, [1] sujeita o autor a uma pena prevista na lei penal. Da mesma forma, a prática da discriminação constitui-se, em matéria civil (art. 186 do Código Civil), em um ato ilícito praticado em desacordo com a ordem jurídica, violando direito subjetivo individual. Causar dano à vítima comete ato ilícito, criando o dever de repará-lo (MARTINS, 1999, p.27). A discriminação racial ocorre com a manifestação exteriorizada do preconceito do racismo.


3. Igualdade, desigualdade e discriminação

            Igualdade, desigualdade e discriminação são inseparáveis na realidade social. Contudo, em relação à igualdade existe dificuldade inicial de estabelecer o seu significado, sobretudo pela sua indeterminação. Aliás, dizer que todos são iguais não significa ausência das diferenças e discriminação na sociedade, até porque uns são mais iguais do que outros. Falando em igualdade, temos que reconhecer que existem as desigualdades nas relações humanas. O campeão do igualitarismo, J.J. Rousseau, não exige que, como condição para instauração do reino da igualdade, todos os homens sejam iguais em tudo (BOBBIO, 1996, p. 25). No discurso sobre a origem e sobre os fundamentos das desigualdades entre os homens Rousseau diz o seguinte:

Concebo, na espécie humana, duas espécies de desigualdade: uma a que chamo natural ou física, por ser estabelecida pela natureza, e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito ou da alma; a outra, a que se pode chamar desigualdade moral ou política, por depender de uma espécie de convenção e ser estabelecida, ou pelo menos autorizada pelo consentimento dos homens. Esta consiste nos diferentes privilégios que alguns usufruem em prejuízo dos outros, como serem mais ricos, mais reverenciados e mais poderosos do que eles, ou mesmo em se fazerem obedecer por eles. (ROUSSEAU, 1993, p. 144)

No caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988, caput de seu artigo 5º, declara expressamente que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]”, mas a desigualdade e a discriminação social são históricas e permanentes, bem como fazem parte da atual realidade brasileira de uma forma acentuada, que exigem medidas compensatórias e justiça social. A propósito, quando afirmamos que todos são iguais perante a lei, é preciso responder a duas perguntas: a) Igualdade entre quem?; e b) Igualdade em quê? Todos são iguais, porém alguns são mais iguais do que outros (BOBBIO, 1996, p.12). Além disso, para erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, como objetivos fundamentados da República Federativa (Art. 3º, III, CF/88) não podemos aplicar o princípio da igualdade formal, e sim tratar os desiguais de forma desigual através de políticas públicas e ações afirmativas.

A concepção de igualdade puramente formal, ou seja, com base apenas na lei, representada pelo princípio da igualdade perante a lei, não contribui para erradicação da pobreza, tampouco reduz as desigualdades sociais e regionais. O princípio da igualdade torna-se efetivo não somente pelo oferecimento de iguais condições a todos, mas, também, pela estipulação de discriminação positiva, quando verificado um desequilíbrio entre determinados grupos sociais que torna difícil a plena isonomia constitucional. Nesse sentido, a reserva de vagas para os negros, indígenas e estudantes de baixa renda como verdadeira discriminação positiva, não ofende o princípio da isonomia previsto no caput do art. 5º da Constituição Federal (Igualdade, discriminação e direitos humanos, 2008, p. 354).

Vale lembrar que o Estado e a sociedade brasileira demoraram muito a perceber que o princípio da igualdade de todos perante a lei não é suficiente para defender uma ordem social justa e democrática, pois as desigualdades foram acumuladas no processo histórico. Além da base geral em que assenta o princípio da igualdade perante a lei, ou seja, a igualdade formal se faz necessário tratamento desigual a situações desiguais, isto é, a igualdade real ou material. Contudo, com advento da Constituição Federal de 1988 e de algumas leis ordinárias, surgem inovações no que diz respeito à igualdade e à discriminação.

 A Constituição Federal estabelece a “proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência” (Art. 7º, XXXI).  Ainda em relação às pessoas portadoras de deficiência, no caso dos cargos e empregos públicos, a constituição determinou que a lei reservasse percentual, ou seja, cotas para deficiente físico no mercado de trabalho e na universidade. Outro exemplo está no art. 37, VII, da Constituição Federal, e nas Leis n.º 7.835/89 e 8.112/90, que regulamentaram o dispositivo constitucional referido, no qual há reservas de vagas em concurso público para os portadores de deficiência física. Aqui, temos também cotas para deficientes físicos no mercado de trabalho e na universidade. Aliás, a Lei 8.213/91 chamada “Lei de Cotas” para deficientes, em seu art. 93 no setor privado, determina uma cota mínima para pessoas com alguma deficiência em empresas com mais de 100 empregados. A propósito, os portadores de deficiência foram os primeiros a serem beneficiados pelas ações afirmativas e de cotas em foro constitucional e leis ordinárias no mercado de trabalho, educação e outras situações.

 Em sentido semelhante, a Lei 9.504/1997 assegura cotas para mulheres nas candidaturas partidárias, ao determinar que “cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidatura de cada sexo” (art. 10,§ 3º).

Outra inovação da Constituição de 1988 ocorreu com a superação do tratamento desigual fundado no sexo, ao equiparar os direitos e obrigações de homens e mulheres (art. 5º, I). A questão mais complexa consiste na discriminação sofrida pelos homossexuais. “Aqui, embora a Constituição não mencione a expressão textualmente, entende-se que é proibida a discriminação de qualquer natureza, inclusive em razão de orientação sexual”. Quanto à criança e ao adolescente, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar com absoluta prioridade todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, previstos no art. 227 da Constituição Federal:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Da mesma forma, o idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, conforme dispõe o art. 9º do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 01/10/2003): “É obrigação do Estado, garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade”.

Cabe também ressaltar, como mais uma forma de ação afirmativa, o que contém a Lei do Estatuto do Idoso, na qual se deu prioridade de tramitação aos procedimentos judiciais no qual figure como parte, pessoas com idade igual ou superior a sessenta e cinco anos.

Mas é no Direito Internacional dos Direitos Humanos que se encontram as melhores definições para o fenômeno da discriminação, como diz Joaquim Barbosa (2001, p.19). Para Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação racial de 1966:

Discriminação racial significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha por objeto ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, o gozo ou o exercício, em condições de igualdade, dos direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político, econômico, social e cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública.

            A Convenção destaca a necessidade de que não haja discriminação de qualquer espécie e enfatiza a questão de raça, cor ou origem nacional. Um ponto interessante na referida Convenção é de que os Estados, além de condenarem a discriminação racial, se comprometem a adotar uma política de eliminação da referida discriminação em todas as suas formas, criando, inclusive, a chamada discriminação positiva, isto é, as chamadas ações afirmativas (GUERRA, 2014, p. 137). Nesse sentido, o Brasil vem desenvolvendo uma série de ações afirmativas para aumentar as possibilidades de alguns grupos que tradicionalmente ficaram afastados das oportunidades patrocinadas a outros segmentos sociais, como verá no momento próprio neste artigo. No entanto, o Brasil demorou a entender a importância do Direito Internacional para o combate ao racismo e a implementação das ações afirmativas e das cotas. Principalmente os movimentos sociais, em especial o movimento negro, ignoravam as convenções e os pactos internacionais no contexto dos Direitos Humanos.

            O repúdio ao racismo nas relações internacionais foi, também, expressamente estabelecido no art. 4º inciso VIII da Constituição Federal: “A república Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios [...] repúdio ao terrorismo e ao racismo”. Nele se encontra inclusive, o reconhecimento de que o preconceito de origem, raça e cor, especialmente contra os negros, não estão ausentes das relações sociais brasileiras. Disfarçadamente ou, não raro, ostensivamente, pessoas negras sofrem discriminação até mesmo nas relações com entidades públicas (SILVA, 2003, p. 223).

            Segundo o jurista constitucionalista José Afonso da Silva:

A discriminação é proibida expressamente, como consta no art. 3º, IV da Constituição Federal, no qual se dispõe que, entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, está: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Proibiu-se, também, a diferença de salário, de exercício de fundações e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor, estado civil ou portador de deficiência (art. 7º, XXX e XXXI). (Curso de Direito Constitucional Positivo, 2003, p. 222)

No que diz respeito à discriminação na educação, a “Convenção sobre a luta contra a discriminação no domínio do ensino”, adotada pela Conferência Geral da Unesco em 1960, foi o principal instrumento jurídico internacional específico sobre direito à educação. A propósito, o termo discriminação abarca qualquer distinção, exclusão, limitação ou preferência que, por motivo de raça, cor, sexo, língua, opinião pública ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, condição econômica ou nascimento, tenha por objeto ou efeito destruir ou alterar a igualdade de tratamento em matéria de ensino (Convenção relativa à Luta Contra a Discriminação no Campo do Ensino – adotada pela Conferência Geral da Unesco em Paris, 1960 – promulgada pelo Decreto nº 63.223, de 6 de setembro de 1968).

Nesse sentido, vale destacar que uma das mais graves discriminações ocorre quando o direito de ser educado de uma pessoa e/ou de uma geração ou de um segmento social é negado e atingido. O direito à educação é um direito natural, humano, social e fundamental para o ser humano. Aliás, do ponto de vista histórico, o direito à educação foi negado aos descendentes de escravos após a abolição da escravatura no Brasil. Não foi proporcionado a este segmento social educação para a sua inserção no mercado de trabalho.

Enfim, ao tratar da discriminação, quer seja racial ou social, com a pretensão de estabelecer a igualdade como solução, verifica-se que a melhor opção é reconhecer a importância da discriminação positiva como medida compensatória para promoção da igualdade na sociedade.[3] Além disso, não basta combater a discriminação apenas no campo normativo, com regras meramente proibitivas de discriminação, é preciso também promover a igualdade material. Para tanto, surgiram às ações afirmativas e as cotas que têm como objetivo, sobretudo, de eliminar ou atenuar a discriminação do passado e do pressente, como veremos a seguir. 


4. Ação afirmativa e cotas como medidas compensatórias

Inicialmente, cabem cinco indagações: o que é ação afirmativa? Cotas e ação afirmativas significam a mesma coisa? Mas o que são cotas? Qual o seu fundamento legal? Existe relação entre a discriminação positiva e a ação afirmativa?

A adoção das medidas de ação afirmativa e cotas é o reconhecimento de que o princípio da igualdade formal é insuficiente para garantir a plena cidadania. Podemos formular ações ou políticas afirmativas, sem utilização de cotas, pois esta é apenas uma modalidade ou forma de ação afirmativa. As expressões ação afirmativa e sistema de cotas são tidas, frequentemente, como sinônimas, o que se revela equivocado, uma vez que a ação afirmativa é gênero do qual o sistema de cotas é apenas espécie, ainda que a mais difundida, polêmica, no âmbito da educação e do trabalho.

Portanto, as cotas nasceram no bojo das ações afirmativas, mas com essas não se confundem. Para facilitar o desenvolvimento e compreensão do tema, vamos iniciar explicando o que são ações afirmativas, até porque as cotas são uma segunda etapa delas.

As primeiras experiências de ações afirmativas surgiram nos Estados Unidos da América, a partir de meados do século XX. Mais precisamente em 1957, 1960, 1964 e 1965, o Congresso dos EUA promulgou leis dos direitos civis, editando-se a lei sobre igualdade de salário, em 1964, referente a direitos civis. Isto aconteceu após-intensa pressão da sociedade civil, especialmente dos movimentos negros, com lideranças como Martin Luther King, Malcon X, e de grupos raciais como os Panteras Negras na luta pelos direitos civis dos afro-americanos.

Desta forma, o termo ação afirmativa surgiu nos Estados Unidos, no pós-guerra, já na década de 1960, quando as sociedades ocidentais cobravam a presença de critérios mais justos na reestruturação dos Estados de Direito. No campo da educação, os primeiros programas de ação afirmativa foram postos em prática no início dos anos 1960, logo após o Presidente Kennedy haver determinado, através de decreto executivo, que fossem tomadas medidas positivas no sentido de promover a inserção dos negros no sistema educacional de qualidade, historicamente reservado às pessoas de raça branca, como diz Joaquim Barbosa Gomes, ex-ministro do STF (2001, p.103). A Corte Americana decidiu que as ações afirmativas são discriminações positivas constitucionais autorizadas, fundamentadas no direito e garantias constitucionais da diversidade racial e cultural.

No governo de Lyndon Johnson (1963-1968), foram criados mecanismos e estratégias importantes de combate e de superação das desigualdades raciais e de gênero, principalmente. A partir de 1964 até o início dos anos 1980, as políticas de ação afirmativa nos EUA passaram por um processo de crescimento gradual. Com base no artigo VII do Civil Rights Act, são criadas e implementadas políticas antidiscriminatórias com vistas a inibir discriminações no mercado de trabalho, que tivessem por subtrato a raça ou a etnia, a religião, o sexo ou a origem nacional dos trabalhadores. Na administração do Presidente Ronald Reagan, entretanto, as ações afirmativas enfraqueceram, voltando a fortalecer-se na administração do Presidente Clinton e pelo Ato de Direitos Civis (Civil Rights Act) de 1991 (SISS, 2003: p. 113/118/131).

Além do sistema de cotas, também existem outras opções que podem ser consideradas importantes para efetivação das ações afirmativas: o método do estabelecimento de preferências, o sistema de bônus e os incentivos fiscais (como instrumento de motivação do setor privado). Mas no caso do Direito brasileiro, falta um maior conhecimento das modalidades e das técnicas que podem ser utilizadas na implementação de ações afirmativas. Na realidade, ação afirmativa não se confunde nem se limita às cotas (GOMES, 2002 apud PISCITELLI, 2009, p.71).

Joaquim Barbosa Gomes, Ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, autor do livro Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade – o Direito como instrumentos de transformação social, nos dá uma definição de ação afirmativa:

Um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vista ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. (2001, p. 40)

Carmem Lúcia Antunes Rocha, por sua vez, vislumbra a ação afirmativa como “uma forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante da sociedade”. Por esta desigualdade positiva promove-se a igualdade jurídica efetiva [...]. Ação afirmativa é, então, forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias.[4] Nesse sentido, segundo o professor Sergio Abreu, a discriminação positiva, assim como a ação afirmativa, não contrariam o princípio da igualdade, ao contrário, reforçam, bem como reafirmam o princípio da igualdade. É o reconhecimento do direito à diferença, a pedra de toque da discriminação positiva.[5]

Porém, os Estados Unidos da América não detêm monopólio das ações afirmativas (ou políticas compensatórias), programas semelhantes ocorrem em vários países da Europa Ocidental, na Índia, na Malásia, na Austrália, no Canadá, na Nigéria, em Cuba, dentre outros países, como diz Domingues Petrônio no seu livro A nova Abolição” (2008, p.151). A propósito, as ações afirmativas foram adotadas em mais de 25 países, com diferentes modalidades. As ações afirmativas como mecanismo de inclusão social, já espalhados por todo o mundo, além de promoverem maior participação das categorias discriminadas, são vistos como instrumentos que possuem o condão de proporcionar maior igualdade social de um modo geral (BELLINTANI, 2006, p.41).

No caso brasileiro existem experiências de cotas, como foi a “Lei do Boi”, nº 5465, de 3 de julho de 1968, que dispõe sobre preenchimento de vagas nos estabelecimentos de ensino agrícola. Cotas para beneficiar filhos de fazendeiros brancos e da elite rural. Outras experiências, como já foram mencionadas, previstas na Constituição Federal de 1988, estabeleceu em seu art. 7º, XX, proteção especial de trabalho à mulher, fundamentando, desse modo, o conteúdo da Lei n. 9.504/97, que em seu art. 10, § 2º, cria cotas para mulheres nas candidaturas partidárias; e prevê no art. 37, VIII, percentual de cargos para portadores de deficiência física.  No entanto, quando se fala em cotas para os afrodescendentes cria-se uma polêmica, como foi o caso do programa de cotas raciais na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), quando houve resistência por parte de vários segmentos da sociedade brasileira (DOMINGUES, 2008, p.152).

As discussões sobre ação afirmativas e cotas datam das duas últimas décadas, mas precisamente a partir da década de 1990 e início do século XXI. Inicialmente, no âmbito das organizações do Movimento Negro Nacional, bem como em alguns restritos espaços acadêmicos (SISS, 2003, p. 131). Em 20 de novembro de 1995, como comemoração ao Tricentenário da Imortalidade de Zumbi dos Palmares, ocorreu em Brasília a Marcha contra o Racismo, pela Igualdade e pela Vida, como resultado da ação do Movimento Negro Nacional, com apoio de setores do movimento social. Essa marcha reuniu cerca de 30 mil pessoas de todo país que, através de uma comissão, apresentou ao então Presidente Fernando Henrique Cardoso, um documento contendo um rol de reivindicações para o desenvolvimento de políticas públicas de ações afirmativas nos mais diversos campos. Este importante documento contribuiu para as propostas e formulações de políticas compensatórias e ações afirmativas que promovessem socialmente e economicamente a comunidade negra (Levando a raça a sério – ação afirmativa e universidade, p.30).

Em documento publicado em 1996, surge a primeira definição oficial de ações afirmativas:

Ações afirmativas são medidas especiais e temporárias tomadas pelo Estado e/ou iniciativa privada, espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidade e tratamento, bem como compensar perdas provocadas pela discriminação e a marginalização por motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outras. (GTI/População Negra, 1996, p.10)

 Portanto, do ponto de vista institucional, cabe destacar o Programa Nacional de Direitos Humanos – Ministério da Justiça, em 1996, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Aqui, entre as propostas de ações governamentais, em curto prazo incentivar e apoiar a criação e instalação, a níveis estadual e municipal, de Conselhos da Comunidade Negra; em médio prazo desenvolver ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta. (Programa Nacional de Direitos Humanos. Ministério da Justiça, 1996, p. 29).

Em 1997 um projeto de lei de iniciativa do senador Abdias do Nascimento (nº 75/1997) dispõe sobre medidas de ação compensatórias para implementação do princípio da isonomia social do negro no mercado de trabalho e no ensino:

Art. 1º Todos os órgãos da administração pública direta e indireta, as empresas públicas e as sociedades de economia mista são obrigados a manter, nos seus respectivos quadros de servidores, 20% (vinte por cento) de homens negros e 20% de mulheres negras, em todos os pontos de trabalho e de direção.

Art. 2º Toda empresa privada ou estabelecimento de serviços são obrigados a executar medidas de ação compensatórias com vistas a atingir, no prazo de cinco anos, a participação de ao menos 20% (vinte por cento) de homens negros e 20% (vinte por cento) de mulheres negras em todos os níveis de seu quadro de empregos e remunerações.

Art. 6º serão destinadas a estudantes negros 40% (quarenta por cento) das bolsas de estudo concedidas em todos os níveis de ensino. (Publicado no Diário do Senado Federal, de 25-04-97).

A participação do Brasil na 3ª Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, ocorrida em 2001 na África do Sul fortaleceu o movimento nacional para implementação de ações afirmativas e cotas. Após assinar a Declaração de Duban, o Brasil comprometeu-se a adotar medidas para eliminar o racismo, o preconceito e, acima de tudo, a discriminação estrutural que gera a falta de oportunidade socioeconômica para afro-brasileiros.[6] A propósito, este compromisso foi reafirmado pelo governo brasileiro, quando assinou a Declaração e o Plano de Ação da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (art. 99 e 100).··.

Em 20 de novembro de 2001, o Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, no Seminário “Discriminação e Sistema Legal Brasileiro”, promovido pelo Tribunal Superior do Trabalho, proferiu uma palestra intitulada “Óptica constitucional – a igualdade e as ações afirmativas”, em que defendeu a constitucionalidade da implementação de ações afirmativas em favor dos afro-brasileiros (SILVA, 2004). Segundo o Ministro Marco Aurélio (STF), a ação afirmativa evidencia o conteúdo democrático do princípio de igualdade jurídica e, neste caso, cabe citar uma pensadora do Direito, a nossa Carmem Lucia Antunes Rocha:

A ação afirmativa é um dos instrumentos possibilitadores da superação do problema do não cidadão, daquele que não participa política e democraticamente como lhe é na letra da lei fundamental assegurado, porque não se lhe reconhecem os meios efetivos para se igualar com os demais. Cidadania não combina com discriminação. (Apud MARTINS, 2002, p.43)

No Brasil, as políticas de ação afirmativas possuem amplo suporte constitucional. Além disso, elas possuem suporte jurídico também no Direito Internacional. Destaca-se, especialmente, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação racial, aliás, o Brasil é signatário (Igualdade, diferença e direitos humanos, 2008, p.353/354). O Decreto nº 4.228 de 13 de maio de 2002, instituiu o Programa Nacional de Ações afirmativas no âmbito da administração pública Federal; Programa de Ação Afirmativa do Ministério da Justiça, que reserva 20% (vinte por cento) de seus cargos de direção e assessoramento superior (DAS) a afro-brasileiros (Portaria 1.156/2001); Programa de Ação Afirmativa do Instituo Rio Branco, que cria “bolsas-prêmio de vocação para a diplomacia” em favor dos candidatos afrodescendentes; Programa de Ação Afirmativa no Supremo Tribunal Federal, que estabelece cota de 20% (vinte por cento) para afro-brasileiros nas empresas que prestam serviços autorizados a essa Corte (JOAQUIM, 2009, p.265).

A Lei nº 10.558, de 13 de novembro de 2002, criou o Programa de Diversidade na Universidade no âmbito do Ministério da Educação, com a finalidade de implementar e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros (art. 1º). Enquanto a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial foi criada pela Lei nº 10.678 de 23 de maio de 2003 para o cumprimento de tratados internacionais pelo Brasil no combate à discriminação racial.

Em 2003, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) realizou o primeiro vestibular do país com cotas reservadas para estudantes negros e oriundos de escolas públicas,  decorrente da Lei Estadual 3708/2001 e da Lei Estadual 4151/2003, esta iniciando uma segunda etapa das ações afirmativas nas universidades fluminenses, instituindo nova disciplina sobre o sistema de cotas para ingresso nas Universidades Públicas Estaduais. Assim, a iniciativa pioneira foi amparada em lei estadual específica, que reservava o percentual mínimo de 45% das vagas dos cursos de graduação das universidades estaduais do Rio de Janeiro para “estudantes carentes” na seguinte proporção: 20% das vagas para estudantes oriundos da “rede pública de ensino”, 20% para “negros” e 5% para pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor, e integrante de minorias étnicas. Tudo como forma de democratizar o acesso ao ensino superior (SCHREIBER, 2013, p.248).

 A propósito, em pesquisa realizada pelo Programa de Apoio ao Estudante da UERJ, constatou-se que os alunos que entraram pelo critério de cotas tiveram, no primeiro semestre de estudo de 2003, rendimento acadêmico superior à taxa de evasão, que foi menor em relação aos alunos não cotistas (DOMINGUES, 2008, p.157).

Ainda na área da educação, em 2004, no governo Lula, foi criado o Programa Universidade para Todos – PROUNI. Política de ação afirmativa, destinada à concessão de bolsas de estudos integrais e bolsas de estudos parciais de 50% (meia bolsa) para curso de graduação e sequenciais de formação específica, em instituições privadas de Ensino Superior com ou sem fins lucrativos. Aqui, há cotas para negros e indígenas. O percentual terá que ser, no mínimo, correspondente ao percentual de cidadãos autodeclarados negros, pardos e indígenas.

Vale destacar que as instituições privadas de ensino superior também estão implementando ações afirmativas, com programas de inclusão social no ensino, programas de acompanhamento pedagógico, inclusive previsto nos projetos políticos pedagógicos. Oferecendo bolsas de estudo parciais para alunos carentes de recursos e outras iniciativas de inclusão social no ensino, promovendo igualdade racial e social (JOAQUIM, 2009, p.266).

A Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010, instituiu o Estatuto da Igualdade Racial recheado de referências às ações afirmativas, ali definidas no art. 1º, inciso V como: “políticas públicas: as ações, iniciativas e programas adotados pelo Estado no cumprimento de suas atribuições institucionais”; Inciso VI como: “ações afirmativas os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidade” (inciso VI). Em seu art. 9º: “A população negra tem direito a participar de atividades educacionais culturais, esportivas e de lazer adequadas a seus interesses e condições, de modo a contribuir para o patrimônio cultural de sua comunidade e da sociedade brasileira”. Já no art. 10, inciso I dispõe expressamente:

Para o cumprimento do disposto no art. 9º, os governos federal, estaduais, distrital e municipal adotarão as seguintes providências: I – promoção de ações para viabilizar e ampliar o acesso da população negra ao ensino gratuito e às atividades esportivas e de lazer [...]. Portanto, o dispositivo autoriza a doção pelo Governo Federal e pelos Governos Estaduais e Municipais do sistema de cotas em suas respectivas universidades públicas, sem necessidade de qualquer ato do Congresso Nacional. (SCHREIBER, 2013, p.251)

  Tivemos mais de dez anos de debates, discussões com posições favoráveis e contrárias às ações afirmativas e cotas, mas finalmente temos a Lei Federal n. 12.711, de 29 de agosto de 2012, que contemplou as cotas sociais e raciais. Esta Lei dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. Ela fixa um percentual de 50% das vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio nas escolas públicas e afirma que essas vagas serão preenchidas por autodeclarados pretos, pardos e indígenas em “proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE”.[7] Diante da flagrante diversidade entre os Estados brasileiros nesse aspecto, tal critério afigura-se, de fato, mais adequado a uma lei federal que tem aplicação em todo o território nacional (SCHREIBER, 2013, p.252).

Esta Lei 12.711/2012 foi regulamentada pelo Decreto nº 7824/2012, que define as condições gerais de reservas de vagas e a regra de transição para as instituições federais de educação superior. Temos também a Portaria Normativa nº 18/2012, do Ministério da Educação, que estabelece os conceitos básicos para aplicação da lei, prevê as modalidades das reservas de vagas e as fórmulas para cálculo, fixa as condições para concorrer às vagas reservadas e estabelece a sistemática de preenchimento dessas vagas.

A cota racial e social na educação constituiu-se como paradigma para outros Estados da Federação. Durante os últimos 12 anos, as ações afirmativas e cotas têm marcado profundamente os debates públicos e acadêmicos, chegando a mais alta Corte da justiça brasileira (STF), através de demandas judiciais e audiências públicas promovidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Este reconheceu a constitucionalidade das cotas sociais e raciais, bem como das ações afirmativas. Em 2013, reportagem recente da revista ISTOÉ (nº 2264, de 5 de abril de 2013), com o título “Porque as cotas raciais deram certo no Brasil”, entrevistou alunos cotistas de diferente universidade pública do Brasil, que já se formaram e foram bem-sucedidos no mercado de trabalho.

 Vale mencionar também a recente Lei 12.290/2014, voltada para o mercado de trabalho, que estabeleceu cotas raciais em concurso público. A Lei reserva aos negros que se declararem pretos ou pardos no ato da inscrição, 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso público federal para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal. Semelhante ao que ocorre com os portadores de deficiência na lei constitucional e ordinária, por razões de discriminações históricas.

Por fim, as ações afirmativas decorrem de políticas públicas concebidas pelo Estado, que atendem ao acesso à educação e, por consequência, a qualificação para o trabalho, dois direitos que historicamente foram negados aos descendentes de escravos após a Abolição da escravidão. Com as cotas raciais e sociais retoma-se o papel democrático da universidade pública, proporcionando oportunidade para todos, bem como adotando a diversidade étnica para que negros pobres e indígenas ingressem nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. Assim, os afro-brasileiros, indígenas e estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio nas escolas públicas, podem adquirir conhecimento, se preparar para o exercício da cidadania, assim como se qualificar e ingressar no mercado de trabalho, ajudando o desenvolvimento do país.


5. Considerações finais

No início deste artigo fizemos algumas indagações sobre o tema, mas, de certo modo, ao longo da viagem sobre igualdade e discriminação à luz das políticas de ações afirmativas, conseguimos responde-las. Falar sobre igualdade e discriminação em um país extremamente desigual e propor medidas compensatórias não é uma tarefa fácil, até porque sabemos que alguns segmentos da sociedade brasileira são mais iguais que a maioria da população. Mais ainda, também não é tarefa fácil falar em discriminação racial em um país que, por muito tempo, sonhou e acreditou que era uma democracia racial pelo simples fato de abolir a escravidão e libertar seus escravos, mas negando educação e trabalho para os seus descendentes.

Apresentamos também alguns conceitos básicos de expressões utilizadas no discurso sobre a igualdade, discriminação e ação afirmativa, que do ponto de vista pedagógico contribuem para compreensão deste tema. Aqui, observamos que o reconhecimento da existência de diversidade na realidade brasileira é compatível com as ações afirmativas e cotas, por tratar desigualmente as pessoas que estão em situações de desigualdade. Além disso, embora a expressão raça seja polêmica quanto a sua utilização do ponto de vista biológico, ela é importante do ponto de vista sociológico, ou seja, no plano social e político.

  Analisamos e discutimos as questões relacionadas à igualdade e à discriminação do ponto de vista conceitual, legal e social, bem como  reconhecemos a necessidade de adotarmos o princípio da discriminação positiva, tratando os desiguais de uma forma desigual, assim como adotarmos as ações afirmativas, até porque ela não contraria o princípio da igualdade, mas, sobretudo, promove a igualdade racial e social.

 Destacamos a importância das primeiras experiências dos Estados Unidos da América sobre ações afirmativas no campo da educação e do trabalho, que contribuíram para as discussões, propostas e formulações de políticas compensatórias no Brasil; mas também as experiências brasileiras sobre políticas de cotas, inclusive destacamos as cotas para beneficiar filhos de fazendeiros brancos e da elite rural, implantadas pela “Lei do Boi” nº 5465, de 3 de julho de 1968, cotas para portadores de deficiência física no mercado de trabalho do setor público, com reserva de vagas em concursos, bem como no setor privado e nas universidades, e em cotas para mulheres nas candidaturas partidárias. No entanto, quando se fala em cotas para afro-brasileiros surgem os opositores e a resistência de alguns setores expressivos da sociedade brasileira, inclusive de intelectuais de expressão junto à opinião pública.   

Constatamos também que as cotas nasceram no bojo das ações afirmativas, no segundo momento, como medidas compensatórias temporárias, principalmente no campo da educação e do trabalho, com objetivo de eliminar desigualdades históricas acumuladas, bem como compensar perdas provocadas pela discriminação por motivos raciais, étnicos, de gêneros e outros.

 No caso brasileiro, o povo sofrido não é contrário às políticas de ações afirmativas e cotas. Quem as rejeita são segmentos específicos da classe média e da elite, inclusive intelectuais de setores comprometidos, que sempre foram beneficiados por terem condições financeiras e econômicas de estudarem nos melhores colégios, por isso são contra a democratização do acesso a universidade pública, através das ações afirmativas e cotas.

Por fim, não podemos deixar de destacar a importância do reconhecimento da constitucionalidade das ações afirmativas e das cotas pelo Supremo Tribunal Federal. Além disso, da Lei Federal nº 12.711, de 29 de agosto de 2012 (Lei de Cotas), que contemplou as cotas sociais e raciais para ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio, bem como para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas e autodeclarados pretos, pardos e indígenas. Isto aconteceu depois de mais de dez alunos de luta dos movimentos sociais, segmentos expressivos da sociedade civil e do poder público e, em especial, do movimento negro brasileiro.


Referência bibliográfica

ABREU, Sergio. Os descaminhos da tolerância – o afro-brasileiro e o princípio da igualdade e da isonomia no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.

BELLINTANI, Leila Pinheiro. Ação afirmativa e os princípios do Direito – a questão das quotas raciais para ingresso no ensino superior no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. Carlos Nelson Coutinho (trad.). Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

DIREITOS HUMANOS: instrumentos internacionaisdocumentos diversos. Brasília: Senado Federal-Subsecretaria de Edições Técnicas, 1997.

DOMINGUES, Petrônio. A nova abolição. São Paulo: Selo Negro, 2008.

ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL: Comentários e doutrinários/Coordenador: Calil Simão Neto. Vários autores. Rio de Janeiro: J.H. Mazuno, 2011.

GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

______. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. Rio de Janeiro: 2002. Disponível em: <www: jurídico. adv.br>. Acesso em: 16 de julho 2014.

GALDINO, Daniela; BERNARDINO, Joaze (orgs.). Levando a raça a sério: ação afirmativa e universidade. Rio de Janeiro: DP&A – Coleção política da cor (UERJ), 2004.

GUERRA, Sidney. Direitos humanos – na ordem jurídica, internacional e reflexos na ordem constitucional brasileira. 2ª Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2014.

Igualdade, Diferença e Direitos Humanos – Coordenadores Daniel Sarmento, Daniela Ikawa e Flávia Piovesan. Colaboradores. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.

GTI/População Negra. Brasília: Ministério da Justiça/Secretaria de Direitos Humanos, 1996.

JOAQUIM, Nelson. Direito educacional brasileiro – história, teoria e prática. (prefácio Agostinho Reis Monteiro). Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2009.

LIMA, Jean Carlos. Direito educacional. São Paulo: Avercamp, 2005.

MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord). As vertentes do Direito Constitucional Contemporâneo. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002.

MARTINS, Sergio. Direito e legislação antirracista. Rio de Janeiro: publicação do CEAP, 1999.

PISCITELLI, Rui Magalhães. O Estado  como promotor de ações afirmativas e a política de cotas para o acesso dos negros à universidade. Curitiba: Juruá, 2009.

RIBEIRO, Matilde (org.). Política de Igualdade racial: reflexões e perspectivas..São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2012.

PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS/Fernando Henrique Cardoso - Brasília: Presidência da República, Secretaria de Comunicação Social, Ministério da justiça, 1996.

ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Ação Afirmativa. O conteúdo Democrático do Princípio da Igualdade Jurídica. Revista de Informação Legislativa, ano 33, nº 131. Brasília. Julho/Setembro de 1996.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Editora Martins Pontes, 2002.

SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo: Editora Atlas, 2013.

SILVA, Benedito. Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1987.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2003.

SILVA Jr, Helio. Direito de igualdade racial: aspectos constitucionais, civis e penais: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002.

SILVA, Luiz Fernandes Martins de. Sobre a implementação de cotas e outras ações afirmativas para os afro-brasileiros. Jus Navigandi. Teresina, ano 8, nº 342, 14 jun. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/5302>. Acesso em: 17 de agosto de 2014.

SISS, Ahyas. Afro-brasileiros, cotas e ação afirmativa: razões históricas. Rio de janeiro: Quartet; Niterói: PENESB, 2003.

SOWELL, Thomas. Ação afirmativa ao redor do mundo, um estudo empírico/ tradução de Joubert de Oliveira. Brizuda – Rio de Janeiro. UniverCidade Editora, 2004.

THOTH – Informe de distribuição restrita do senador Abdias Nascimento. N. 1 (1997). Brasília: Gabinete do Senador Abdias Nascimento, 1997.


Notas

[1] Levando a raça a sério: ação afirmativa e universidade. Joaze Bernardino; Daniela Galdino (orgs.), p. 19.

[2] A Constituição brasileira menciona o adjetivo-pátrio afro-brasileiro, o qual tem por característica acentuar a origem, ou seja, o continente de origem dos membros da população negra brasileira (Cf. Silva Jr. Hélio. Direito de Igualdade, p.18)

[3] O princípio da discriminação positiva, assim como a ação afirmativa,  não contrariam o princípio de igualdade, ao contrário, reforçam, reafirmam o princípio de igualdade (Cf. Abreu, 1999, p. 120).

[4] ROCHA, Carmem Lucia Antunes. Ação Afirmativa. O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica,p;35

[5]  Cf. Abreu, Sergio. Os descaminhos da tolerância – o afro-brasileiro e o princípio da igualdade e da isonomia no Direito Constitucional, p. 120.

[6] Cf. Raquel Coelho Lenz Cesar. Programa Políticas da cor na educação brasileira (UERJ), 2004.

[7] Lei 12.711/2012, art. 3º.


Autor


Informações sobre o texto

Artigo elaborado para o I Seminário de Arte, educação e relações étnico-raciais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JOAQUIM, Nelson. Igualdade e discriminação à luz das políticas de ações afirmativas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4266, 7 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31323. Acesso em: 16 abr. 2024.