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Uma análise das teses defensivas redutoras do direito repressivo

Uma análise das teses defensivas redutoras do direito repressivo

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A Constituição não recepcionou as finalidades de prevenção especial positiva e retribuição, por força da teoria redutora de danos.

Resumo: Trata-se de um esforço de compilação conexo a uma breve análise das teses inovadoras em prol da contenção do poder punitivo elaboradas por grandes autores, consagrados na doutrina brasileira. É notório que o poder punitivo é seletivo e ocasiona danos sociais de grande monta, contudo, seja por uma sede de retribuição ou por pura irracionalidade, muitos ainda apregoam o alargamento de seus braços opressores. A fim de obstar tais esforços, lançou-se mão de temas cruciais, tais como: execução penal, crime continuado, bem jurídico, ações neutras e culpabilidade.

Palavras-Chave: Direito Penal Mínimo – Execução Penal – Crime Continuado – Bem Jurídico – Ações Neutras – Culpabilidade


INTRODUÇÃO

Não é de hoje que a capilaridade da criminalização, no bojo do capitalismo periférico, tem ocasionado a reação das minorias desfavorecidas, no desenvolvimento de subculturas, o que golpeia, cada dia mais, a possibilidade de defesa da tese de universalidade axiomática do bem jurídico, de cunho jusnaturalista. Assim, contesta-se a noção de consciência profana do injusto, vez que nem sempre há o conhecimento da antissocialidade, imoralidade ou lesividade da conduta pelo agente vulnerável.

Nesse ponto, ainda, o patente pluralismo sustenta uma grande variedade de sistemas de valores, o que impede a noção de culpabilidade como reprovabilidade, na forma proposta tradicionalmente pela doutrina. E mais, a teoria do etiquetamento (labeling approach) tem nos mostrado uma sociedade conflitiva, na qual sonhos e meios de acesso são desigualmente distribuídos.

Nesse giro, cabe um resgate à funcionalidade do conflito, na dinâmica do processo social, em que a distribuição desigual de poder e riqueza denota a principal causa do comportamento desviado (outsiders). Desse modo, o controle social formal e informal traz um rol de injustos, contudo, não é a conduta em si que é desvalorada, em vista da criminalização primária e secundária seletiva pelo manejo da injunção penal subserviente à interesses políticos e sociais outros. Nessa perspectiva, falacioso é o discurso da teoria das janelas quebradas.

Com isso, propôs-se, aqui, questionar o discurso tradicional do direito penal, construído na corrente sociedade de Risco, que levou a um Estado de Segurança. Para gerir tais riscos, antecipou-se a punibilidade e criaram-se mais crimes omissivos, culposos e de perigo, a despeito da falência da pena, como se o Direito Penal fosse panaceia para os problemas estruturais sociais que grassam a sociedade brasileiras há tempos.

Por meio de ginásticas jurídicas, perfazem-se “criptoimputações” e demais ilegalidades, à moda do poder subterrâneo, bem como pelo mascaramento de leis penais latentes e eventuais. A prisão preventiva, por sua vez, promove a erosão processual da pena, dentro da política de tolerância zero. É de bom alvitre rememorar que, quem deseja punir demais, no fundo, quer impor um mal, logo, equipara-se à própria figura do delinquente.

A pauta axiológica constitucional deve servir de freio valorativo contra totalitarismos judiciais, na medida em que desmistifica normas paternalistas de bens jurídicos inexistentes como segurança e ordem. A título de exemplo, a Lei Federal nº 11.671/08 possibilitou uma desterritorialização com aparência de pena de banimento, em que pese a vigência da Carta Política.

Percebendo que o Direito Penal pune os pobres (incrimina a vulnerabilidade, à luz dos crimes toscos) e, em respeito à heterogeneidade, deve-se romper com a imagem tradicional e seus baluartes, com o objetivo de conter essa irracionalidade punitiva. Para tanto, utilizou-se de inputs de grandes autores, trazendo teses inovadoras e que merecem maior publicidade, a fim de dinamizar filtros de contenção. Sendo assim, o presente autor trouxe uma compilação de entendimentos, com provocações teóricas e raciocínio crítico.


DA EXECUÇÃO PENAL

A falácia pseudo-humanista da ressocialização mascara o defensivismo social, de sorte que o modelo meritocrático de execução penal leva ao “engessamento do Poder Judiciário pelo obscurantismo administrativista do cárcere”, tendo em vista que “o Poder Judiciário se curva diante da preeminência do direito penitenciário (informal) sobre o direito processual penal (formal)”, levando à perda do senso de posteridade[2].

Nesse ponto, a medicina carcerária, própria dessa instituição total, busca a uniformização dos prisionados, devassando suas interioridades psíquicas, com medidas profiláticas, com o fito de coisificá-los, estigmatizá-los, aculturá-los, nulificá-los e despersonalizá-los como objeto de pesquisa criminológica. Essa estrutura relacional etiológica, dentro da política de gerência de conflitos sociais, caracteriza o policialismo, a brutalização, o belicismo, o marginalismo, o rotulacionismo e o predelitualismo (viés seletivo ínsito).

Isto é: o princípio da secularização, consectário do princípio da humanidade (art. 1º, III e art. 4º, IV, CR), impede a regulação moral do executado e, portanto, a prevenção especial objetiva. Não só: o princípio da individualização da pena não poderá ser usado para legitimar tratamentos penitenciários, tampouco para desrespeitar a isonomia.

Nessa toada, a inquisitoriedade do processo de apuração de faltas graves[3], em busca da disciplina, resta à margem da lei, invertendo o ônus de prova de periculosidade para o próprio preso, impedindo a refutação de juízos valorativos feitos sobre a pessoa, em defesa do arquétipo correcionalista e reformador, ao passo que eleva a bem jurídico a ordem carcerária, à guisa de um regime de exceção constitucional ou estado de anomia, apregoada pelos discursos alarmistas.

A jurisdicionalidade da execução penal, desde 1984, não valida um dever incondicional de obediência ou uma lei do silêncio ou, muito menos, uma discricionariedade velada da Administração Penitenciária, em que se pune quando necessário e se perdoa, quando conveniente, o que se reforça, pelo fato de que a categoria periculosidade opõe-se ao princípio da presunção de inocência. Nessa nota, obtempera Rodrigo Roig[4]:

“Inicialmente, cumpre destacar que o reconhecimento do caráter jurisdicional da execução penal conduz à necessária refutação da legitimidade da Comissão Técnica de Classificação para o julgamento disciplinar dos apenados. Isso porque tal julgamento é ontologicamente nulo se encarado frente aos princípios da imparcialidade, inafastabilidade e indisponibilidade da jurisdição, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

O Estado, com a finalidade de coibir a autotutela no cárcere, retira dos agentes e presos o poder de livre resolução dos conflitos [...] é possível verificar que a atividade judicante é realizada exatamente por alguns membros de um dos polos litigantes [...] instintivamente impelidos a decidir em favor dos agentes da Administração, já que a sua segurança no convívio diário depende justamente daqueles”.

Além disso, resta-nos, pela lucidez e brilhantismo notável, transcrever trecho escrito por Rodrigo Roig[5] sobre a necessidade de aporte de todos os benefícios legais, não contemplados na LEP, para a execução penal:

“não são suficientes a suspensão condicional da execução da sanção (art. 71), a revisão (art. 88) e a reabilitação disciplinar (art. 89). Urge ainda o aporte de diversas causas de extinção da punibilidade disciplinar, circunstâncias agravantes e atenuantes e dirimentes, assim como são imprescindíveis o estabelecimento de requisitos formais para a parte disciplinar, a criação de autênticos ‘tipos disciplinares’, com penas específicas para cada uma das faltas (evitando, assim, a amplitude sancionatória) e a previsão da ‘Suspensão Condicional do Processo Administrativo’, análoga àquela estabelecida na Lei nº 9.099/95”.

Noutro giro, Rodrigo Roig[6] admite a suspensão da prisão de pais, quando a medida for necessária ao melhor interesse das crianças, em nome do princípio da transcendência mínima. E avança:

“Observado sob a ótica redutora de danos, o princípio da transcendência mínima ganha novos contornos. Sob uma perspectiva, assim como a pena deve passar o mínimo possível da pessoa do condenado, fatores externos ao evento delitivo concreto igualmente devem passar o mínimo possível à pessoa do condenado. Essa nova visão traz alguns efeitos importantes. Inicialmente, a refutação de todas as considerações de índole preventiva em detrimento da pessoa presa. Em outros termos, não se pode admitir a imposição de rigor penitenciário a alguém apenas como necessidade de exemplo aos demais. Outro efeito é a impossibilidade de utilização, em desfavor da pessoa presa, de critérios eminentemente abstratos, tais como o suposto avanço da criminalidade ou a gravidade em tese de determinada espécie delitiva, fatos estes alheios ao próprio nexo de responsabilidade entre pessoa presa e fato delitivo. Também pode ser constatada a ilegitimidade da apuração judicial da personalidade da pessoa presa a partir de sua comparação com determinado padrão moral de personalidade, ou ainda, sua conferição com a personalidade do chamado ‘homem médio’.”

Oportuno também consignar, por pertinência, o entendimento de Rodrigo Roig sobre a vigilância eletrônica no sentido da inconstitucionalidade da medida por violação da intimidade, pela dificuldade de manter vínculos afetivos e familiares, por conta da estigmatização, por exemplo. Nesse passo, inconstitucional a medida quanto aos presos provisórios, por causa da presunção de inocência, ao mesmo tempo em que gera risco à integridade moral e física do vigiado, caso haja populares movidos por pânicos ou vingança privada.

Não só isso. A vigilância eletrônica representa alto custo, usada em exagero, que permite a extorsão por parte de policiais corruptos, bem como a imputação de crime sem a devida precisão técnica de localização. A mais: a medida impõe um desvio de função de segurança pública para particulares, a ponto de transmudar os presos em mercadorias. Por fim, insta ressaltar que o potencial descarcerizador da medida não é fenômeno que se vivencia.

A propósito, importante ter em mente que existem várias outras teses redutoras, contrastantes com a posição jurisprudencial majoritária, as quais merecem acolhida por representar o melhor direito, que apenas não se menciona pelo limite do presente estudo. Contudo, podemos citar a recomendação do numerus clausulus pelo juízo da execução, com supedâneo nos artigos 85, caput, art. 185 e art. 66, VI da LEP.

A par disso, pode-se entender que a superlotação carcerária permite o deferimento da prisão domiciliar. Inobstante, no âmbito da execução da pena, deve-se martelar na ideia da vedação ao anatocismo disciplinar, por configurar odioso bis in idem, isto é, a necessidade de domesticação das faltas graves. Nesse toar, as faltas graves jamais podem repercutir na pena privativa de liberdade, tendo efeitos apenas no âmbito administrativo.


DO CRIME CONTINUADO

Em que pese o estado de pânico e medo, fomentados pelas agências midiáticas e pelo Direito Penal Simbólico e de Emergência - ou em interesses-tabu, a própria lei penal transformou-se em fator de aumento da criminalidade. Afinal, retribuição é um juízo retrospectivo. Ela não soluciona problemas da violência, de base estrutural da sociedade, de forma que devemos rechaçar os movimentos de Defesa Social e o Movimento Lei e Ordem, com o fito de visualizar o Estatuto Repressivo como instrumento de contenção do poder punitivo.

No que se refere à interpretação do instituto do Crime Continuado, existem considerações a serem feitas. Na perspectiva reducionista de danos, é importante assinalar que o delictum continuatum deve ser visto como um crime único e, portanto, sofrer apenas uma reprimenda penal, sem acréscimos de qualquer monta, inclusive para afastar a aplicação do art. 72 do Diploma Penal, em homenagem ao princípio odiosa sunt restringenda [7].

Subsistem diversas fundamentações ao crime continuado[8], como a benignidade, tendo em vista o intuito de evitar a pena de morte ao terceiro furto na Idade Média, e a utilidade, tendo em conta a melhor facilidade probatória ou mesmo a menor culpabilidade. A respeito de sua natureza jurídica, faz-se menção aos debates das teorias da unidade real/realidade natural, ficção jurídica e da unidade jurídica, circunstância atenuante ou agravante ou mera presunção, da quais não iremos nos aprofundar.

Em rumo ao epílogo do tópico, não podemos deixar de transcrever as lições de Patrícia Mothé Glioche[9], pela limpidez e argúcia no trato da questão, sobre o conteúdo do injusto do crime continuado[10], vejamos:

“[...] o verdadeiro crime continuado não está previsto na lei, o que não significa que não possa ser adotado na prática, uma vez que se trata do próprio tipo penal, que é cometido por intermédio de uma execução fracionada e repetida do próprio crime, quando houver planejamento e ideação inicial. Assim, seus contornos devem ser construídos pela doutrina e pela jurisprudência, que, registre-se, não seguem à risca, em muitos casos, sequer os critérios da legislação atual. [...] é possível perceber que o conceito de crime continuado adotado no Código Penal é, na verdade, uma modalidade de concurso material de crimes semelhantes entre si. A visão da teoria objetiva, que foi a adotada no Código Penal, conduz à conduta naturalística, sem indagar a intenção. [...] A lei e a doutrina – que segue a teoria objetiva -, não consideram a orientação finalista de conduta, porquanto analisam o crime continuado diante da sua estrutura objetiva, verificando somente a ocorrência de vários crimes e considerando a conduta sem, todavia, examinar qualquer elemento subjetivo de finalidade. Assim, partindo desse conceito de conduta, se conclui que o artigo 71 do Código Penal trata de uma espécie atenuada de concurso material. É justamente essa incompatibilidade entre o conceito de conduta finalista e a definição legal de crime continuado que leva à existência de tantas opiniões diferentes a respeito desta categoria delituosa. [...] No entanto, apesar de ser imperiosa a exigência da presença de um elemento subjetivo, a lei trata o crime continuado como uma modalidade de concurso de crimes, confundindo o verdadeiro crime continuado – crime único – com o concurso material mais brando (porque exasperado) tratado pelo legislador sob o nome de crime continuado. [...] um crime único de homicídio, praticado dessa maneira fracionada – em várias etapas que constituem por si só um crime autônomo – e a pena a ser aplicada é a prevista no tipo penal, sem nenhuma exasperação. [...] Como delito único que é, o verdadeiro crime continuado poderia e deveria ser considerado e apenado justamente com uma única sanção. No entanto, atualmente, o reconhecimento do crime continuado leva à exasperação da pena, porque a jurisprudência, bem como boa parte da doutrina, se baseiam apenas na disciplina do Código Penal, prejudicando, de certa forma, o agente que pratica vários crimes norteado pelo seu planejamento inicial de agir. Muito embora o Código Penal não trate, no artigo 71, do verdadeiro crime continuado, é louvável a sua intenção de exasperar a pena do concurso material – que é o que verdadeiramente é tratado no artigo, pois as consequências deste último são demasiadamente graves para o agente e para a sociedade, uma vez que penas muito longas afetam a dignidade da pessoa humana, excluindo o sujeito da sociedade; e, ainda, as penas excessivas também são prejudiciais à sociedade que tem uma falsa impressão de ter equacionado um problema, que, na verdade, não tem solução no Direito Penal.”

Noutro giro, Rodrigo Roig[11] sustenta a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 71 do Estatuto Repressivo. Segundo seu magistério, o dispositivo legal consagra o direito penal de autor, bem como vulnera os princípios da lesividade, da culpabilidade, da isonomia, da secularização, da proporcionalidade, sendo instrumento de pura retribuição que não sobrevive à ótica teleológica redutora de danos. Ainda, apregoa a desmistificação da ficção do crime único, tão só para fins de execução penal, de forma a beneficiar o condenado com a extinção da punibilidade, cômputo e cálculo de penas.


DO BEM JURÍDICO

No escólio de José Danilo Tavares[12], “o Direito Penal é um meio repressivo e não preventivo – somente atua após o dano ou o perigo de dano - assim, não é correto atribuir-lhe a missão de garantia de bens jurídicos”. Sendo assim, verifica-se que a seletividade ínsita ao sistema objetiva operar uma higiene social.

Nessa linha de intelecção, o autor[13] sustenta: “logicamente, extrai-se que um bem, por mais relevante que seja, somente poderá ser tutelado pelo Direito Penal, isto é, ter dignidade penal, se tiver referibilidade na proteção da pessoa humana”, de sorte a repelir o placebo social das leis penais simbólicas de baixo custo e alta jactância política em homenagem ao princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos[14].

Nesse sentido, José Danilo sugere a importação do sistema de contraordenações[15] para o tratamento de algumas questões, como os atuais crimes ambientais[16] e outros que configuram mero descumprimento de dever administrativo, dentro de um conceito material-valorativo para o Estado de Direito. Dito de outro modo, a acessoriedade[17] administrativa[18] e as normas penais em branco ferem de morte a conquista do princípio da legalidade penal, de modo que permitem à Administração Pública o alargamento da intervenção penal sponte propria.

De outro giro, José Danilo[19] refuta a radicalidade do entendimento de inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, por vislumbrar um potencial democrático. Nesse tom, ao invés de demonizá-los, defende que os crimes de perigo abstrato – que devem expressar ofensividade - poderão impedir a criação de falsos bens jurídicos, ao mesmo tempo em que esclarece o conceito de perigo concreto e põe às claras o fato de que o direito penal está se antecipando. Não obstante, não se trata de presunção absoluta, confusão que levou a doutrina à tese da inconstitucionalidade.

Notório refutar a constitucionalidade de crimes de perigo abstrato com presunção absoluta, o que não significa equiparação a crimes de perigo concreto, dado que a acusação não terá o ônus de provar a realização do perigo abstrato, ao passo que, nos crimes de perigo concreto, o ônus é do Ministério Público. Ousamos, com a devida venia, discordar de tal entendimento, uma vez que todo o ônus de prova deve competir ao Parquet, em função do princípio da presunção de inocência e sistema acusatório, observada a conduta imparcial do juiz, sob pena de legitimar a expansão do poder punitivo e legitimação acrítica do poder punitivo[20].

Em arremate, compete-nos citar integralmente o excerto para mantermos a fidelidade à posição do autor:

“[...] é um erro tratar a incolumidade ou a saúde públicas como bens jurídicos coletivos, posto que elas não passam da soma de bens jurídicos individuais e, como tal, devem ser metodologicamente tuteladas de forma individual e isolada, sob pena de se legitimar – como recorrentemente faz nossa doutrina – a aplicação de sanções extremamente elevadas para a prática de condutas perigosas a bens jurídicos individuais, mas que, pela construção do aparente bem jurídico coletivo, se tornam, in legis, lesivas a esta ficção, quando, em realidade, as condutas realmente lesivas aos bens jurídicos individuais são tratadas sem tanta energia por nossos legisladores. Nestas situações, a postura correta está em abandonar esta equivocada construção do bem jurídico (pseudo)coletivo, compreendido como a soma de inúmeros bens individuais, e tratar a conduta como perigosa aos bens jurídicos individuais.”

Paralelamente, cabe recordar que Claus Roxin[21] compreende que a mera descrição da finalidade da lei não é o suficiente para embasar um bem jurídico que legitime o tipo penal, de modo que, na interpretação limitadora da pena, posiciona-se contra o conceito metodológico de bem jurídico que o iguala a ratio legis.

Nessa vertente, Claus Roxin entende que os tipos penais não podem ser lastreados sobre bens jurídicos de abstração impalpável. Para nos mantermos fiel ao seu escólio, oportuna a transcrição do excerto:

“Como o ‘público’ não possui um corpo real, não é possível que algo como a ‘saúde pública’, no sentido estrito da palavra, exista. Não se pode, porém, fundamentar uma proibição penal na proteção de um bem jurídico fictício. Na verdade, só se pode estar falando da saúde de vários indivíduos membros do povo. Estes só podem, entretanto, ser protegidos respeitando o princípio de que autocolocações em perigo são impuníveis, como já foi exposto. Não é possível, assim, deduzir da proteção da ‘saúde pública’ um fundamento adicional de punição. Um bem jurídico similarmente pouco claro é a ‘paz pública’ [...]”           

Em relação à pena, interessante a adoção da teoria agnóstica da pena ou negativa, negando a existência de um direito de punir com o fito de encará-la como pura coerção. Nesse sentido, vejamos explanação de Davi de Paiva[22]:

[...] a pena não tem nenhuma função que não a de reafirmar a validade dos bens jurídicos que o Direito Penal protege. Trata-se preponderantemente de um fato concreto: ‘a pena é uma coerção, que impõe uma privação de direitos ou uma dor, mas não repara nem restitui, nem tampouco detém as lesões em curso ou neutraliza perigos iminentes’. Trata-se de conceito negativo, por não conceder nenhuma função positiva à pena e por ser obtido por exclusão (não é nem reparador, nem administrativo direto), e agnóstico ‘quanto à sua função, pois confessa não conhecê-la’. A essa teoria dá-se o nome de teoria agnóstica da pena, cuja tradução literária pode ser encontrada na pena de Clarice Lispector: ‘não há direito de punir. Há apenas poder de punir. O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte do que ele’.


DAS AÇÕES NEUTRAS

Nas palavras de José Danilo Tavares[23], a respeito do ensinamento de Winfried Hassemer, “ações neutras são aquelas que preenchem os pressupostos tradicionais do injusto da cumplicidade, mas que, ao final, não constituem nenhum injusto objetivo de cumplicidade. São prestações de auxílio que, tendo como referência um observador externo, não têm tendência objetiva alguma de injusto.” Nesse sentido, somente quando partem de um contexto criminal transpassasse o limite para a criminalidade, o qual é contido pela concepção de adequação profissional, cujos elementos são profissionalidade e adequação propriamente dita.

Isso porque, o âmbito das ações profissionais está normativamente pré-estruturado, bem como nem toda ação que é causa para um resultado delitivo deve ter sua responsabilidade reconhecida, diante da liberdade geral de ação pelo risco geral da vida em sociedade. Ainda nesse diapasão, José Danilo esclarece a preleção de Luís Greco,[24] in verbis:

[...] Greco afirma que se tornará inútil a proibição à determinada conduta neutra, caso ela possa ser obtida em qualquer lugar e sem a menor dificuldade. As contribuições neutras não são manifestadamente ilegais e em razão disso possuem caráter ubíquo. Essa característica, pois, impõe uma análise quanto à idoneidade da proibição que vise a proteger um bem jurídico. [...] a não-realização da ação proibida precisa ‘melhorar de alguma maneira’ a situação do bem jurídico, não sendo necessário que o bem jurídico penalmente tutelado seja salvo pela abstenção da referida conduta. O ‘melhorar de alguma maneira’ não se identifica com a modificação do curso do fato principal, pois é mais do que a mera modificação. [...] na visão de Greco, é mais que a aptidão para modificar o curso dos fatos e menos que a capacidade para salvar o bem jurídico em jogo.”

Não custa repetirmos que, sendo de fácil aquisição, por acessibilidade, por ubiquação, qualquer norma proibitiva estará fadada ao insucesso, podendo atuar apenas sobre a motivação daquele que conhecia o estratagema delitivo do autor. Contudo, a conduta continuará autorizada àqueles sem o conhecimento especial do autor, numa perspectiva ex ante sobre o fato. Intuitivo que está vedado o abuso de direito, o qual afastaria o princípio da confiança, porém não basta a impressão subjetiva e abstrata acerca da aparência suspeita do cliente, sob pena de devassar a personalidade do indivíduo.

Em idêntico toar, mesmo atuando com dolo eventual, quando se der por ações profissionais (art. 5º, inc.XIV, CR) e regulares, especificamente idôneas e comportamentos cotidianos, nos quais o participante não conhece e muito menos fomenta o injusto alheio, não haverá cumplicidade, tampouco favorecimento pessoal, com a ressalva de dados indiciários apoiado no descumprimento de normas setoriais. As ações neutras trazem à baila o risco inerente de utilização delitiva por um terceiro, tais como a venda de remédios, armas e outras prestações negociais, todavia, os cursos causais hipotéticos não podem ser considerados.

Nessa toada, o risco de punibilidade deve ser lastreado no elemento subjetivo com supedâneo na representação do perigo, vez que será punível somente se houver conhecimento positivo de fatos criminosos e externalização do sentimento de solidariedade na empreitada criminosa.

Importante ressaltar a crítica de José Danilo[25] que, por sua verve, pedimos vênia para transcrever:

“Inclusive, reiteramos nossa crítica no sentido de que a teoria defendida por Greco traz o problema de saber quem irá determinar a relevância ou não, da idoneidade da proibição. A princípio, parece que caberá ao ‘prudente arbítrio’ do juiz, em cada caso concreto, responder a tal indagação. Outra crítica consiste no fato de que a aplicação do princípio da idoneidade para descobrir a proibição ou não, do risco é insuficiente para resolver todos os problemas de cumplicidade por meio de ações neutras [...].

Em arremate, não há conduta avalorada, e sim, contextualizadas em sua avaliação para fins de distinção entre mera participação culposa em crime doloso (impunível por neutra) ou cumplicidade não-neutra. Nesse diapasão, pode-se vislumbrar as ações neutras como não-configuração do tipo penal objetivo[26], diante de um risco permitido, ou mesmo, por meio da falta de antijuridicidade, pela não extensão pelo art. 29 do CP, devido ao cumprimento de um dever. 


DA CULPABILIDADE[27]

Claus Roxin[28] defende a absorção da culpabilidade pela categoria mais ampla da responsabilidade, de sorte que, na busca do equilíbrio entre a necessidade interventiva estatal e a liberdade individual, a valoração sobre a responsabilidade deve abranger a reprovabilidade e a teoria dos fins da pena. Em casos de culpabilidade reduzida, o autor, minoritariamente, não menciona exclusão de culpabilidade, porém exclusão de responsabilidade[29], como nova etapa limitadora de aplicação da pena, in verbis:

“O primeiro passo é reconhecer que injusto e responsabilidade se tratam de diversas valorações, que devem ser referidas cada qual a um substrato próprio. O injusto determina o que é proibido sob ameaça de pena, que comportamento é, portanto, legal ou ilegal. Já a responsabilidade decide quais dentre os comportamentos ilícitos necessitam de pena e em quais deles a pena pode ou dever ser dispensada. O primeiro nível valorativo tem por tarefa o controle de comportamentos: ele diz aos cidadãos o que, segundo as regras do direito penal, devem omitir e, em certos casos, fazer, combinando uma valoração com uma diretriz de comportamento. O segundo nível decide a respeito da consequência jurídica – punibilidade ou não-punibilidade – segundo pontos de vista que não se confundem, de modo algum, com os da valoração do injusto, mas que devem ser extraídos da teoria dos fins da pena.”

De outro giro, Davi de Paiva[30] contesta a noção tradicional de culpabilidade, dentro do finalismo, nos moldes abaixo:

“O livre-arbitrário como base ontológica da culpabilidade será o alvo principal de críticas posteriores ao finalismo, considerado seu calcanhar de Aquiles, ‘na medida em que o livre-arbítrio do homem não poderia ser provado nem de maneira geral, tampouco com relação a um caso concreto’. Outra crítica importante é a da estreita vinculação entre Direito e moral, embutida na ideia de culpabilidade como reprovabilidade não poder se sustentar, pois (i) o Estado não tem legitimação para elevar-se moralmente sobre o cidadão (Roxin); e (ii) ‘não se pode formular responsavelmente uma reprovação a uma pessoa que se conhece de modo tão seletivo e rudimentar como a conhece o juiz penal’ (Hassemer). A esse propósito, de maneira mais incisiva, já afirmava Engisch que seria impossível aferir o ‘poder agir de outro modo’, eis que uma prova empírica desse fato reclamaria repetir-se aquela situação fática, experimento fadado ao insucesso.”

Davi de Paiva sustenta o conceito incrível da falta de motivabilidade, como exclusão de culpabilidade (exculpação), como hipótese ainda não aventada de inexigibilidade de conduta diversa, elencando requisitos para seu reconhecimento[31]. Nessa baila, não se coaduna com a visão de que a exclusão social seja carta branca para o cometimento de delitos, defende, no entanto, que certos injustos alinhados a projetos de vida éticos não podem sofrer a pecha de crime.

Nesse tom, exige (1) que o crime cometido seja embutido por um projeto de vida ético e moral, ou seja, associado ao autorrespeito e respeito à alteridade (exclui, portanto, todos os atos praticados com violência); (2) que os valores morais adotados sejam legítimos no seio do grupo social do qual faz parte (noção de pertencimento social); (3) falência estatal na efetivação dos mais elementares direitos fundamentais (fragilidade da escolha de outros projetos éticos).

E mais: reconhece que um agir antijurídico possa ser moral, dado que delito e moralidade não são autoexcludentes. Diante da neutralidade moral das regras, investiga os valores por detrás e visualiza a probabilidade de ser moralmente indicada a transgressão. Nesse ponto, tece crítica ao Direito Penal hipertrófico, sem conteúdo moral, e sim moralista.

Já prevendo críticas ao manejo da falta de motivação, registre-se, integralmente, o entendimento do autor[32], que não se esquece que o ônus não pode ser atribuído ao agente vulnerável, como que uma intensificação da teoria alemã da co-culpabilidade:

“E nem se diga que ele poderia ter bravamente resistido e se humilhado a vida toda como assistente de obras, mediante remuneração e condições laborativas desumanas. A busca da felicidade, como se viu, é incontornável e não se pode exigir que alguém escolha uma vida indigna apenas para atender aos reclamos de um Estado que nunca lhe valeu. Tratar-se-ia de uma espécie de perda da possibilidade de exercício do poder punitivo estatal em virtude de sucessivas e reiteradas falhas de todos os seus braços (educacional, de saúde, de assistência social, de trabalho, de lazer, de higiene, de habitação etc.), que redundaram na impossibilidade absoluta de um determinado indivíduo escolher um projeto de vida ético e moral conforme ao Direito. A ideia de impedir o exercício do jus puniendi em virtude do mau funcionamento estatal não só não é nova, mas encontra-se até mesmo regulamentada no Código Penal. Trata-se do instituto da prescrição, definível como ‘a perda do direito de punir do Estado, pelo decurso do tempo, em razão do seu não exercício, dentro do prazo previamente fixado’. Coerentes com a perspectiva segundo a qual o crime é um ato que gera repulsa social e que reclama, para aplacá-la, a imposição de uma pena, os fundamentos da prescrição estão centralmente relacionados ou com o enfraquecimento do alarme social em razão do transcurso temporal, ou com a desnecessidade da pena em face da recuperação do criminoso, da expiação de sua culpa ou de sua constituição psíquica. Se o Estado pode (e deve) se responsabilizar quanto à omissão ex post, igualmente razoável que o possa em face de uma omissão ex ante.”

De seu turno, Rodrigo Roig[33], no âmbito da execução da pena, também condena a ideia de reprovação, substituindo-a por uma imputação estritamente jurídica, por força do princípio da culpabilidade (art. 45, § 3º, da LEP), vejamos:

“No cotidiano carcerário, é sabido que raramente os condenados ou denunciados recebem da Administração as devidas informações sobre o rol de faltas e recomendações disciplinares. Diante desse manifesto descumprimento à LEP e à Constituição Federal, é possível afirmar que a falta de ciência das normas disciplinares ao condenado ou denunciado, no início da execução da pena ou da prisão, também pode ensejar o afastamento da culpabilidade por uma falta disciplinar, uma vez descaracterizada a potencial consciência da ilicitude da conduta carcerária, por erro de proibição. Outra prática atentatória ao princípio da culpabilidade é a imposição de juízos valorativos negativos sobre a pessoa presa (ex.: periculosidade, rebeldia, subversão), sem qualquer vinculação com a ocorrência de fatos concretos. [...] Com tais juízos, o ônus probatório é invertido do Estado para a pessoa presa, que precisa provar a improcedência da imputação valorativa a ela realizada, em claro prejuízo ao contraditório, ampla defesa e presunção de inocência.”


DA APLICAÇÃO DA PENA

Indo mais fundo, no âmbito da mensuração da reprimenda, elucida que o princípio da lesividade, sob o prisma redutor, significa a mínima lesividade sobre o condenado, de sorte a vetar juízos utilitaristas, por exemplo. De outro lado, a intervenção mínima, sob o viés redutor, seria a necessidade aflitiva de imposição da pena privativa de liberdade seja a menor possível. Por fim, o festejado Rodrigo Roig[34] dispõe, in litteris:

“Acertada, assim, a constatação de que o sistema penal formal viola a legalidade penal, uma vez que a deficiência de parâmetros legais e doutrinários definidos para a gradação penal enseja avaliações extremamente vastas e desprovidas de regulação, confiando esse campo à arbitrariedade. Uma vez entregue a injunção penal ao mero arbítrio judicial, produz-se uma abdicação da legalidade e, ordinariamente, tende-se a destinar o poder da agência judicial a um sentido potencializador de danos, quando na verdade deveria atuar de maneira contra-habilitadora do poder punitivo”.

Não só isso. Rodrigo Roig[35] rememora que nos casos de absolvição do Réu, o Ministério Público não possui direito ao duplo grau de jurisdição, por ser direito exclusivo do acusado. Nessa senda, o jus accusationis restaria esgotado no provimento de 1ª instância, como materialização da individualização da pena, bem como descaberia recurso com o fito de elevar a pena aplicada.

Isso porque a presunção de inocência – sob a ótica redutora de danos – cria a presunção de pena mínima, ou até mesmo, presunção de pena zero. Por sua vez, entende que uma nova concepção da anterioridade interdita a avaliação deletéria de imputações e fatos pretéritos, haja vista a vedação de projeção futura de efeitos penais das condenações anteriores.

Ainda, sustenta o autor que a exposição dos motivos do delito como consequência da confissão, a qual possui efeito atenuante, torna imprestáveis os motivos para fins de incremento da resposta penal. Nesse passo, descabe imputar ao réu “consequências do crime”, que, em momento algum, ingressaram em sua esfera cognitiva, por contemplar a odiosa versari in re illicita.

Ao fim, Rodrigo Roig sustenta, veementemente, que a reincidência se revela inconstitucional, devido aos princípios do ne bis in idem, intangibilidade do caso julgado, lesividade, proporcionalidade, igualdade, individualização da pena e secularização. E nem se queira falar na aplicação do ne bis in idem para obstar a aplicação cumulativa de atenuantes, pois um postulado destinado à tutela do indivíduo não pode ser empregado justamente para habilitá-lo, em detrimento do dever de arrefecimento de danos.

Por fim, na terceira fase do processo dosimétrico, Rodrigo Roig defende que a aplicação das causas de diminuição previstas na parte especial espraia-se por todo o ordenamento a todas as espécies delitivas. Ou seja: a analogia in bonam partem, combinada ao dever jurídico-constitucional de redução da afetação individual e a máxima efetividade recomenda que as minorantes não se restrinjam aos tipos penais em que topologicamente se encontram. Ainda, o magistrado deve aplicar todas as causas de diminuição, de forma cumulativa, ainda que pertencentes à parte especial do Diploma Penal.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após as considerações feitas ao longo do trabalho, reforça-se que a diversificação[36] (medidas alternativas) é uma consequência mais branda do que a própria pena, devendo ter prelação. Isso porque, a força preventiva do direito penal não depende da dureza da sanção, porém da reação certa estatal de modo reprovador. Interessante expandir a ação e a capilaridade das clínicas de vulnerabilidade para egressos.

Além disso, a criação de novas penas mais brandas ou mesmo a adoção de contraordenações poderão colaborar. No entanto, não se deve olvidar que os princípios e todo o arsenal de normas repressivas foram criados para a proteção do indivíduo em face do Estado, logo, não podem ser interpretados em seu desfavor, como quotidianamente é feito pela jurisprudência e doutrina.

Não é demais recordar que a Constituição não recepcionou as finalidades de prevenção especial positiva e retribuição (art. 3º, I, III, IV, CR), por força da teoria redutora de danos, conforme já explanado no decorrer do presente artigo. No realismo marginal latino-americano, não se pode viabilizar a injunção da pena privativa de liberdade, sob o manto securitário, como instrumento de anulação de individualidade e servilismo, institucionalização e diferenciação estigmatizante em maré oposta ao dever jurídico-constitucional de minimização de danos.

Já no contexto da penonologia revisionista, o poder punitivo não pode ser a extrema ratio, sem lançar olhar aos efeitos da prisionização. Esse Estado de Polícia, em controle penal atuarial, acaba permitindo condenações sumárias, tipos criminológicos de autor, com praceamento do ser humano e execração do preso/condenado, em juízo maniqueísta que pune a diversidade e reifica a natureza humana.

Esse espaço de “não direito”, engendrado pelo discurso positivista etiológico e pericolosista, não pode perpetuar a teoria da relação especial de sujeição, ou o princípio do less eligibility ou, ainda, a doutrina do hands off, tendo em conta a garantia da jurisdicionalidade, a fim de evitar a flexibilização da legalidade em prol de finalidades irrealizáveis. Sendo assim, essa zona livre de direito trabalha com uma futurologia utilitária sem lastro empírico e esquece ser a liberdade regra e a prisão – exceção.

Sendo assim, na contramão da mortificação do “eu”, da brutalização, da inocuização da pessoa humana e em prol da segurança dos direitos, devemos obstar a expansão da malha penal, no processo de naturalização de desrespeito aos direitos humanos. Desse modo, devemos estimular políticas de alternativas penais e mecanismos horizontalizados e autocompositivos, a fim de vencer o preconceito oracular que apenas provoca maiores danos existenciais ocasionados pelo constante enjaulamento de cidadãos em pura hemorragia acusatória.

Por fim, mister ter em mente que não existem crimes em si, apenas rótulos de condutas. Desse modo, a descrimininalização, a desjudicialização (salvo na execução penal) e a despenalização devem ser incentivadas à luz do recrudescimento do princípio da ultima ratio e da subsidiariedade. Urge, portanto, a reinterpretação dos institutos jurídico-penais, sendo algumas teses inovadoras já levantadas por grandes mestres da Doutrina brasileira e que necessitam ter permeabilidade na jurisprudência e na consciência do profissional.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ZAFFARONI, E. Raúl. BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro, primeiro volume: teoria geral do direito penal. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.


Notas

[2] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Direito e prática histórica da execução penal no Brasil. Rio de Janeiro: Renan, 2005. Pág. 21.

[3] Rodrigo Roig sustenta que o requisito “demonstração de merecimento do condenado” para a recuperação do direito à saída temporária (art. 125, p/u, da LEP) vulnera o princípio da legalidade, dando azo a insegurança jurídica e arbitrariedade. Por essa mesma razão, discute a inconstitucionalidade do art. 50, I e III, da LEP (ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. São Paulo: Saraiva, 2014, pág. 42 - 43).

[4] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Direito e prática histórica da execução penal no Brasil. Rio de Janeiro: Renan, 2005. Pág. 170.

[5] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. São Paulo: Saraiva, 2014. Pág. 77

[6] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. São Paulo: Saraiva, 2014. Pág. 71

[7]  Art. 72 - No concurso de crimes, as penas de multa são aplicadas distinta e integralmente.(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

[8] A jurisprudência majoritária entende que apenas se considera o aumento pelo crime continuado, quando há entre dois crimes integrantes do nexo de continuidade delitiva, concurso formal, para arrostar bis in idem, visto que a regra foi concebida em favor do réu. Além disso, alguns doutrinadores entendem que a menção ao art. 75, no bojo do art. 71, significa que há um limitação na aplicação da pena em trinta anos. Ainda, pode-se sustentar que o caso julgado acoberta toda a relação de continuidade delitiva, mesmo que ocorridos posteriormente, descobertos posteriormente ou que não tenham sido objeto do processo.

[9] BÉZE, Patricia Mothé Glioche. Novas tendências do concurso formal e crime continuado. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. Pág. 206.

[10] Notório observar que Patricia Mothé Glioche entende que a vida não comporta fracionamento para que incida o planejamento único do crime continuado, salvo se for a mesma vítima, de modo que a ideação única não importa no verdadeiro crime continuado, o que, em sua visão, não impede a incidência da forma atenuada do concurso real de crimes (art. 71, CP).

[11] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. São Paulo: Saraiva, 2014. Pág. 310.

[12] LOBATO, José Danilo Tavares. Direito Penal Ambiental e seus fundamentos: parte geral. 1ª ed. (ano 2011). Curitiba: Juruá, 2011. Pág. 20.

[13] LOBATO, José Danilo Tavares. Direito Penal Ambiental e seus fundamentos: parte geral. 1ª ed. (ano 2011). Curitiba: Juruá, 2011. Pág. 69.

[14] A exemplo da inconstitucionalidade do crime previsto no art. 68, art. 49, em sua forma culposa, art. 55, todos da Lei nº 9.605/98, por força do devaneio normativista do legislador. Nesse ponto, mister recordar que o bem jurídico coletivo não pode perder sua referibilidade à dignidade do ser humano, não podendo constituir-se em mera soma de bens jurídicos individuais, sem se esquecer da crítica que se faz aos bens jurídicos macrossociais. No entanto, Danilo defende que o crime de maus-tratos a animais tutela a vida e a integridade física dos animais, como projeções da vida e da integridade humanas, por atingir à dignidade humana, refutando o fundamento do sentimento humano de solidariedade ou de piedade. Na verdade, o autor refuta a criminalização das condutas dos arts. 24, 30, 31, 34, 39, 42, 44, 49, 50-A, 51, 52, 55 e 60 da Lei de Crimes Ambientais, pela ausência de lesividade e bem jurídico.

[15] ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. Organização: Luís Greco e Fernando Gama de Miranda Netto. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. Pág. 13.

[16] A culpabilidade não pode ser um juízo de repreensão do indivíduo, sendo, de conseguinte, juízo de inadequação da conduta com a exigência normativa. Nesse rumo, o autor José Danilo entende inconstitucional a responsabilização criminal da pessoa jurídica, vez que aplica o instituto do abuso de direito ao campo penal e também em vista da humanidade da ação, inexistência de tipicidade subjetiva, princípio da personalidade da responsabilidade penal, ausência de culpabilidade, ausência de exigência da Constituição e, por fim, as pessoas jurídicas privadas só podem buscar fins lícitos, tal como ocorre na esfera pública. Subsidiariamente, sustenta a inconstitucionalidade do art. 24, da Lei de Crimes Ambientais por implicar em pena de morte, vedada no ordenamento constitucional atual.

[17] TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Culpabilidade. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014. Pág. 162.

[18] A acessoriedade administrativa pode ser de grau relativo, quando o preceito administrativo integra o tipo penal, ao passo que a acessoriedade ao Direito Administrativo cria uma dependência do Direito Penal às normas infralegais, sendo que muitas entidades federativas, sem competência constitucional em matéria penal e em prejuízo à isonomia, poderão influenciar na construção desses pragmas conflitivos. Por sua vez, a acessoriedade ao ato administrativo que ocorre na direta referência da norma penal ao ato administrativo, o que traz a discricionariedade administrativa ao contexto delitual, rompendo com o princípio da legalidade e isonomia. Em suma, em razão do princípio da proteção da confiança, atos administrativos autorizadores inválidos excluem a tipicidade desses crimes. Destaque-se, ainda, que, para muitos doutrinadores, a tolerância administrativa ou omissão serve como justificante, em que pese grave controvérsia sobre o assunto.

[19] LOBATO, José Danilo Tavares. Direito Penal Ambiental e seus fundamentos: parte geral. 1ª ed. (ano 2011). Curitiba: Juruá, 2011. Pág. 90-91.

[20] O próprio autor José Danilo evidencia um exemplo de desproporção na conduta de receptadores ambientais sem finalidade empresarial (art. 180, CP) ser punida mais severamente do que o tipo do art. 46 da Lei de Crimes Ambientais, estimulando a prática da ilegalidade. Mais adiante, o autor aduz que não se verifica mandato de criminalização do art. 225, § 3º, da CR.

[21] ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. Organização: Luís Greco e Fernando Gama de Miranda Netto. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. Pág. 37; 50-51..

[22] TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Culpabilidade. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014. Pág. 173.

[23] LOBATO, José Danilo Tavares. Teoria Geral da participação criminal e ações neutras – uma questão única de imputação objetiva.  1ª ed. (ano 2009). Curitiba: Juruá, 2010. Pag. 57.

[24] GRECO, Luís. Cumplicidade através de ações neutras. A imputação objetiva na participação. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. P. 135-146. Apud LOBATO, José Danilo Tavares. Teoria Geral da participação criminal e ações neutras – uma questão única de imputação objetiva.  1ª ed. (ano 2009). Curitiba: Juruá, 2010. Pag. 571.

[25] LOBATO, José Danilo Tavares. Teoria Geral da participação criminal e ações neutras – uma questão única de imputação objetiva.  1ª ed. (ano 2009). Curitiba: Juruá, 2010. Pág. 73.

[26] Aproveita-se o ensejo para afirmar que são de discutível constitucionalidade os elementos normativos insertos no tipo, dentro da função sistemática, em vista da indeterminação e insegurança jurídica. Nesse ponto, o dolo possui um aspecto cognitivo e um conativo que são prejudicados em face desses elementos.  Na dúvida, deve-se lutar pela atipicidade sistemática ou conglobante que pode ser absoluta ou relativa, esta última implica na desclassificação para outro crime.

[27] Claus Roxin entende que deve se isentar de pena “o excesso extensivo, cometido após o término da injusta agressão. Afinal, tampouco é preventivamente necessário punir aquele que, por desorientação, medo ou susto, ultrapassa os limites temporais da legítima defesa. [...] Por pensarem que a culpabilidade tem necessariamente de acarretar uma pena, tal dispositivo lhes parece de todo modo incompreensível.” IN: ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. Organização: Luís Greco e Fernando Gama de Miranda Netto. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. Pág. 65.

[28] ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. Organização: Luís Greco e Fernando Gama de Miranda Netto. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. Pág. 68.

[29] Exemplos: desobediência civil, culpa leve, excessos em estado de necessidade ou legítima defesa, fatos socialmente suportáveis, erros de tipo ou de proibição relativamente inevitáveis, ou mesmo, pela auto-responsabilidade e consentimento, questiona certas punições em alguns casos concretos de eutanásia e auxílio a suicídio, dentre outros.

[30] TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Culpabilidade. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014. Pág. 95.

[31] TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Culpabilidade. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014. Pág. 198 – 205. Vale a pena a leitura dos exemplos ali esmiuçados.

[32] Idem. Pág. 203.

[33] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. São Paulo: Saraiva, 2014. Pág. 64.

[34] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Aplicação da Pena: limites, princípios e novos parâmetros. São Paulo: Saraiva, 2013. Pág. 75.

[35] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Aplicação da Pena: limites, princípios e novos parâmetros. São Paulo: Saraiva, 2013. Pág. 113-114.

[36] ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. Organização: Luís Greco e Fernando Gama de Miranda Netto. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. Pág. 14.


Autor

  • Lucas Medeiros Gomes

    Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Especialista em Regulação na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Defensor Público Federal. Juiz Federal Substituto no Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Lucas Medeiros. Uma análise das teses defensivas redutoras do direito repressivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4490, 17 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42850. Acesso em: 18 abr. 2024.