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A teoria do diálogo das fontes e a flagrante inconstitucionalidade do artigo 193, § 2º da CLT

um novo prisma sobre a constitucionalização do direito do trabalho

A teoria do diálogo das fontes e a flagrante inconstitucionalidade do artigo 193, § 2º da CLT: um novo prisma sobre a constitucionalização do direito do trabalho

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Versa o artigo sobre a possibilidade de incidência dos adicionais constitucionais de periculosidade e insalubridade em uma nova interpretação dos direitos sociais prevista na Constituição Federal.

1 – Aspectos da interpretação constitucional no direito do trabalho

1.1.– A constitucionalização do direito no cenário mundial e a constitucionalização tardia no direito brasileiro

Após a Segunda Guerra mundial, os países ocidentais passaram por uma importante revolução no campo da interpretação do direito, atribuindo ao direito constitucional uma maior ênfase na hermenêutica das normas infraconstitucionais.

Nesse sentido, a obra “A força normativa da Constituição”, de Konrad Hesse, representou um marco sociológico no direito constitucional ao se opor ao discurso de Ferdinand Lassale, para quem a Constituição apenas representaria uma folha de papel (ein Stück Papier), uma espécie de síntese do que seriam os “fatores reais do poder” que formam “a constituição real do país” (HESSE, 1991, p. 09).

Para Lassale, a capacidade de uma constituição de regular e de motivar as decisões jurídicas de uma nação estaria

...limitada à sua compatibilidade com a Constituição real. Do contrário, torna-se inevitável o conflito, cujo desfecho há de se verificar contra a Constituição escrita, esse pedaço de papel que terá de sucumbir diante dos fatores reais de poder dominantes no país” (HESSE, 1991, p.9).

Segundo Lassale, a força determinante das relações fáticas seria o limite hipotético extremo da Constituição. E a Constituição jurídica, no que tem de fundamental, sucumbe cotidianamente em face da constituição real.

Durante muito tempo, de forma inconsciente a interpretação dos direitos e garantias constitucionais – em especial os dos cidadãos e os dos trabalhadores – foram interpretados à Lassale no direito brasileiro, a tal ponto do Professor Marcelo Neves, diante da crise constitucional interpretacional no início dos anos 90, ter lançado a sua tese da constitucionalização simbólica, que virou um marco no direito constitucional brasileiro.

De fato, na evolução histórica da interpretação das normas no direito brasileiro, as lições de Ferdinand Lassale eram mais do que evidenciadas em nossa jurisprudência. Diversos casos eram resolvidos apenas e tão somente analisando-se os dispositivos infraconstitucionais, mesmo quando a Constituição lhes trazia toda uma carga principiológica que deveria ser aplicada na concreção. Daí, o próprio artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (batizado por longas décadas como Lei de Introdução ao Código Civil) aduzia em seu artigo 4º que “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”

Os princípios gerais do direito ficavam em última análise, com boa parte da doutrina brasileira do século XX o colocando como última alternativa à integração das lacunas (e apenas quando houvesse lacunas).

Em 1959, numa visão bem avançada para a sua época, Konrad Hesse (1991) lecionou, em síntese de parte de suas ideias, que:

  1. ) a força normativa de uma Constituição não reside, tão somente, na adaptação inteligente de uma dada realidade, combatendo a ideia central de Lassale, onde para Hesse a Constituição tem vida própria (embora aliada da realidade);
  2. ) apesar da Constituição não fazer nada no campo fático, ela impõe tarefas que devem ser por todos observadas e cumpridas;
  3. ) a Constituição converte-se em força ativa se nestas tarefas:
    1. existir a disposição de orientar condutas de acordo com as ordens nela estabelecidas;
    2. houver desejo de concretizar estas ordens, a despeito de todos os juízos de oportunidade e conveniência;
  4. ) a Constituição será convertida em força ativa se fizerem presentes a vontade de poder e a vontade de Constituição.

A força normativa de uma Constituição depende muito, pois, de sua força ativa. Esse tipo de pensamento terminou por servir de um dos pilares para o neoconstitucionalismo.

Nesse particular, nosso sistema jurídico sofreu de uma constitucionalização tardia. Normas constitucionais outorgavam direitos e garantias aos cidadãos e trabalhadores, mas os tribunais interpretavam tais normas como sendo de constitucionalização simbólica, ou seja, despidas de efeitos sociais práticos.

Este cenário passou por profundas alterações recentemente na jurisprudência do Supremo que, a partir de meados dos anos 2000, passou a emprestar efeitos reais da Constituição para diversos ramos do direito, com forte aplicação no direito administrativo, penal e civil. Entrementes, no direito do trabalho, tal constitucionalização ainda demanda um labor de releitura de alguns dos principais dispositivos dos direitos sociais, conforme será adiante demonstrado.

1.2.– O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO FUNDANTE DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

O princípio da dignidade da pessoa humana se constitui no núcleo central e indissociável de todos os demais direitos subjetivos, estejam eles constitucionalizados como direitos fundamentais ou subsistam no plano da legislação infraconstitucional.

Ingo Wolfgang Sarlet (2002, p. 120-121), neste sentido, leciona:

É justamente neste contexto que o princípio da dignidade da pessoa humana passa a ocupar lugar de destaque, notadamente pelo fato de que, ao menos para alguns, o conteúdo em dignidade da pessoa humana acaba por ser identificado como constituindo o núcleo essencial dos direitos fundamentais, ou pela circunstância de – mesmo não aceita tal identificação – se considerar que pelo menos (e sempre) o conteúdo em dignidade da pessoa em cada direito fundamental encontra-se imune a restrições.

A impossibilidade de restrições dos direitos subjetivos fundados diretamente na dignidade da pessoa humana é, portanto, uma das características de nossa Constituição.

Para Luís Roberto Barroso (2009, p. 584):

A dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação, independemente da crença que se professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência. O desrespeito a este princípio terá sido um dos estigmas do século que se encerrou e a luta por sua afirmação um símbolo do novo tempo.

O princípio da dignidade da pessoa humana, por vezes, é confundido como sendo um direito de qualquer pessoa que esteja em território nacional. Ao lado da soberania e da cidadania, o princípio da dignidade da pessoa humana vai muito além de um mero direito constitucional: ele é um dos três princípios fundadores da República brasileira.

Neste sentido, Luiz Edson Fachin (FACHIN, RUZYK, 2011, p. 307) afirma que “trata-se de reconhecimento pelo direito de uma dimensão inerente a toda pessoa humana que antecede – como princípio simultaneamente lógico e ético – o próprio ordenamento jurídico”.

Ao analisar a figura do trabalho escravo versus dignidade da pessoa humana, o Supremo Tribunal Federal decidiu, recentemente:

A ‘escravidão moderna’ é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento a liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa, e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa ‘reduzir alguém a condição análoga à de escravo’. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2012. Inq 3.412, rel. p/ o ac. min. Rosa Weber, julgamento em 29-3-2012, Plenário, DJE de 12-11-2012).

Em excelente lição, Flávia Pessoa aduz que, na análise da dignidade da pessoa humana há “a garantia de um espaço privativo, no âmbito do qual o indivíduo se encontra resguardado contra ingerências na sua esfera pessoal” (PESSOA, 2009, P. 32).

Ou seja: no momento de concreção de qualquer norma, o princípio fundamente da dignidade da pessoa humana terá uma ampla prevalência sobre as demais normas constitucionais e será a diretriz base na ponderação de princípios.


2 – A TEORIA DO DIÁLOGO DAS FONTES E A MAXIMIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS

2.1 – O diálogo das fontes nascido na teoria do Código de Defesa do Consumidor

O direito do consumidor possui um forte ponto em comum com o direito do trabalho. Existe, de um lado e de regra, um prestador de serviços organizado e mais forte do que a outra face da moeda, o consumidor. E, por questões culturais, a Constituição Federal e o Código de Defesa do Consumidor trazem um sistema protetivo e de alcance inegável.

O primeiro instrumento para assegurar a equidade e a justiça contratual nas relações de consumo, mesmo em face dos métodos unilaterais de contratação em massa, é a interpretação judicial do contrato em favor do consumidor. De fato, de acordo com o artigo 47 do CDC, iluminado pelo princípio da boa-fé, positivado no artigo 4º, III, do CDC, a interpretação de todo contrato de consumo deve (e será sempre) conforme as imposições da boa-fé objetiva e do mandamento constitucional de promoção dos interesses dos consumidores.

Mister ressaltar que o mandamento constitucional de proteção ativa aos consumidores (ex vi do artigo 5º, XXXII da CF) e as normas dos artigos 1º, 7º e 47 do microsistema, acabam por impor uma hermenêutica especial das normas e dos contratos de consumo, que é categorizada pela doutrina consumerista em hermenêutica mais favorável ao consumidor.

Mais do que uma simples “interpretação a favor” dos interesses dos consumidores, o sistema jurídico brasileiro de normas de ordem pública, normas tutelares do sujeito vulnerável (como é o caso vertente), impõe uma aplicação das normas em diálogo (estejam ou não presentes no CDC estas normas) e uma integração das eventuais lacunas legislativas e do próprio contrato, sempre mais favorável ao consumidor.

Neste sentido, o STJ vaticina, verbis:

O mandamento constitucional de proteção do consumidor deve ser cumprido por todo o sistema jurídico, em diálogo de fontes, e não somente por intermédio do CDC. Assim, e nos termos do art. 7º do CDC, sempre que uma lei garantir algum direito para o consumidor, ela poderá se somar ao microssistema do CDC, incorporando-se na tutela especial e tendo a mesma preferência no trato da relação de consumo (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma, REsp. 1009591/RS, rel. Ministra Nancy Andrighi, j. 13.4.2010, DJE 23.08.2010, destaques de ora).

Inclusive, nas palavras da abalizada Cláudia Lima Marques (2011, p.905-906),

esta hermenêutica a favor do consumidor é cláusula pétrea (“que dispõe que é dever do Estado proteger o sujeito vulnerável na relação jurídica de consumo”), concretiza os princípios gerais (romano cristão de interpretação do favor debitoris, favor debilis, in dúbio minus/odia restringi e benigna interpretatio/humanior interpretatio) e tem hoje reflexos no processo civil, tributário, propriedade intelectual, determinando uma ‘leitura’ renovada das normas do CDC e do diálogo das fontes, como o diálogo entre a lei de planos de saúde, o CDC, o Estatuto do Idoso, o Código Civil e mesmo as normas trabalhistas e previdenciárias.

E continua a doutrinadora (2011, p 907):

em outras palavras, a aqui chamada justiça contratual começa pela aplicação concreta da norma protetiva do consumidor e continua com uma interpretação das normas em diálogo, a mais favorável ao consumidor, sujeito escolhido pelo mandamento constitucional para ser o protegido. Seria totalmente contrária ao mandamento constitucional de proteção  especial e de promoção dos direitos do consumidor uma interpretação das normas legais e uma integração de lacunas contra o consumidor, além de violar o art. 7º do CDC.

Segundo a regra do direito comum do art. 112 do CC/02, nas declarações de vontade “se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”.

E, ainda nas lições de Cláudia Lima Marques (2011, p. 908),

a jurisprudência brasileira foi evoluindo no sentido de interpretar cada vez mais positivamente para o consumidor as cláusulas do contrato de adesão, principalmente em caso de dúvida ou lacuna do contrato.

Noutro toar e dentro, ainda, do princípio do diálogo das fontes, o Código Civil de 2002 também prevê, em seu artigo 423, o recurso à interpretação mais favorável ao aderente em contratos de adesão (interpretação contra proferentem), restringindo o seu alcance para as cláusulas ambíguas ou contraditórias.

Já o artigo 47 do CDC, ao seu turno, representa uma evolução em relação a essa norma (MARQUES, 2011, p. 912),

pois beneficiará todos os consumidores, em todos os contratos, em todas as normas, mesmo se as cláusulas contratuais são claras e não contraditórias, sendo que agora a vontade interna, a intenção não declarada, nem sempre prevalecerá. Em outras palavras, é da interpretação ativa do magistrado a favor do consumidor que virá a ‘clareza’ da cláusula e que será estabelecido se a cláusula, assim interpretada a favor do consumidor, é ou não contraditória com outras cláusulas do contrato”[MARQUES, ob. Cit, p. 912].

2.2 – A transladação da teoria do diálogo das fontes para o direito do trabalho

Em excelente trabalho, Renato Rua de Almeida perfaz uma importante introdução da teoria do diálogo das fontes nas relações trabalhistas. Defende o autor que o intérprete pode se utilizar da teoria do diálogo das fontes não apenas no direito do consumidor, mas sempre que estiver em jogo os direitos fundamentais de um cidadão, pois a teoria fornece um instrumento metodológico seguro e útil a ser trilhado.

Em suas lições, assevera o autor:

Ademais, quando o método do diálogo das fontes e a eficácia dos direitos fundamentais nas relações de trabalho visam à máxima efetividade dos direitos fundamentais dos trabalhadores, como visão pós-positivista dos direitos – diferentemente da rigidez positivista da legislação trabalhista protecionista que muitas vezes gera efeito bumerangue em relação aos próprios trabalhadores – fazem-no sob o crivo e a ponderação do princípio da proporcionalidade e dos subprincípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade propriamente dita, quando sua aplicação implicar conflito com princípios normativos que assegurem valores constitucionais como a livre-iniciativa e a livre concorrência. (ALMEIDA, 2015, LTr 79-05/526).

Na evolução interpretativa do direito do trabalho, o direito até então potestativo do grande empregador de realizar demissões em massa hoje em dia encontra-se absolutamente reduzido e relativizado. Neste sentido, o autor supracitado leciona:

Mas é justamente uma visão pós-positivista pela utilização do método do diálogo das fontes e da eficácia dos direitos fundamentais nas relaç~eos de trabalho que permite a adoção das cláusulas gerais do Código Civil constitucionalizado de 2002, especialmente a boa-fé objetiva (art. 442) e a função social do contrato (art. 441), para chegar=-se à conclusão de que não mais subsiste no direito brasileiro o direito potestativo nas despedidas coletivas ou em massa, malgrado a inexistência de uma legislação complementar a respeito (...).

Com efeito, é o método do diálogo das fontes na promoção da coordenação das normas do direito brasileiro e a eficácia dos direitos fundamentais nas relações de trabalho, por força de sua dimensão objetiva irradiando-se por todo o ordenamento jurídico brasileiro, que fazem uma releitura, por meio das cláusulas gerais da boa-fé objetiva e da função social do contrato do direito civil constitucionalizado, do art. 7º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, e do art. 444 da Consolidação das Leis do Trabalho, no sentido de que, mesmo diante da ausência de uma legislação complementar que limite a liberdade contratual do empregador de unilateralmente romper o contrato de trabalho de vários trabalhadores por um mesmo motivo de ordem econômico-conjuntural ou de ordem técnico-estrutural, o direito potestativo do empregador nas despedidas coletivas não mais subsiste no direito brasileiro, pelo que a extinção contratual no caso depende de uma negociação ´revia entre trabalhadores e seus representantes e o empregador na tentativa de serem encontradas alterativas menos traumáticas que a despedida em massa, como férias coletivas, redução da jornada e do salário, suspensão d contrato de trabalho para os trabalhadores participarem de curso de qualificação profissional com o recebimento de ajuda compensatória sem natureza salarial etc, aliás, previstas pela legislação trabalhista brasileira. (ALMEIDA, 2015, LTr 79-05/527).


3 – A TEORIA DA MAXIMIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS E OS ELEMENTOS DO DIÁLOGO DAS FONTES NO DIREITO DO TRABALHO

Antes de se fazer uma análise dos princípios do direito do trabalho, urge identificar as razões pelas quais o sistema jurídico brasileiro tem um ramo do direito dedicado às relações de emprego.

O direito é um produto cultural. Assim, os valores de um país irão influenciar sobremaneira os dispositivos constitucionais/legais de uma nação. Países onde há uma proteção normativa maior ao capital, como é o caso dos Estados Unidos, não há um ramo distinto do direito laboral, apesar do mesmo possuir algumas normas de proteção ao trabalhador, a depender de Estado para Estado. Direito à licença gestante, por exemplo, é positivado em alguns estados daquela federação e, em outros, não da forma como estamos acostumados a lidar.

Os países latino americanos, em geral, possuem algumas características culturais similares, como um passado com graves distorções sociais que ainda permeiam as relações sociais contemporâneas. Com base no clamor da sociedade, normas trabalhistas nestes países tendem a ser bem mais protetoras do que naqueles estados onde tais problemas foram minorados.

Diante deste contexto, o Brasil decidiu separar o direito do trabalho do direito civil, partindo do pressuposto da evidente hipossuficiência do trabalhador. De fato, as diferenças remuneratórias no sistema brasileiro aponta para abismos sociais, com discrepâncias salariais significativas entre o chão da fábrica e a alta diretoria. Isso tudo diante de um histórico escravagista que compôs a base da economia brasileira ao longo de boa parte de sua história.

Como forma de corrigir estas distorções, o direito do trabalho institucionalizou alguns princípios protetivos da parte mais fraca, no caso, o trabalhador, como forma de equalizar a relação entre o todo poderoso empregador e o frágil empregado (relação essa que, via de regra, comporta poucas exceções).

Dentre estes princípios, em corte metodológico vamos nos ater a apenas três deles: princípio da proteção, princípio da irrenunciabilidade dos direitos e princípio da primazia da realidade.

3.1 – Os princípios das relações trabalhistas aplicados

3.1.1 – Princípio da proteção

O princípio da proteção é considerado o princípio dos princípios do direito do trabalho, constituindo a essência da regulação das normas trabalhistas. Ele se divide nos subprincípios do in dubio pro operário e aplicação da norma mais favorável.

No subprincípio in dubio pro operario, todas as vezes em que houver uma pluriexistência de sentidos da norma ou fatos dúbios no processo trabalhista, deve-se interpretar a norma a favor da parte mais fraca, ou seja, o empregado.

O princípio da aplicação da norma mais favorável indica que, quando houver normas em colisão, deverá ser aplicada aquela que melhor proteger a relação trabalhista. Este princípio está sendo ultrapassado pela teoria do diálogo das fontes.

3.2 – Princípio da irrenunciabilidade dos direitos

Por serem considerados normas de ordem pública, os direitos trabalhistas são irrenunciáveis por parte dos empregados. Tal situação tem a haver com o fenômeno da cultura brasileira, onde normalmente o empregador, grande detentor do poder diretivo e de comando da empresa, pode utilizar-se de suas prerrogativas para fazer com que os empregados – a parte mais fraca da relação – termine por “pedir” a sua renúncia a direitos.

3.3 – Princípio da primazia da realidade

Nas relações trabalhistas, não é incomum que a parte formal da relação de emprego seja diferente da parte real, que é aquela que efetivamente ocorre nas empresas. Como forma de fraudar a legislação, classificações dos trabalhadores são forjadas, as jornadas são adulteradas em seus pontos e o papel é elemento que apenas favorece o empregador. Está consubstanciado no artigo 9º da CLT quando aduz que “Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.”

Assim, no direito do trabalho impera o princípio da primazia da realidade, ou seja, a busca da verdade real prevalecerá sobre a verdade meramente formal.


4 – O DIREITO AOS ADICIONAIS POR ATIVIDADES PENOSAS, INSALUBRES E PERIGOSAS NA CONSTITUIÇÃO E A LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL

O direito fundamental à integridade física e psíquica do trabalhador está posto na Constituição no inciso III do art. 1º, assentando como princípio fundante da República a dignidade da pessoa humana.

Da mesma forma, no artigo 6º está previsto que a segurança e a previdência social são direitos sociais e no artigo 7º há uma norma diretiva que impõe o dever de redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança e seguro contra acidentes do trabalho, sob ônus do empregador, sem excluir a indenização que este está obrigado quando incorrer em dolo ou culpa. De acordo com o artigo 7º da Constituição (BRASIL, 1988), litteris:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(...)

XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;

XXIII - adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei;

Na época da edição da CLT e durante décadas a fio, os direitos dos trabalhadores eram interpretados primeiro aplicando a CLT e, posteriormente, se preciso fosse e nos tradicionais casos de lacunas, buscava-se algo na Constituição. Este tipo de interpretação perdura ainda em alguns pontos do direito do trabalho.

Ao se interpretar os diversos dispositivos constitucionais em diálogo de fontes, verifica-se que pela primazia do princípio da dignidade da pessoa humana os trabalhos penosos, insalubres e perigosos deveriam ser excluídos das relações de trabalho, pois é dever do Poder Público e dos empregadores a redução dos riscos inerentes ao trabalho.

Não obstante tal fato e mesmo com o atual estágio tecnológico da humanidade, existem funções que ainda são consideradas perigosas, insalubres e penosas, todas necessárias ao desenvolvimento econômico e social. Cita-se, por exemplo, as funções de bombeiros de postos de gasolina, trabalhadores que labutam com redes de energia, médicos e enfermeiros em contato com substâncias contaminantes.

Ainda em interpretação sistêmica do diálogo de fontes, é dever constitucional do empregador defender o princípio da dignidade da pessoa humana e minimizar ao máximo os riscos de seus funcionários. Caso não seja possível, a Constituição determinou a tarifação do risco como medida compensatória.

Assim, a dúvida interpretacional é: pode a legislação infraconstitucional suprimir o direito a um destes adicionais indenizatórios se seus requisitos legais estão devidamente preenchidos?

No caso, a CLT (BRASIL, 2015, p.118), assim prescreve:

Art. 189. Serão consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos.

[...]

Art. 192. O exercício de trabalho em condições insalubres, acima dos limites de tolerância estabelecidos pelo Ministério do Trabalho, assegura a percepção de adicional respectivamente de 40% (quarenta por cento), 20% (vinte por cento) e 10% (dez por cento) do salário mínimo da região, segundo se classifiquem nos graus máximos, médio e mínimo. (Redação dada pela Lei n. 6.514, de 22.12.1977).

Art. 193. São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem risco acentuado em virtude de exposição permanente do trabalhador a:       (Redação dada pela Lei nº 12.740, de 2012)

I - inflamáveis, explosivos ou energia elétrica;       (Incluído pela Lei nº 12.740, de 2012)

II - roubos ou outras espécies de violência física nas atividades profissionais de segurança pessoal ou patrimonial.       (Incluído pela Lei nº 12.740, de 2012)

§ 1º - O trabalho em condições de periculosidade assegura ao empregado um adicional de 30% (trinta por cento) sobre o salário sem os acréscimos resultantes de gratificações, prêmios ou participações nos lucros da empresa. (Incluído pela Lei nº 6.514, de 22.12.1977)

§ 2º - O empregado poderá optar pelo adicional de insalubridade que porventura lhe seja devido. (Incluído pela Lei nº 6.514, de 22.12.1977)

Segundo a doutrina trabalhista (MACHADO, XAVIER, COLUSSI, 2015, p. 116-118),

Existe insalubridade quando o empregado sofre agressão de agentes físicos ou químicos acima dos níveis de tolerância fixados pelo TEM, em razão da natureza e da intensidade o agente e do tempo de exposição aos seus efeitos; ou, ainda, de agentes biológicos. A insalubridade tem as características de agir de forma agressiva, cumulativa e paulatina. Ocorre a eliminação ou neutralização da insalubridade com: a) adoção de medidas que conservem o ambiente de trabalho dentro dos limites de tolerância; b) utilização de equipamento de proteção que diminua a intensidade do agente agressivo a limites de tolerância; c) remoção do funcionário do setor com condição insalubre; d) reclassificação ou descaracterização, feita por autoridade competente. Não havendo eliminação ou neutralização, surge direito ao pagamento do adicional de insalubridade em grau mínimo, médio ou máximo.

[...]

Enquanto o contato com agentes insalubres pode ser elidido pelo uso de equipamentos de proteção, o mesmo não ocorre em relação às condições perigosas. No entanto, o simples fornecimento dos EPIs não se mostra suficiente a afastar o direito ao adicional, pois há necessidade do seu efetivo uso, com permanente fiscalização.

[...]

Enquanto na insalubridade o trabalhador tem continuamente fator prejudicial à saúde, na periculosidade não importa o fato contínuo de exposição, mas apenas um risco por tempo considerável. A condição perigosa não age biologicamente no organismo, mas pode ceifar a vida ou mutilar a qualquer momento da exposição.

Ou seja, pela interpretação do art. 193, § 2º, previu-se que, quando ocorressem as hipóteses de insalubridade e periculosidade, o trabalhador deveria escolher apenas a mais vantajosa. Noutras palavras, a CLT determina que o trabalhador trabalhe em situação onde o mesmo faz jus a um adicional, mas não irá recebê-lo porque tem que optar e não acumular.

Essa interpretação, ainda prevalecente no nosso direito do trabalho, sepulta o princípio constitucional da proporcionalidade, pois ela elimina totalmente a percepção de um dos direitos compensatórios garantidos na Constituição aos trabalhadores.

Se passarmos a analisar a questão sobre outra ótica, vejamos a injustiça gerada com o trabalhador. Se em uma dada empresa tem-se um trabalho divisível que é ao mesmo tempo insalubre e perigoso (mas cuja atividade possa ser cindida, separando-se o perigoso do insalubre), a empresa poderia contratar dois funcionários para realizar cada uma das etapas do trabalho. Para um dos funcionários a empresa pagaria o salário mais o adicional de insalubridade e para o outro o salário mais o adicional de periculosidade. Ambos estariam sendo remunerados com justiça social.

Entretanto, a mesma empresa pode demitir um destes funcionários e unificar os dois trabalhos em apenas um funcionário. Milagrosamente, um dos adicionais será glosado não por o risco à saúde ser inexistente, mas por serem adicionais inacumuláveis. O empregador teria, então, um enriquecimento ilícito ao expor o trabalhador a um agente potencialmente agressivo da saúde de seu empregado e não pagaria a compensação prevista na Constituição porque a lei infraconstitucional suprimiu indevidamente um direito constitucional quando este se fazia presente.


5 – CONCLUSÃO FINAL

No momento de sua promulgação e por um resquício da época do período de exceção vivido no país, a Constituição brasileira era relevada na interpretação dos dispositivos legais, que tinham prevalência sobre a interpretação constitucional. Com a virada dos anos 2000, o Supremo Tribunal Federal passou a emprestar força normativa à Constituição em um grau ainda não visto na história do direito brasileiro.

Ao se analisar a Constituição Federal, ela previu os direitos dos trabalhadores a um ambiente de trabalho sadio e digno, com a necessária redução dos riscos inerentes ao trabalho. Nos casos em que a redução não seja possível, a Constituição determina a percepção de adicionais compensatórios dos riscos sofridos.

A interpretação até então vigente afirmava que o artigo 193, § 2º, da CLT, ao prever que, nas situações onde os riscos ao trabalhador são cumulativos (periculosidade e insalubridade), um deles seria suprimido, apesar de estar previsto em norma Constitucional. Ao interpretar desta forma, o Judiciário trabalhista esvaziou a força normativa da Constituição.

No caso, como os adicionais possuem função compensatória pelas ofensas ao princípio fundante da dignidade da pessoa humana, eles são cumuláveis e indenizáveis na forma da lei, que não poderá suprimir a sua percepção sob pena de se cometer uma grave inconstitucionalidade em face do direito dos trabalhadores.


6 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Renato Rua. Diálogo das fontes e eficácia dos direitos fundamentais: síntese para uma nova hermenêutica das relações do trabalho. São Paulo : LTr 79-05, p. 526-527.

BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito Constitucional. Tomo II, 2ª ed. revista. Rio de Janeiro : Renovar, 2009.

BRASIL. Consolidação das leis do Trabalho. CLT comentada pelos juízes do trabalho da 4ª Região. Coordenação SOUZA, Rodrigo Trindade de et al. LTR 2015.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma, REsp. 1009591/RS, rel. Ministra Nancy Andrighi, j. 13.4.2010, DJE 23.08.2010.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inq 3.412, rel. p/ o ac. min. Rosa Weber, julgamento em 29-3-2012, Plenário, DJE de 12-11-2012.

FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos E. Pianovski. Princípio da Dignidade Humana (no direito civil), in TORRES, Ricardo Lobo et al. Dicionário de Princípios Jurídicos. Rio de Janeiro : Elsevier, 2011.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Sérgio Antonio Fabris Editor : Porto Alegre, 1991.

MACHADO, Fabíola Schivitz Dornelles; XAVIER, Luciana Carigi; COLUSSI, Luiz Antônio. in CLT comentada pelos juízes do trabalho da 4ª Região. SOUZA, Rodrigo Trindade de (coordenador). São Paulo : LTR, 2015.

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 6ª Edição. São Paulo : RT, 2011.

PESSOA, Flávia Moreira Guimarães. Curso de direito constitucional do trabalho. Salvador : Podivm, 2009.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.


Autor

  • Pedro Dias Araújo Júnior

    Mestre em direito processual civil pela UFS.Pós-graduado em direito constitucional e processual civil pela UFS.Extensão em Common Law no Iuslaw/George Washington Law Scholl. Graduado em direito pela UFPE.Professor universitário.Procurador do Estado de Sergipe.Advogado.

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ARAÚJO JÚNIOR, Pedro Dias. A teoria do diálogo das fontes e a flagrante inconstitucionalidade do artigo 193, § 2º da CLT: um novo prisma sobre a constitucionalização do direito do trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4632, 7 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46223. Acesso em: 26 abr. 2024.