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O direito à liberdade de expressão e as biografias não autorizadas na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815

O direito à liberdade de expressão e as biografias não autorizadas na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815

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A decisão do STF sobre a publicação de biografias não autorizadas pode ser considerada uma vitória da democracia e do direito à liberdade de expressão.

1 INTRODUÇÃO

Constantemente, a sociedade se deparava com notícias na televisão, nos jornais, na internet, sobre personalidades famosas que conseguiam a proibição da veiculação de biografias ou obras audiovisuais (filmes, documentários) que não foram autorizadas.

Esses casos eram submetidos ao Poder Judiciário, e consequentemente, não havendo a autorização do interessado, ou de seus familiares, quando morto, podia se considerar perdida a batalha judicial para o biógrafo.

A exigência prévia de autorização para a publicação de biografias ganhou força com o novo Código Civil de 2002, que dispôs em seus artigos 20 e 21 uma redação extensa e confusa, permitindo que fosse construída uma interpretação a qual proibia a produção biográfica sem a autorização do interessado ou de seus familiares, quando falecido.

Mesmo com as garantias constitucionais da liberdade de expressão e da proibição da censura, nenhuma argumentação jurídica conseguia mudar o posicionamento do Judiciário, que sempre pendia a balança para as garantias civilistas, valorizando a proteção da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem.

Até então, parecia que a única solução seria a produção de biografias com a autorização do interessado ou da família. O biógrafo deixaria de exercer sua função de relatar os fatos relevantes à sociedade e à História. O gênero biografia seria travestido de publicidade em decorrência da censura imposta pelos biografados e interessados. Somente se colocaria no papel ou na tela do cinema a informação permitida pelo biografado.

Todavia, em julho de 2012, a Associação Nacional dos Editores de Livros – ANEL, propôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, tendo por objeto a declaração da inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil, argumentando que o texto tem ensejado à proibição para que as biografias não autorizadas pelos biografados não possam ser publicadas e veiculadas pelo não consentimento da pessoa a ser biografada ou de seus familiares, o que configuraria censura prévia.

Iniciou-se uma batalha na mais alta corte do país; de um lado, as editoras de livros, os biógrafos e outros atores importantes na sociedade que funcionaram como amici curiae no julgamento. Do outro, instituições representativas de artistas e personalidades famosas que não queriam a mudança do status quo, pois desejavam o controle das informações transmitidas pelos biógrafos ao público.

Esse trabalho trata-se de uma pesquisa qualitativa bibliográfica do tipo descritiva explicativa, na qual será desenvolvida a análise dos conflitos do direito à liberdade de expressão com o direito à intimidade e à vida privada, concentrando os estudos na questão da exigência prévia de autorização para a publicação de biografias, em especial a análise do voto da ministra Cármen Lúcia na Ação Direita de Inconstitucionalidade 4.815 e a decisão final do pedido da ADI.

O estudo baseia-se na literatura presente em livros, artigos, periódicos jurídicos, análise de caso judicial, legislação, cujo método de análise e confronto dos conteúdos é o que será utilizado para o estudo e apresentação das informações coletadas. 


2 O DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Para que seja possível iniciar a discussão sobre a exigência prévia de autorização para a publicação de biografias, fruto da interpretação dos artigos 20 e 21 do Código Civil Brasileiro, torna-se necessário o prévio estudo da liberdade de expressão estabelecida pela Constituição Federal de 1988.

Como ensina Mendes (2011, p. 296), a liberdade e igualdade formam dois elementos essenciais do conceito de dignidade da pessoa humana, que o constituinte erigiu à condição de fundamento do Estado Democrático de Direito e vértice do sistema dos direitos fundamentais.

A liberdade de expressão é um dos mais relevantes e preciosos direitos fundamentais, correspondendo a uma das mais antigas reivindicações dos homens de todos os tempos (MENDES, 2011, p. 296). Pode-se citar a presença da proteção à liberdade de expressão nos incisos IV e XIV do artigo 5º e no artigo 220 e seus parágrafos 1º e 2º, todos da Constituição Federal, a seguir transcritos:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

[...]

XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

[...]

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

[...]

Em defesa da liberdade de expressão, há o argumento humanista, que a acentua como corolário da dignidade humana. O argumento democrático aponta que o “autogoverno postula um discurso político protegido das interferências do poder”. Desta forma, a liberdade de expressão é enaltecida como instrumento para o funcionamento e preservação do sistema democrático, espaço onde o pluralismo de opiniões é vital para a formação da livre vontade (MENDES, 2011, p. 297).

Estão amparados pela garantia da liberdade de expressão, ao menos enquanto não houver colisão com outros direitos fundamentais e com outros valores constitucionalmente estabelecidos, toda opinião, convicção, comentário, avaliação ou julgamento sobre qualquer assunto ou sobre qualquer pessoa, envolvendo tema de interesse público, ou não, de importância e de valor, ou não – até porque “diferenciar entre opiniões valiosas ou sem valor é uma contradição num Estado baseado na concepção de uma democracia livre e pluralista”, leciona Mendes (2011, p. 297).

No direito de expressão cabe, segundo a visão generalizada, toda mensagem, tudo que se pode comunicar – juízos, propaganda de ideias e notícias sobre fatos. Entretanto, tal direito não protege a violência, não podendo extrapolar para o aspecto da coação física (MENDES, 2011, p. 298).

Enquanto direito fundamental, a liberdade de expressão possui um caráter de pretensão a que o Estado não exerça censura. Cabe ao público que recebe a mensagem dar validade e aceitação, e não o Estado. Dessa forma, justifica-se a garantia presente no artigo 220 da Constituição Federal, concluindo que o direito em análise possui índole marcadamente defensiva, isto é, uma abstenção pelo Estado de uma conduta que interfira sobre a esfera de liberdade do indivíduo (MENDES, 2011, p. 298).

Censura, segundo a interpretação constitucional, é toda a ação governamental, de ordem prévia, focada sobre o conteúdo de uma mensagem. Proibir a censura significa impedir que as ideias e fatos que o indivíduo pretende divulgar tenham de passar, antes, pela aprovação de um agente estatal (MENDES, 2011, p. 298).

Seguindo o mesmo raciocínio, Ferreira (2015) explana que a censura deve ser terminantemente combatida, pois seria ilógico restringir a liberdade de expressão à conveniência de quem quer que seja, inclusive, do Estado. Não cabe interferência do Estado ou de qualquer indivíduo na esfera de liberdade dos demais, e obviamente, cada um, no exercício de seus direitos, deve ser responsabilizado pelos abusos cometidos e pelos danos causados.

Também se engloba como liberdade de expressão, além do direito de se exprimir, como também o de não se expressar, de se calar e de não se informar. O indivíduo não está obrigado em buscar informações ou expressar opiniões, se assim desejar.

2.1 Limites ao exercício da liberdade de expressão

A proibição da censura não isenta o indivíduo das consequências advindas dos excessos cometidos no exercício da liberdade de expressão, não só as cíveis, como igualmente as penais (MENDES, 2011, p. 298). É o que se extrai dos incisos V e X do artigo 5º da Constituição Federal:

[...]

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

[...]

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

[...]

O constituinte brasileiro, no artigo 220 da Constituição Federal, ao tempo em que proclama que não haverá restrição ao direito de manifestação de pensamento, criação, expressão e informação, dizendo também, no § 1º, que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social”, ressalva que assim será “observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”. Portanto, admite-se a interferência legislativa para proibir o anonimato (IV), para impor o direito de resposta e a indenização por danos morais e patrimoniais e à imagem (V), para preservar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (X), para exigir qualificação profissional dos que se dedicam aos meios de comunicação (XIII) e para que se assegure a todos o direito de acesso à informação (XIV) (MENDES, 2011, p. 304).

A liberdade de expressão poderá sofrer recuo quando o seu conteúdo puser em risco uma educação democrática, livre de ódios preconceituosos e fundada no superior valor intrínseco de todo ser humano. Procede-se a uma concordância prática entre valores em conflito, para assegurar a legitimidade da lei que tem por efeito colateral a interferência sobre o exercício da liberdade de expressão (MENDES, 2011, p. 305).

O teste de validade da lei não exige critérios particularmente estritos, bastando que a deliberação legislativa se revele razoável. O teste de razoabilidade deve atender aos critérios informadores do princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito). Merecerá crítica a lei que não responder ao requisito da necessidade, ou seja, se for imaginável outra medida que renda o resultado esperado, mas com menor custo para o indivíduo (MENDES, 2011, p. 306).

A lei que, pretextando um objetivo neutro do ponto de vista ideológico, oculte o propósito dissimulado de impedir a veiculação de ideias, não estará, obviamente, imune à declaração de inconstitucionalidade (MENDES, 2011, p. 306).

2.2 A verdade como limite à liberdade de expressão sob a ótica da liberdade de imprensa

Deve-se indagar se apenas a informação verdadeira acha-se protegida pela liberdade de expressão, em especial nos casos da liberdade de imprensa. Questiona-se também se a informação falsa está protegida nesse mesmo contexto.

O exercício do direito à informação, fruto da liberdade de expressão, não pode ser admitido em caráter absoluto, ilimitado, sendo imperioso estabelecer limites ao direito de informar, a partir da proteção dos direitos da personalidade (imagem, vida privada, honra etc.), especialmente com base na tutela fundamental da dignidade da pessoa humana, também alçada ao status constitucional no inciso III do artigo 1º da Magna Carta (FARIAS, 2012, p. 182)

A informação falsa não seria protegida pela Constituição, assim ensina Mendes (2011, p. 308), porque conduziria a uma pseudo-operação da formação da opinião. A função social da liberdade de informação é colocar a pessoa sintonizada com o mundo que a rodeia, para que possa desenvolver toda a potencialidade da sua personalidade e, assim, possa tomar as decisões que a comunidade exige de cada integrante.

No mesmo sentido, Ferreira (2015) ensina que a atividade jornalística resta protegida até o ponto em que atinja a sua finalidade pública de informar a sociedade de forma responsável e livre de danos aos terceiros, devendo ressaltar que o direito à liberdade de expressão não protege e nem aprova a violência.

A publicação, pelos meios de comunicação, de fato prejudicial a outrem, gera direito de indenização por danos sofridos, admitindo-se, entretanto, a prova da verdade, como fator excludente de responsabilidade. A publicação da verdade, portanto, é a conduta que a liberdade proclamada constitucionalmente protege (MENDES, 2011, p. 309).

Isso não impede que a liberdade seja reconhecida quando a informação é desmentida, mas houve objetivo propósito de narrar a verdade, fato que pode ocorrer quando o órgão informativo comete erro não intencional. O requisito da verdade deve ser compreendido como exigência de que a narrativa do que se apresenta como verdade factual seja a conclusão de um atento processo de busca de reconstrução da realidade, implicando em um dever de cautela imposto ao comunicador (MENDES, 2011, p. 309).

Não cabe ao jornalista censura se buscou noticiar, diligentemente, os fatos por ele diretamente percebidos ou a eles narrados, com a aparência de verdadeiro, dadas as circunstâncias. Também não se admite a ingenuidade do jornalista, em virtude da importante tarefa que lhe incumbe desempenhar (MENDES, 2011, p. 309).

A responsabilização do direito à indenização é ampliado pela Súmula 221 do Superior Tribunal de Justiça, a qual estabelece que “são civilmente responsáveis pelo ressarcimento de dano, decorrente de publicação pela imprensa, tanto o autor do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação”, representando a garantia de que as inverdades , abusos e violação de direitos serão coibidos, podendo ser exigida a reparação de terceiro que veicule as informações.

O próprio tom com que a notícia é veiculada ajuda, por outro lado, a estremar o propósito narrativo da mera ofensa moral. Se se cobra responsabilidade do jornalista, traduzida em diligência na apuração da verdade, tal requerimento não pode, decerto, ser levado a extremos, sob pena de inviabilizar o papel da imprensa. Arremata com expertise Mendes (2011, p. 310) que a latitude de tolerância para com o erro factual varia conforme a cultura e a história de cada país.

Acentua-se que não é qualquer assunto de interesse público que justifica a divulgação jornalística de um fato. A liberdade de imprensa estará configurada nos casos em que houver alguma relevância social nos acontecimentos noticiados.

É comum ocorrerem conflitos de interesses estabelecidos entre a liberdade de imprensa e os direitos da personalidade, e em tais casos, é certa e incontroversa a inexistência de qualquer hierarquia, merecendo, ambas as figuras, uma proteção constitucional. Resta a aplicação da técnica da ponderação de interesses, buscando averiguar, no caso concreto, qual o interesse que sobrepuja, na proteção da dignidade humana. Portanto, deve-se investigar qual o direito que possui maior amplitude no caso concreto (FARIAS, 2012, p. 183).

Não se pode tolerar que a imprensa venha a se valer de seu prestígio e alcance para impor prejuízo aos direitos da personalidade de qualquer pessoa, atentando contra a sua honra, imagem ou intimidade. Entretanto, a eventual mitigação da liberdade de imprensa não implica em repristinar a prática da censura (FARIAS, 2012, p. 184-185).

O que se tem, em concreto, é que a democracia e as liberdades constitucionais podem impor uma relativização no exercício de todo e qualquer direito, e nas palavras de Edílson Farias, não se pode “confundir censura com controle jurisdicional da legalidade no exercício da liberdade de comunicação social, que é função reservada aos juízes e tribunais na democracia constitucional” (FARIAS, 2012, p. 185-186).

2.3 O respeito à honra e à dignidade no exercício da liberdade de expressão

Outro importante limite à liberdade de imprensa é o respeito à honra, restrição prevista expressamente na Constituição Federal, no inciso X do artigo 5º. Todavia, não significa que apenas notícias agradáveis sejam lícitas.

O direito à honra concerce ao prestígio social contra falsas imputações de fatos desabonadores que podem abalar a reputação do titular. Ou seja, apesar da estreita ligação com a privacidade, a honra com ela não se confunde. Se, de um lado, aquela resguarda o que, concreta e verdadeiramente, compõe a intimidade, de outra banda, esta protege a pessoa humana contra falsos ataques que podem macular sua boa fama social (FARIAS, 2012, p. 254-255).

A informação sobre o personagem de um evento pode-lhe ser ofensiva e não haverá ilicitude, desde que os termos empregados sejam condizentes com o intuito de informar assunto de interesse público, ensina Mendes (2011, p. 312).

Faz-se necessária a observância ao respeito à dignidade da pessoa humana, quando o indivíduo é tratado como sujeito com valor intrínseco, posto acima de todas as coisas criadas e em patamar de igualdade de direitos com os seus semelhantes. Há ofensa ao princípio, quando a pessoa é tratada como objeto, como meio para a satisfação de algum interesse imediato (MENDES, 2011, p. 313).

O ser humano não pode ser exposto, ainda que com seu consentimento, à mera curiosidade de terceiros, para satisfazer instintos primários, nem pode ser apresentado como instrumento de divertimento alheio, com vistas a preencher o tempo de ócio de certo público. Em casos assim, salienta Mendes (2011, p. 313), não haverá exercício legítimo da liberdade de expressão.

Farias (2012, p. 256) ensina que não caracteriza violação à honra a difusão de fato que diz respeito ao interesse público, como a apuração de fatos criminosos, quando verdadeiros. É a conhecida exceptio veritatis (exceção da verdade), permitindo que se prove a veracidade dos fatos alegados. Por conseguinte, sendo falsos os fatos imputados, caracteriza-se dano ao titular.

2.4 Proibição da liberdade de expressão

Como já exposto, a Constituição repudia a censura, proclamando ilegítimo que se proíba a divulgação de certos conteúdos opinativos ou informativos sem prévia autorização do Estado. O veto à censura não significa, todavia, impedimento de sanções (MENDES, 2011, p. 313).

O comportamento não protegido pela liberdade de expressão, que viola direito fundamental de outrem ou da coletividade, pode vir a motivar uma pretensão de reparação civil ou mesmo ensejar uma reprimenda criminal (MENDES, 2011, p. 313).

É controvertido o posicionamento, quando há a possibilidade de se obstar, preventivamente, a expressão, quando hostil a valor básico da ordem constitucional. Mas num ponto há acordo: não é viável a censura por parte de órgão da Administração Pública (MENDES, 2011, p. 313).

A discussão maior está, antes, em saber se é dado ao juiz proibir uma matéria jornalística, num caso concreto de conflito entre direitos fundamentais – o de informar em atrito com o da imagem, por exemplo (MENDES, 2011, p. 313).

De um lado, defende-se que a proscrição à censura prévia seria obstáculo intransponível para que até mesmo o Judiciário restringisse, em qualquer hipótese, a liberdade dos meios de comunicação. A Constituição teria optado por apenas cogitar de sanção posterior e, isso, na hipótese de se evidenciar danoso extravasamento dos limites do direito de expressão (MENDES, 2011, p. 314).

Na outra face, argumenta-se que a melhor interpretação à Constituição reclama a proteção preventiva do direito fundamental em vias de ser agredido. Mendes (2011, p. 314) explana que não se pode hesitar em afirmar que o constituinte não pretendeu assegurar apenas eventual direito da reparação ao eventual atingido, apontando que a garantia constitucional de efetiva proteção judicial estaria prejudicada se a intervenção do Judiciário somente pudesse se dar após a configuração da lesão.

O último argumento demonstra que a garantia da privacidade e da liberdade da comunicação não são direitos absolutos; sujeitam-se a constante ponderação no caso concreto, efetuada pelo juiz. Diante da importância dos valores, exige-se máxima cautela na apreciação das circunstâncias relevantes para a solução do conflito (MENDES, 2011, p. 314).

O hate speech (consistente nas manifestações de pensamento ilimitadas, contendo declarações de ódio, desprezo ou intolerância, normalmente atreladas à etnia, religião, gênero ou orientação sexual) não é permitido pelo sistema jurídico brasileiro. A Constituição não vedou, tão só, ao Poder Público a prática de atos discriminatórios, impondo, por igual, a todo e qualquer cidadão ou pessoa jurídica tal conduta (FARIAS, 2012, p. 187).

Por isso, impor limites à liberdade de expressão é manter acesa a luz contra o preconceito e a intolerância – que atingem, em especial, às minorias sociais, étnicas e econômicas. Mas não se pode esquecer que a liberdade de expressão é a regra constitucional, apenas não sendo absoluta (FARIAS, 2012, p. 187).


3 O DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA 

A proteção da vida privada, como um bem jurídico integrante da personalidade, funda-se no legítimo interesse de salvaguardar do conhecimento alheio (e da curiosidade indevida) tudo o que diz respeito à esfera íntima de uma pessoa. A Constituição Federal tutelou a vida privada de modo genérico nos incisos V e X, mas também nos incisos XI, XII e LX de maneira mais direta (FARIAS, 2012, p. 248). Tal direito presente no rol dos direitos individuais apresenta-se como limite à liberdade dos meios de comunicação.

Sob o ponto de vista estrutural, estão contidos no direito à vida privada, o direito à intimidade e ao segredo (sigilo), compondo diferentes aspectos de uma mesmo bem jurídico personalíssimo. Gilberto Haddad Jabur esclarece que “o direito à vida privada posiciona-se como gênero ao qual pertencem o direito à intimidade e o direito ao segredo. A vida privada é esfera que concentra, em escala decrescente, outros direitos relativos à restrição de vida pessoal de cada um” (FARIAS, 2012, p. 249).

No que tange à diferenciação entre o direito à privacidade e à intimidade, alguns autores afirmam que o último faz parte do primeiro, este mais amplo. O direito à privacidade teria por objeto os comportamentos e acontecimentos decorrentes dos relacionamentos pessoais em geral, às relações comerciais e profissionais que o indivíduo não deseja que se espalhem ao conhecimento público. O objeto do direito à intimidade seriam as conversações e os episódios ainda mais íntimos, envolvendo as relações familiares e amizades mais próximas, segundo Mendes (2011, p. 315).

Para Farias (2008, p. 126 apud BÍLIO, 2014) o direito à intimidade é um dos novos direitos que surgiu com a sociedade industrial moderna e trata-se da exigência moral da personalidade para quem em determinadas situações seja o indivíduo deixado em paz.

A privacidade permite que o indivíduo desenvolva livremente sua personalidade, sem que esteja sob constante crítica e avaliação alheia. A exposição contínua dos erros, dificuldades e fracassos perturba a tranquilidade emocional do ser humano, impedindo-o que consiga transpor as barreiras impostas pela vida.

Complementando, Farias (2012, p. 247) define a vida privada como o refúgio impenetrável da coletividade, merecendo proteção. É o direito de viver a sua própria vida em isolamento, não sendo submetido à publicidade que não provocou, nem desejou. Consiste no direito de obstar que a terceiro venha a conhecer, descobrir ou divulgar as particularidades de uma pessoa.

Ferraz (apud MENDES, 2011, p. 316) define que o direito à privacidade é um fundamental, cujo titular é toda pessoa, física ou jurídica, brasileira ou estrangeira, residente ou em trânsito no país; cujo conteúdo é a faculdade de constranger os outros a respeito e de resistir à violação do que lhe é próprio, isto é, das situações vitais que, por só a ele lhe dizerem respeito, deseja manter para si, ao abrigo de sua única e discricionária decisão; e cujo objeto é a integridade moral do titular.

Apesar do amplo conceito, e da polêmica do confronto em situações concretas, há consenso em que o direito à privacidade tem por característica básica a pretensão de estar separado de grupos, mantendo-se o indivíduo livre da observação de outras pessoas. Confunde-se com o direito de fruir o anonimato, que será respeitado quando o indivíduo estiver livre de identificação e de fiscalização (MENDES, 2011, p. 317).

Nos Estados Unidos da América, o direito à privacidade começou a ser construído no âmbito jurisprudencial em meados da década de 1890, sendo entendido com o objetivo de ensejar a proteção de manter assuntos íntimos fora do domínio público. Em 1965, a Suprema Corte atribuiu um significado mais dilatado a esse direito, que passou a ser visto como a ensejar ao indivíduo um espaço de autonomia, livre de qualquer restrição por parte dos Poderes Públicos (MENDES, 2011, p. 318).

No Brasil, o princípio da proporcionalidade, o princípio da liberdade em geral (que não tolera restrições à autonomia da vontade que não sejam necessárias para alguma finalidade de raiz constitucional) e o princípio da dignidade da pessoa humana possibilitam o reconhecimento de uma margem de autonomia do indivíduo tão larga quanto possível no quadro dos diversos valores constitucionais (MENDES, 2011, p. 318).

O direito à privacidade, em sentido mais estrito, leva à pretensão do indivíduo de não ser foco da observação por terceiros, de não ter os seus assuntos, informações pessoais e características particulares expostas a terceiros ou ao público em geral (MENDES, 2011, p. 318).

3.1 Limites ao direito à privacidade

Assim como acontece com relação a qualquer outro direito fundamental, o direito à privacidade sofre limitações, advindos do fato de se viver em comunidade e de outros valores de ordem constitucional.

O interesse público despertado por certo acontecimento ou por determinada pessoa que vive uma imagem cultivada perante à sociedade pode sobrepujar a pretensão de “ser deixado só” (MENDES, 2011, p. 319).

Dependendo de um conjunto de circunstâncias, analisadas no caso concreto, a divulgação de fatos relacionados com uma determinada pessoa poderá ser tida como admissível ou abusiva (MENDES, 2011, p. 319).

Deve-se também considerar o modo como ocorreu o desvendamento do fato relatado ao público. São diferentes os casos em que um aspecto da intimidade de alguém é livremente exposto pelo titular do direito daqueles outros em que a notícia foi obtida e propalada contra a vontade de seu protagonista (MENDES, 2011, p. 319).

Portanto, extrai-se que a extensão e a intensidade da proteção à vida privada dependem, em parte, do modo de viver do indivíduo. Quando for personalidade pública, deve a proteção ser reduzida, mas não anulada. Dependem, ainda, da finalidade a ser alcançada com a exposição e a forma da coleta da notícia (MENDES, 2011, p. 319).

3.2 Restrição à privacidade

Os direitos fundamentais não são suscetíveis de renúncia plena, mas podem ser objeto de autolimitações, que não esbarrem no núcleo essencial da dignidade da pessoa humana.

No contexto de ponderação entre o interesse público na notícia e a privacidade do indivíduo, compreende-se que pessoas públicas ou envolvidas em assuntos públicos detenham menor pretensão de retraimento da mídia (MENDES, 2011, p. 321).

É impressão incorreta quando se afirma que o indivíduo é público quando se expõe à luz da observação do público, abre mão de sua privacidade pelo só fato do seu modo de viver. Em verdade, é que o indivíduo vivendo do crédito público, estando constantemente envolvido em negócios que afetam a coletividade, é natural que em torno dele se avolume um verdadeiro interesse público, que não existiria com relação ao cidadão comum (MENDES, 2011, p. 321).

Não basta tão somente que a notícia veiculada sobre um indivíduo seja verdadeira para que seja legítimo o direito à divulgação. Deve-se observar se a divulgação não se destina meramente a atender à curiosidade ociosa do público, mas que vise a se constituir em elemento útil ao indivíduo que vai receber o informe se oriente melhor na sociedade em que vive (MENDES, 2011, p. 321).

Haverá sempre, ainda, que equalizar o interesse público com o desgaste material e emocional para o retratado, num juízo de proporcionalidade estrita, para se definir a validez da exposição (MENDES, 2011, p. 321).

Os fundamentos apresentados servem para o político, como também para o artista de renome ou para o desportista exitoso. Em relação a todos, pode haver o interesse em conhecer aspectos das suas vidas determinantes para a conquista do estrelato, podendo inspirar a tomada de decisões vitais por quem recebe as notícias (MENDES, 2011, p. 321).

Entende-se ainda que é aceitável a divulgação de aspectos da vida privada da pessoa pública que influíram na sua formação, como a sua história de vida, retratando a origem, estudos, trabalhos, desafios vividos e predileções que demonstrem pendores especiais (MENDES, 2011, p. 321-322).

Em consonância com esse entendimento, Paulo Jose da Costa Júnior esclarece que, de fato, o âmbito dos direitos da personalidade das pessoas notórias “haverá que reduzir-se, de forma sensível. E isto porque, no tocante às pessoas célebres, a coletividade tem maior interesse em conhecer-lhes a vida íntima, as reações que experimentam e as peculiaridades que oferecem” (FARIAS, 2012, p. 245).

Mas nem tudo está aberto ao público, pois notícias sobre hábitos sexuais ou alimentares exóticos de um artista não se incluem nesse rol de matérias de interesse público, preservando o direito à privacidade. Fatos desvinculados do papel social da figura pública não podem ser considerados de interesse público, não ensejando que a imprensa invada a privacidade do indivíduo (MENDES, 2011, p. 322).

Também no mesmo sentido está Farias (2012, p. 250), ensinando que a intangibilidade da privacidade (decorrente de garantia constitucional e da redação do art. 21 do Código Civil) impõe proteção específica, sendo possível constatar que pode-se afrontar a privacidade de uma pessoa sem qualquer violação de sua honra ou imagem. Seguindo tal entendimento, a Corte Superior reconheceu a violação da privacidade por conta da afirmação contida em uma biografia de que o saudoso jogador de futebol Garrincha teria um órgão genital avantajado. Apesar da inexistência de afronta à imagem ou à honra, for reconhecida a afronta à sua privacidade e determinada a reparação do dano (STJ, REsp.521.697/RJ, rel. Min. César Asfor Rocha, j. 16.2.06, DJU 20.3.06, p. 276)

Continua Farias (2012, p. 245) a explanar que as celebridades (mesmo a mais bela e midiática de todas) não perdem a proteção constitucional de sua imagem. Conservam o direito (constitucionalmente assegurado) à imagem, apenas sofrendo uma flexibilização, quando houver legítimo interesse na sua divulgação, por força de seu ofício, profissão ou situação em que se encontre.

Entretanto, caso o indivíduo haja divulgado, ele próprio, fatos de sua intimidade, que, desse modo, tornaram-se públicos, não haverá como reter, posteriormente, tais informações (MENDES, 2011, p. 322).

Celebridades do passado não podem ser perpetuamente objeto de incursões da imprensa. Algumas retornam, espontaneamente, ao recolhimento da vida de cidadão comum, o que deve ser respeitado pelos órgãos de informação. Se deixar de atrair notoriedade, desaparecendo o interesse público, ao indivíduo tem o direito de ser esquecido. Como exemplo, pode-se citar quem já cumpriu pena criminal e precisa se reinserir na sociedade, tendo este indivíduo o direito a não ver repassados ao público os fatos que o levaram ao cárcere (MENDES, 2011, p. 322).

Em suma, havendo conflito de pretensões à privacidade e à liberdade de informação, Mendes (2011, p. 323) concorda que cabe análise a qualidade da notícia a ser divulgada, a fim de estabelecer se a notícia constitui anúncio do legítimo interesse do público. Deve ser auferido, ainda, em cada caso, se o interesse público sobrepõe a dor íntima que o informe provocará.


4 A EXIGÊNCIA PRÉVIA DE AUTORIZAÇÃO PARA PUBLICAÇÃO DE BIOGRAFIAS

O Código Civil Brasileiro, Lei Nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002, estabelece em sua parte geral, mais especificamente no capítulo referente aos direitos da personalidade, os artigos 20 e 21 objetos do estudo deste trabalho. Transcreve-se para melhor compreensão:

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. (Vide ADIN 4815)

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma. (Vide ADIN 4815)

Bem como leciona Farias (2012, p. 238), a tutela jurídica do direito à imagem do artigo supracitado (art. 20) segue, em linhas gerais, a regra do artigo 12 do Código Civil, que tem caráter geral. Basicamente a proteção do direito à imagem se aperfeiçoa através da tutela preventiva (inibitória), com o escopo de impedir que o dano ocorra ou se alastre.

Diniz (2012, p. 147) explana que o direito à imagem é autônomo, não precisando estar em conjunto com a intimidade, a identidade, a honra etc., embora possam estar, em certos casos, tais bens a eles conexos, mas isso não faz com que sejam partes integrantes um do outro. Pode-se ofender a imagem sem atingir a intimidade ou a honra. A imagem é a individualização figurativa da pessoa, autorizando qualquer oposição contra adulteração da identidade pessoal, divulgação indevida e vulgar indiscrição, gerando o dever de reparar dano moral e patrimonial que advier desse ato.

Não se pode negar que o direito à privacidade ou à intimidade é um dos fundamentos basilares do direito à imagem, visto que seu titular pode escolher como, onde e quando pretende que sua representação externa (imagem-retrato) ou sua imagem-atributo seja difundida (DINIZ, 2012, p. 147).

Essa é a razão pela qual o artigo 20 do Código Civil requer a autorização não só para divulgar escrito ou transmitir opinião alheia, pois tais atos poderão atingir a imagem-atributo, a privacidade pode vir à tona e gerar sentimento de antipatia, influindo na consideração social da pessoa, causando gravame à sua reputação, bem como para expor ou utilizar a imagem de alguém para fins comerciais, visto que pode a adaptação da sua imagem ao serviço de especulação comercial ou de propaganda direta ou indireta gerar redução da estima ou prestígio (DINIZ, 2012, p. 147).

Diniz (2012, p. 150-151) cita como exemplo de limitação ao direito à privacidade a aplicação do princípio da diferença, que considera as pessoas envolvidas e a natureza de uma situação peculiar. Entretanto, afirma que não se pode privar pessoa notória, ou pública, de sua intimidade revelando fato reservado ao redigir sua biografia nem desconhecer o fascínio que ela exerce.

Esse era o raciocínio apresentado pela doutrina e amparado pelo Poder Judiciário para exigir previamente o consentimento dos biografados ou de seus familiares, quando morto, para a publicação de suas respectivas biografias, mesmo os interessados sendo pessoas públicas e famosas.

Observam-se na história literária diversas biografias não autorizadas que tiveram sua publicação e circulação proibidas através de ações judiciais, gerando uma censura prévia das obras e a oficialização do “censor judicial”.

Seguindo entendimento anterior à decisão da ADI que será objeto do estudo, leciona Farias (2012, p. 250-251)

“No que tange ao direito à vida privada das pessoas públicas (celebridades), contrariamente ao que ocorre com o direito à imagem, não há uma relativização tão intensa da proteção dedicada pelo sistema. Se é certo, por um lado, que a privacidade das pessoas notórias se sujeita a um parâmetro de aferição ‘menos rígido do que os de vida estritamente privada. Isso decorre, naturalmente, da necessidade de autoexposição, de promoção pessoal ou do interesse público na transparência de determinadas condutas’, como percebe Luís Roberto Barroso. De outra banda, não menos certo é que isto não quer significar que as celebridades percam proteção de sua privacidade. Em absoluto. O direito à vida privada lhes é garantido constitucionalmente e tem de ser tutelado. Apenas deve se ponderar a extensão que se deve proteger da curiosidade do público em geral, no que toca às pessoas públicas. Com isso, não se poderia chegar à simplória (e indevida) conclusão de que estaria no campo da licitude a publicação de biografias não autorizadas de celebridades. Se a biografia não autorizada pelo biografado veicular fatos privados não estará permitida pelo sistema constitucional.”

Observa-se que Cristiano Chaves Farias defende a proibição da publicação de biografias não autorizadas, posicionamento majoritário da jurisprudência.

Apresentando a divergência, o mesmo autor exemplifica caso com diferente solução. Em demanda na qual discutia se uma peça de teatro – que retratava a vida de personagens da História do Brasil (Olga Benário e Luiz Carlos Prestes) – feria, ou não, a privacidade de terceiros, entendeu a Corte de Justiça fluminense: “tampouco se reconhece violação à privacidade, uma vez que os fatos mostrados são do conhecimento geral, ou pelo menos acessíveis a todos os interessados, por outros meios não excepcionais, como a leitura de livro para cuja redação ministrara informações o próprio titular do direito que se alega lesado” (TJ/RJ, ApCív.1988.001.03920, rel. Des. Barbosa Moreira, j. 3.4.89) (FARIAS, 2015, p. 251).

Entretanto, deve se observar que o caso concreto supracitado não se enquadra perfeitamente na interpretação conferida aos artigos 20 e 21 do Código Civil, pois o julgamento é anterior à existência do Código Civil de 2002, e os artigos em estudo não encontravam correspondência no Código Civil de 1916.

Diante das discussões jurídicas advindas do tema, frequentemente abordada pela doutrina e nos Tribunais, em 05 de julho de 2012, a Associação Nacional dos Editores de Livros – ANEL, propôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, tendo por objeto a declaração da inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil, argumentando que o texto tem ensejado à proibição de que as biografias não autorizadas pelos biografados não possam ser publicadas e veiculadas pelo não consentimento da pessoa a ser biografada ou de seus familiares, o que configuraria censura prévia (FERREIRA, 2015).

Na petição inicial, argumentou-se que a as pessoas públicas teriam sua privacidade e intimidade restringidas, tornando sua história objeto de interesse da coletividade, configurando censura à liberdade de expressão dos profissionais que trabalham para garantir o direito à informação dos cidadãos e, nesse contexto, o fato de inexistir exceção quanto às biografias configura tolhimento das liberdades previstas nos incisos IV, IX e XIV do artigo 5º da Constituição (FERREIRA, 2015).

Sustentou-se na peça introdutória que a exigência de autorização prévia tolhe a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, assegurada de maneira plena e não se admitindo prescindir de censura ou licença. E ainda demonstrou que as pessoas públicas são parte da história, por isso, não possuem o direito de impedir a veiculação das biografias apenas porque nelas estão retratadas (FERREIRA, 2015).

De um lado, a instituição do Grupo Procure Saber reunia no início artistas favoráveis à censura prévia das biografias, sendo integrado por nomes famosos, tais como Roberto Carlos, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Erasmo Carlos e Djavan, entre outros artistas, e presidido pela ex-mulher de Caetano, Paula Lavigne. O grupo passou a defender a proibição de obras não autorizadas pelos biografados ou por suas famílias, em caso de morte. Nesse sentido, estabeleceu-se uma ampla discussão pública em torno do tema, que resultou em longos editoriais, matérias jornalísticas, entrevistas e bate boca nas redes sociais (BÍLIO, 2014).

Do outro lado, a ANEL e outros amici curiae apresentaram seus argumentos contra a interpretação majoritária dos artigos 20 e 21 do Código Civil, sendo favoráveis ao fim da censura prévia e o direito ao exercício da liberdade de expressão para a publicação de biografias não autorizadas. Um dos mais relevantes argumentos jurídicos da ANEL é o parecer do professor Gustavo Tepedino, objeto de análise no tópico seguinte.

4.1 O parecer doutrinário de Gustavo Tepedino

O professor Gustavo Tepedino elaborou em 15 de junho de 2012, opinião doutrinária a pedido das Organizações Globo, que foi juntada aos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815 Distrito Federal, objetivando responder o seguinte quesito:

À luz do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, a publicação ou veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais, de pessoas públicas, ou pessoas envolvidas em acontecimentos de interesse público, depende da autorização das pessoas biografadas ou envolvidas de qualquer forma na obra biográfica (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas)? (TEPEDINO, 2012, p. 2)

Para responder o quesito transcrito, Gustavo Tepedino inicia seu parecer com crítica ao texto do artigo 20 do Código Civil, destacando que o preceito possui redação confusa, gerando controvérsia interpretativa. Há, segundo o notável professor, uma valorização dos direitos da personalidade, em detrimento do direito fundamental à liberdade de expressão, de pensamento e à informação (TEPEDINO, 2012, p. 6).

A interpretação do artigo 20 em conjunto com a do artigo 21 do Código Civil permitem que o juiz possua o poder de censor perante qualquer informação que possa prejudicar a privacidade. Entretanto, tal valoração subjetiva termina por prejudicar também o trabalho jornalístico e a produção de biografias, que ficam condicionadas à prévia autorização dos biografados ou de seus familiares (TEPEDINO, 2012, p. 7).

Tepedino destaca que as liberdades de informação e de expressão, bem como a tutela à imagem, à honra, à intimidade e à privacidade encontram-se amparadas pelo texto constitucional, no rol das garantias fundamentais do artigo 5º e em outros dispositivos constitucionais. Em análise aos preceitos normativos, o professor aponta que os direitos por eles assegurados devem sobrepor à maléfica interpretação dada aos artigos em questão do Código Civil.

Como exemplo, o jurista destaca o julgamento no Supremo Tribunal Federal que baniu a Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, mais conhecida como Lei de Imprensa. O histórico julgamento decidiu por não recepcionar a lei em virtude da importância constitucional dada às liberdades de pensamento e de expressão, limitadas pela lei cunhada nos tempos da ditadura militar (TEPEDINO, 2012, p. 9-10).

A compreensão literal do texto dos artigos 20 e 21 do Código Civil choca com as garantias constitucionais, acarretando na necessidade prévia de autorização para a publicação de obras biográficas de todos aqueles cuja personalidade, direta ou indiretamente, viesse a ser atingida. Vislumbra-se um cenário de banimento ilegal de obras biográficas, que retratando fatos históricos e aspectos da vida privada de pessoas notórias ou expostas, viessem a ser proibidas por estas ou por seus familiares, no caso de pessoas falecidas (TEPEDINO, 2012, p. 10).

A interpretação dada aos artigos do Código Civil em estudo, assim ressalta Tepedino (2012, p. 11), é bastante sedutora para diversos civilistas, que visam a máxima proteção aos direitos da personalidade, sem antes entender que a liberdade de manifestação de pensamento é também direito inerente à personalidade humana e sua restrição provoca limitação a uma vida digna. Não há a plenitude da dignidade da pessoa humana quando se limita o direito de informar e de ser informado.

A proteção da personalidade na jurisprudência brasileira possui conexão íntima com o modelo das relações patrimoniais, protegendo a privacidade como se fosse território, tendo o parâmetro da inviolabilidade do domicílio. Essa perspectiva teve influência na dogmática da personalidade de diversos países de tradição romano-germânica e somente no século XX é que se começa a construção da noção de intimidade, advinda dos Estados Unidos a partir do right to be let alone no famoso ensaio de Samuel Warren e Louis Brandeis. (TEPEDINO, 2012, p. 11-13).

No direito civil contemporâneo, deve-se compreender a privacidade não mais como um direito estático de estar só; a nova perspectiva engloba o controle das informações pessoais, podendo interferir no fluxo das informações. Todavia, o direito de acesso à informação biográfica que, oriunda da trajetória de vida de uma pessoa pública, se confunde com a realidade histórica da sociedade, não sendo plausível o controle e proibição dessa informação (TEPEDINO, 2012, p. 13-14).

As biografias revelam relatos históricos descritos a partir de referências subjetivas, através do ponto de vista dos principais protagonistas da cadeia de eventos cronológicos que integram a história. Por serem os eventos considerados históricos, despertam o interesse público, decorrendo daí a necessidade da liberdade de informar e ser informado. O exercício dessa liberdade não pode ser vista somente como garantia individual, mas também como preservação da memória e da identidade cultural da sociedade (TEPEDINO, 2012, p. 15).

Tepedino (2012, p. 15) ensina que os homens públicos, que se destacam na história, ao assumirem posição de visibilidade, inserem voluntariamente a sua vida pessoal e o controle de seus dados pessoais no curso da historiografia social, expondo-se ao relato contido nas biografias.

O condicionamento de obras biográficas à autorização do biografado ou de seus familiares, quando falecido, deturpa o direito fundamental à livre divulgação da informação, pois estabelece seleção subjetiva dos fatos a serem divulgados, sacrificando a liberdade de expressão e estabelecendo a censura privada dos fatos indesejados pelo biografado (TEPEDINO, 2012, p. 15-16).

Quando a biografia se circunscreve aos limites de legitimidade próprios da informação constitucionalmente tutelada, isto é, quando é baseada em fatos obtidos por fontes legítimas e sem intuito abusivo ou doloso, não há que se falar em danos ressarcíveis ou aptos a suscitarem a tutela preventiva disposta nos artigos 20 e 21 do Código Civil, assim leciona Tepedino (2012, p. 18-19).

Entretanto, quando a informação for inverossímil ou adquirida através de fonte ilícita, ou ainda destinada a fim ilícito, há a incidência do que reza o artigo 20 do Código Civil, justificando-se somente nestas situações a repreensão a notícias motivadas por fins comerciais, observando que há por parte do intérprete a desnaturação da finalidade informativa. Quando ocorrer, não somente será cabível a indenização, mas também poderá ocorrer a incidência de crime, assim como acontece nas notícias que caracterizam injúria, calúnia e difamação (TEPEDINO, 2012, p. 19-20).

A manifestação do pensamento é livre, e se constitui em direito fundamental o acesso a qualquer tipo de obra, mesmo aquelas que pregam ideologias abjetas. O controle judicial desse tipo de obra não pode ser realizado a priori ou in abstracto, mas sim a posteriori e in concreto, como aconteceu na denegação do writ no Habeas Corpus n. 82.424-2/RS do Supremo Tribunal Federal, em que a obra camuflava propósito racista de caráter antissemita, elucida e exemplifica Tepedino (2012, p. 20).

Nesse julgamento, o ministro Marco Aurélio defendeu que a limitação estatal à liberdade de expressão deve ser entendida com caráter de extrema excepcionalidade e somente pode ocorrer quando sustentada por claros indícios de que houve grave abuso no exercício (TEPEDINO, 2012, p. 21).

Corroborando com o pensamento, o ministro Celso de Mello aponta que o procedimento estatal que implicasse em verificação prévia do conteúdo das publicações resultaria em ato injusto, arbitrário e discriminatório. Numa sociedade democrática e livre, não se pode institucionalizar a verificação prévia do Estado, nem admitir como expediente dissimulado pela falsa roupagem do cumprimento e observância da Constituição. Os abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento, quando praticados, devem ser verificados a posteriori, e assim expor aqueles que os praticarem a sanções cíveis e penais (TEPEDINO, 2012, p. 21).

A sábia decisão da Suprema Corte demonstra que a liberdade de expressão jamais pode ser tolhida e que, quando abusiva, se desejar ocultar propósitos criminosos, estes serão expostos, voltando-se o Judiciário de forma rigorosa para a repreensão da conduta nociva (TEPEDINO, 2012, p. 22).

Dando continuidade ao raciocínio, Tepedino (2012, p. 23-24) destaca que a personalidade humana, no cotidiano, é constantemente atacada, sem que haja dano ressarcível. Como exemplos, cita o caso do devedor insolvente, que diante de cobrança de dívida, pode entrar em depressão e até mesmo cometer suicídio. Ou o caso do término de um relacionamento amoroso, quando há a ruptura unilateral do noivado, não há dano injusto, por conseguinte, não há dever de reparação, ainda que a dor provoque evidente prejuízo à personalidade. Somente pode-se falar em dano moral passível de reparação quando há no caso em concreto a presença da ilicitude da conduta. O dano decorre da caracterização do ilícito, e não somente da dor causada.

No que diz respeito às atividades jornalísticas, muitas são as situações que podem ser citadas em que se observa o exercício da liberdade de informação e de expressão versus o direito de personalidade do retratado. Quando as notícias são sérias, de interesse público, que dizem respeito sobre pessoas notórias, sem objetivo de ofensas, não há que se falar em dano injusto, mas sim o exercício regular de direito (TEPEDINO, 2012, p. 24).

Utilizando a analogia, a conclusão que se pode extrair é que as biografias não autorizadas de pessoas notórias, só por si, não provocam danos ressarcíveis. A produção dessas obras decorre do exercício do direito constitucional à livre manifestação do pensamento e à informação, e assim, não podem ser impedidas, coibidas ou cerceadas. Deve-se afastar a produção das obras à sujeição de precificação patrimonialista, como desejam alguns herdeiros em casos notórios, a exemplo do caso Garrincha; as herdeiras pleitearam indenização por dano moral e material, consistente em percentual na venda das biografias, a pretexto de proteger a honra e a imagem do falecido (STJ, REsp. 521697, 4ª Turma, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, julg. 16.2.2006) (TEPEDINO, 2012, p. 25).

Os artigos 20 e 21 do Código Civil devem ser interpretados para coibir os abusos na editoração de obras criminosas, as quais a publicação perde o caráter informativo e visa propósitos nocivos ou há a ilicitude em sua origem. Esse tipo de biografia geralmente veicula fatos mentirosos com o propósito de causar danos ao biografado. Quando configurado no caso em concreto, deflagra-se a repreensão civil e criminal pela desinformação levada a cabo a pretexto de exercício de atividade editorial, mas não com a justificativa da publicação de fatos íntimos (TEPEDINO, 2012, p. 26).

O jurista entende que há incongruência lógica, teleológica, dogmática e sistemática entre as liberdades de expressão, de pensamento e de informação e a escolha de fatos a serem aceitos em obras biográficas (TEPEDINO, 2012, p. 26). Para isso, justifica.

“Incongruência lógica porque o discrime entre o publicável e o não publicável é incompatível com o próprio conceito das liberdades de expressão, de pensamento e de informação; teleológica porque o que tem em mente o constituinte, com a proteção da personalidade, não é o cerceamento das liberdades fundamentais, sendo certo que o interesse público torna publicáveis fatos verossímeis oferecidos pela vida privada dos personagens voluntários da história; dogmática porque, como visto, nem todos os danos são indenizáveis pelo ordenamento, inocorrendo, em linha de princípio, ilicitude no exercício de liberdades fundamentais; e sistemática porque é imperativo ponderar as liberdades fundamentais com a tutela da personalidade, sendo ambos previstos pelo ordenamento jurídico que, necessariamente, há de ser unitário, sistemático e coerente.” (TEPEDINO, 2012, p. 26-27)

A ponderação prévia e in abstracto entre o direito fundamental à informação e as liberdades de expressão e de pensamento, de um lado, e a proteção à imagem, honra, privacidade e intimidade da pessoa pública biografada, de outro lado, não pode embasar o sacrifício das primeiras, sob pena de se permitir a censura privada e a extinção do gênero biografia. Eventual dano causado tão somente pela informação de fato considerado histórico não é ressarcível, mesmo que seja prejudicial à personalidade do biografado. É dano que não pode ser taxado como injusto, em consonância com o bem jurídico constitucional das liberdades de expressão, de pensamento e de informação (TEPEDINO, 2012, p. 27).

Ocorrendo abuso ou desvio do exercício da liberdade de informação, diante da ilicitude das fontes, da falsidade evidente dos fatos apresentados ou do desvirtuamento da finalidade do interesse tutelado, é perfeitamente cabível a punição após juízo a posteriori (jamais a priori, mediante ponderação in abstracto que, no caso, configuraria mera censura privada, atitude abominável pela Constituição). A obra que, sob aparente conteúdo informativo, revelasse intuito imoral, criminoso ou doloso contra a honra, intimidade ou imagem do biografado, seria coibida, e seus autores passíveis de enquadramento em diversos tipos penais (calúnia, injúria, difamação, racismo, falsidade ideológica etc.) (TEPEDINO, 2012, p. 28).

O mero impacto negativo causado pela notícia histórica na personalidade do biografado ou de sua família, ainda que tal fato lhes seja efetivamente desgostoso e sofrido, não gera efeitos no campo da responsabilidade civil. A aplicação dos artigos 20 e 21 do Código Civil somente são compatíveis com o texto constitucional quando há o desvirtuamento da liberdade de expressão, caracterizados pela mentira ou desinformação, configurando invariavelmente conduta abusiva. Diante do ponto de vista hermenêutico com a Constituição da República, tais artigos podem ser aplicados quando a publicação possuir propósito criminoso ou doloso, para fins reprovados pelo ordenamento, desfigurando a finalidade informativa (TEPEDINO, 2012, p. 28-29).

Afirma o renomado jurista, em conclusão à sua opinião doutrinária, a seguinte resposta ao quesito formulado:

“Não. A exigência de autorização do biografado ou de seus familiares (na hipótese de pessoa falecida) prévia à publicação de biografia representa intolerável violação às liberdades de informação, expressão e pensamento, constitucionalmente tuteladas, a configurar, a partir de ponderação in abstracto, censura privada, acarretando, inevitavelmente, a extinção do gênero biografia. Por isso mesmo, tal interpretação dos arts. 20 e 21 do Código Civil afigura-se inconstitucional, não podendo ser admitida.

As biografias revelam narrativas históricas descritas a partir de referências subjetivas, isto é, do ponto de vista dos protagonistas dos fatos que integram a história. Tais fatos, só por serem considerados históricos, já revelam seu interesse público, em favor da liberdade de informar e de ser informado, essencial não somente como garantia individual, mas como preservação da memória e da identidade cultural da sociedade.

Os danos sofridos pela personalidade dos biografados e de seus descendentes, quando a biografia se circunscreve aos limites de legitimidade próprios da informação constitucionalmente tutelada, isto é, quando baseada em fatos verossímeis obtidos por fontes legítimas e sem intuito abusivo ou doloso, não são danos ressarcíveis ou aptos a suscitarem a tutela preventiva de que cuidam os arts. 20 e 21 do Código Civil.

Por outro lado, o abuso ou desvio do exercício da liberdade de informação, caracterizados pela ilicitude das fontes, falsidade evidente dos fatos apresentados ou desvirtuamento da finalidade do interesse tutelado é severamente punido pelo ordenamento, após juízo a posteriori, capaz de configurar, inclusive, tipos penais.

No campo da responsabilidade civil, o desvirtuamento da liberdade de expressão, por meio da veiculação de fatos mentirosos ou manipulados, configura conduta abusiva, sendo coibido pelo ordenamento jurídico.

Eis a única hipótese, no âmbito da atividade jornalística e literária, em que a linguagem dos arts. 20 e 21 do Código Civil pode ser preservada do ponto de vista hermenêutico, compatibilizando os dispositivos ao texto constitucional: quando a publicação for considerada veículo de propósito criminoso ou doloso, para fins reprovados pelo ordenamento, de forma a descaracterizar a finalidade informativa” (TEPEDINO, 2012, p. 29-31).

Antes mesmo da análise do voto da ministra Cármen Lúcia na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815 Distrito Federal, a opinião doutrinária do professor Gustavo Tepedino apresentou importante reflexão sobre a interpretação dos artigos 20 e 21 do Código Civil, abordado uma visão garantista e libertária provenientes do espírito da Constituição Federal.


5 O VOTO DA MINISTRA CARMEM LÚCIA NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815

Em síntese contida no voto da ministra, relata-se que em 5 de julho de 2012, foi ajuizada no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815 Distrito Federal pela Associação Nacional dos Editores de Livros – ANEL, objetivando a declaração da inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil, e tendo como principal argumentação jurídica a opinião doutrinária do professor Gustavo Tepedino.

Na argumentação da autora da ADI, declara-se que a despeito do propósito do legislador de proteger a vida privada e a intimidade das pessoas, o alcance e a extensão dos comandos extraíveis da literalidade dos artigos 20 e 21 do Código Civil, ao não preverem qualquer exceção que contemple as obras biográficas, terminam por violar as liberdades de manifestação do pensamento, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, além do direito difuso da cidadania à informação, direitos estes previstos nos incisos IV, IX e XIV do artigo 5º da Constituição Federal (BRASIL, 2015, p. 2).

Logo de início, a ministra Cármen Lúcia ressalta que o objeto da ação diz respeito à interpretação das normas civis proibitivas, que suprimem os direitos de divulgação de escritos, transmissão da palavra, publicação, exposição ou utilização da imagem de uma pessoa sem sua autorização. A interpretação dessas normas deve ser posta diante dos princípios constitucionais, visando a proteção das liberdades de expressão do pensamento, da atividade intelectual, artística e de comunicação, no exercício das quais são produzidas as obras biográficas (BRASIL, 2015, p. 2-3).

Uma interpretação que atinja as liberdades constitucionais supracitadas impediria, segundo a autora da ADI, a livre produção e circulação dos trabalhos e configuraria em evidente censura privada, instituto não admitido na novel ordem jurídica inaugurada pela Constituição de 1988 (BRASIL, 2015, p. 3).

Portanto, diante da argumentação exposta, a autora expõe o pedido formulado na ADI:

“que seja declarada a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil, para que, mediante interpretação conforme à Constituição, seja afastada do ordenamento jurídico brasileiro a necessidade do consentimento da pessoa biografada e, a fortiori, das pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas) para a publicação ou veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais. Caso assim não se entenda, por mera eventualidade... pede [sic] seja declarada a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil para que, mediante interpretação conforme a Constituição, seja afastada do ordenamento jurídico brasileiro a necessidade do consentimento de pessoa biografada e, a fortiori, das pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas) para a publicação ou veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais, elaboradas a respeito de pessoas públicas ou envolvias em acontecimentos de interesse coletivo.” (BRASIL, 2015, p. 3)

O objeto da ação, indica a ministra, não consiste em afastar do ordenamento jurídico os dispositivos legais questionados, mas sim interpretá-los no que tange a parte relativa à necessidade de autorização prévia do interessado para a publicação das obras biográficas literárias e audiovisuais, construindo nova interpretação compatível com os preceitos constitucionais (BRASIL, 2015, p. 3-4).

Após superação da preliminar arguida de ilegitimidade ativa, que mais diz respeito às questões de ordem processual fora do objeto deste estudo, prossegue-se a análise de mérito da ADI.

5.1 Da Audiência Pública

Em 21 de novembro de 2013, realizou-se no Supremo Tribunal Federal uma audiência pública sobre o tema, oportunidade em que diversos órgãos e entidades admitidos na ADI proferiram suas manifestações.

 Dentre as que merecem destaque, pode-se citar a de Ana Maria Machado, representante da Academia Brasileira de Letras, que se posicionou pela procedência da ADI, declarando que a interpretação usual dos artigos 20 e 21 do Código Civil afrontam o direito do cidadão à informação, atingindo a liberdade de manifestação do pensamento, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação. As biografias constituem gênero literário e fonte histórica, sendo fundamentais para construção do futuro e elaboração da identidade cultural. Não é cabível aceitar que arbítrio pessoal incida sobre a liberdade de manifestação (BRASIL, 2015, p. 13).

Roberto Dias, representante da Associação Brasileira dos Constitucionalistas Democratas, ressalta que a democracia, mais do que regime do consenso, é regime do dissenso. O pensamento de Noberto Bobbio o qual explana que o nosso modelo político jurídico atual não autoriza poder que oculta e que se oculta traduz a razão da não recepção da Lei de Imprensa pela Constituição de 1988. No julgamento da ADPF n. 130 de 2009, o STF mencionou que todos têm o direito de dizer o que pensa. Só a posteriori se podem adotar medidas judiciais protetivas de direitos da personalidade, não havendo censura boa ou má, pois toda censura é inconstitucional. Diante da argumentação, constata-se que a Associação se posicionou pela procedência da ADI (BRASIL, 2015, p. 14).

José Murilo de Carvalho, renomado historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, entende que:

“a censura prévia de biografias por extensão da escrita da História priva o leitor e o cidadão de acesso ao conhecimento de sua própria sociedade. A Constituição garante aos que se julguem ofendidos o direito de resposta e de indenização, e o Código Penal contempla penas severas para calúnia, difamação e injúria. Para viver do público, cortejando o público e, ao mesmo tempo, privar o público da liberdade de se manifestar sobre elas, inclusive sobre suas vidas privadas, servir-se do público e não querer servir o público constitui, sem dúvida, grande incoerência, além de revelar uma visão tosca da posição que se ocupa na sociedade.” (BRASIL, 2015, p. 14)

A brilhante justificativa do historiador claramente expõe sua posição favorável pela procedência da ADI.

Leo Wojdyslawski, representante da Associação Brasileira de Produtoras Independentes de Televisão, explana que as produções audiovisuais biográficas por diversas vezes barram em obstáculos interpostos pelos interesses variados de parentes e dos próprios biografados. A ADI não apenas declararia a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da interpretação dos artigos em questão, mas também solucionaria questões que fazem parte do cotidiano das pessoas que estão expõem seus problemas perante o Judiciário, sendo possível assim determinar parâmetros e definição das condutas de tribunais, visto que não se reexaminam provas sobre o mau uso da imagem de pessoas em sede de recurso extraordinário (BRASIL, 2015, p. 14-15). A partir da leitura constante no voto, entende-se que a entidade expõe posição favorável pela procedência da ADI.

Silmara Chinelato, representante da Comissão de Direito Autoral da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional de São Paulo, avalia que em diversos casos julgados pelo STF, a Corte demonstrou a relevância do caso concreto, decidindo em favor da liberdade de expressão. Citou ainda casos julgados pela Corte Europeia dos Direitos do Homem sobre a publicação de fotos da família de Caroline, do Principado de Mônaco; e que nos casos julgados, foram sopesados os direitos à vida privada e familiar e o direito à liberdade de expressão, ambos assegurados pela Convenção para Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (BRASIL, 2015, p. 16). A mensagem exposta no voto permite a conclusão de que a comissão possui posição favorável pela procedência da ADI.

Patrícia Blanco, representante do Instituto Palavra Aberta, destaca que o poeta, político e precursor da liberdade de expressão, John Milton, em 23 de novembro de 1644, elaborou vigoroso ensaio de nome Areopagitica, antecipando-se à defesa de prática que, no futuro, seria dominante nos países democráticos. Dizia respeito da liberdade de publicar livros sem a exigência do in premature (deixem-no ser impresso). Antes, pedia-se autorização do imperador ou da autoridade eclesiástica, reconhecendo-se que na obra nada havia contra o regime ou a crença dominante. Antes, o escrito passava pela censura para receber o nihil obstat (nada consta) (BRASIL, 2015, p. 16). As palavras proferidas pela representante do instituto pregam a procedência da ADI.

O deputado federal Newton Lima, autor do projeto de lei n. 39.311 que altera os artigos 20 e 21 do Código Civil, expos que fatos conhecidos e públicos, de uma forma ou de outra, não deveriam ser impedidos de serem divulgados, sob pena de tolher a liberdade de expressão. Citou ainda obras biográficas que sofreram censura judicial, tais como a biografia do cantor Roberto Carlos e o filme sobre o pintor Di Cavalcanti (BRASIL, 2015, p. 16-17). A exposição do deputado federal demonstra a posição favorável pela procedência da ADI.

Cláudio Lins de Vasconcelos, representante do Sindicato Interestadual da Indústria Audio Visual, assegura que a procedência da ADI não objetiva a defesa da “jusfundamentalidade da fofoca”, a “jusfundamentalidade da mentira” ou da propaganda subliminar. Para esses e outros abusos há muitos remédios, e cita exemplos: uma segunda versão dos fatos, o direito de resposta, a busca pela indenização financeira na Justiça, a busca pela reparação na esfera criminal. Mas todas são medidas a posteriori, que dependem da consumação do ato ilícito. Que as medidas sejam severas, mas jamais prévias (BRASIL, 2015, p. 17).

O deputado federal Ronaldo Caiado expôs que qualquer pessoa pode dizer o que, de quem, no lugar e no momento que quiser. A Constituição exige apenas a identificação do autor, para que o ofendido possa se defender de eventuais ofensas à sua honra, imagem ou boa-fama, e para inibir o uso irresponsável dessa prerrogativa. A pessoa que se sentir atingida poderá requerer procedimento previsto em lei para a exclusão de trecho que lhe for ofensivo em reprodução futura da obra, sem prejuízo das outras medidas judiciais cabíveis. Há, portanto, a ampla liberdade de expressão e um rito célere para se demonstrar se a agressão ou frase atribuída a alguém que está sendo biografado procede ou não. Não se defende o recolhimento de livros, mas sim a oportunidade de defesa do cidadão sobre a veracidade ou não do fato narrado (BRASIL, 2015, p. 17). O raciocínio exposto demonstra a posição favorável pela procedência da ADI.

O deputado federal Marcos Rogério cita decisão do Superior Tribunal de Justiça de biografia censurada de um famoso jogador de futebol. Defende o deputado que o gênero biografia é distinto da matéria jornalística ou do escrito historiográfico, pois o primeiro visa a exploração da imagem para fins comerciais, objetivando o lucro. Entende que não basta a mera indenização a posteriori, mas que deve haver permissão no ordenamento jurídico para que o ofendido possa, se achar necessário, retirar de circulação a publicação que lhe atinge a honra e a imagem (BRASIL, 2015, p. 18-19). Pode-se compreender que o deputado é favorável pela improcedência da ADI.

Ivar Alberto Martins Harmann, representante do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, após a demonstração de diversas situações e casos jurídicos, entende que a liberdade de expressão deva prevalecer, sendo necessário constatar não só o erro em relação ao que se relata, mas também a má-fé na produção e no relato desse erro. O instituto claramente possui posição favorável pela procedência da ADI (BRASIL, 2015, p. 19).

 Ralph Anzolin Lichote, representante da Associação Eduardo Banks, expôs que a ANEL foi criada com o objetivo de propor a ADI. Defendeu o arquivamento do feito por absoluta ilegitimidade da entidade. Explicou ainda que as pessoas cometem deslizes e não podem ser avaliados pelo passado, mas sim pelo conjunto das obras (BRASIL, 2015, p. 20).

Ronaldo Lemos, representante do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional declarou a posição unânime do conselho a favor do direito das biografias sem a necessidade de autorização prévia. Salientou que o conselho recomendou a aprovação do projeto de lei 39.311 do deputado Newton Lima. Como exemplo, citou personalidades mundialmente famosas que foram objeto de diversas biografias e produções audiovisuais. Por fim, fez referência ao artigo 13 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, o qual proíbe a censura prévia (BRASIL, 2015, p. 20-21).

Sérgio Redó, representante da Associação Paulista de Imprensa, esclareceu que o agente público não goza da mesma intimidade de um anônimo, pois este último não desperta interesse na sociedade. Citou a defesa à liberdade de expressão na célebre frase do filósofo Voltaire, o qual dizia “Haverei de lutar incansavelmente para que, mesmo não concordando com aquilo que você se pronuncia, você tenha sempre o direito de falar.” (BRASIL, 2015, p. 21).

O advogado João Ribeiro de Moraes se pronunciou defendendo que as pessoas retratadas nas biografias, que possuíam o mais legítimo interesse no que vai ser decidido na ADI, não foram ouvidas, tiveram suas defesas cerceadas (BRASIL, 2015, p. 21-22).

Por fim, Marcus Vinícius Furtado Côelho, representante da Ordem dos Advogados do Brasil, arguiu que o direito de crítica, que é um direito constitucional, seja passível de ser responsabilizado civil e criminalmente. Declarou ainda que a Ordem contraria qualquer proposta de censura, pois prega a liberdade de expressão, e no caso concreto, a livre publicação de biografias, independente de autorização. Ressaltou que as questões negativas que dizem respeito às personalidades merecem ser conhecidas pela sociedade, para que sirvam de exemplo, demonstrando que os famosos são humanos passíveis de erros e que tais erros podem ser evitados. Acobertar erros dos ídolos não colabora para o futuro da nação, pois o exemplo, mesmo que negativo, pode ser utilizado para educar futuras gerações a não cometê-los (BRASIL, 2012, p. 22).

Finda a exposição das manifestações na audiência pública, observa-se claramente que a maioria dos que apresentaram suas opiniões são favoráveis pela procedência da ADI. Dando continuidade, a ministra Carmem Lúcia deu início à fundamentação jurídica para justificar seu voto.

5.2 Parâmetros normativos constitucionais e regras civis de interpretação demandada

Para a fundamentação do julgado, a ministra Cármen Lúcia elencou os seguintes dispositivos da Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; 

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

[...]

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

[...]

XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

[...]

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

[...]

A partir dos dispositivos anteriormente transcritos, observam-se as normas do Código Civil as quais são objetos da ADI, para que sejam interpretadas conforme a Constituição:

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

Portanto, questiona-se se os artigos 20 e 21 do Código Civil podem ser considerados inconstitucionais por proibirem a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, publicação, exposição ou utilização da imagem de uma pessoa sem exceção a obras biográficas, ocasionando cerceamento ou esvaziando a liberdade constitucional de outrem (BRASIL, 2015, p. 24-25).

Questiona-se também se as regras infraconstitucionais podem ser consideradas compatíveis com o texto constitucional, por resultarem de desdobramentos dos princípios que regem os direitos individuais, mantendo assim a vontade do interessado em autorizar ou não a obra (BRASIL, 2015, p. 25).

E, como último questionamento, pergunta-se se há um conflito aparente de normas que possa ser desfeito pela harmonização interna dos princípios e preceitos constitucionais, possibilitando assim a interpretação dos artigos do Código Civil, não desvirtuando a intepretação do texto considerado no contexto (BRASIL, 2015, p. 25).

Em resposta aos questionamentos, a ministra explica que o controle constitucional deve se basear na máxima efetividade das normas fundamentais, prezando pelo aproveitamento compatível do direito infraconstitucional, utilizando-se de técnica que permita a eficácia jurídica e social do ordenamento jurídico (BRASIL, 2015, p. 25).

“em rigor, não se trata de um princípio de interpretação da Constituição, mas de um princípio de interpretação da lei ordinária de acordo com a Constituição. [...] Em suma, o método é relevante para o controle da constitucionalidade das leis e seu emprego dentro de razoáveis limites representa, em face dos demais instrumentos interpretativos, uma das mais seguras alternativas de que pode dispor o aparelho judicial para evitar a declaração de nulidade das leis. Por via de semelhante princípio, adotado sem excesso, o ato interpretativo não desprestigia a função legislativa nem tampouco enfraquece a magistratura nos poderes de conhecer e interpretar a lei pelo ângulo de sua constitucionalidade.” (BONAVIDES, 2004, p. 517-519/524 apud BRASIL, 2015, p. 25-26).

O cerne da ADI põe em análise em um lado a extensão do exercício constitucional à expressão livre do pensamento, da atividade intelectual, artística e de comunicação dos biógrafos, editores e entidades públicas e privadas veiculadoras de obras biográficas, garantindo-se a liberdade de informar e de ser informado; e do outro lado, o direito à inviolabilidade da intimidade e da privacidade dos biografados, de seus familiares e de pessoas que com eles conviveram (BRASIL, 2015, p. 27).

Para que seja possível tratar do objeto da ação, que é a interpretação de normas do Código Civil, a ministra toma como norte a definição do direito de liberdade de expressão. Leciona que tal direito permeia a história da humanidade, pela circunstância mesma de ser a comunicação própria das relações entre as pessoas e por ela não apenas se diz do bem, mas também se critica, se denuncia, se conta e reconta o que há de vida e da vida, da própria pessoa e do outro, fazendo-se a arte, exprimindo-se o humano do bem e do mau, da sombra e do claro (BRASIL, 2015, p. 29).

A construção da História faz-se pelo que se conta, e também pelo que não se conta, pois silêncio também é história. Mas apenas quando relatada e de alguma forma dada a conhecimento de outrem. Pela sua força de construção e desconstrução de relações sociais, políticas e até mesmo econômicas, a expressão como direito é fruto de lutas permanentes desde os primórdios da história, destaca a ministra (BRASIL, 2015, p. 29).

O direito à liberdade de expressão é outra forma de afirmar-se a liberdade do pensar e expor o pensado ou o sentido, e está presente em todos os sistemas constitucionais democráticos. Os tempos atuais apresentam desafios novos quando ao exercício deste direito. A multiplicidade dos meios de transmissão da palavra e de qualquer forma de expressão sobre o outro amplia as definições tradicionalmente cogitadas nos ordenamentos jurídicos e impõem novas formas de pensar o direito de expressar o pensamento sem o esvaziamento de outros direitos, como o da intimidade e da privacidade. Mas em toda a história da humanidade, o que se tem como fio condutor de lutas de direitos fundamentais é exatamente a liberdade de expressão (BRASIL, 2015, p. 30). Corroborando com o pensamento, a ministra cita J.J. Gomes Canotilho:

“A liberdade de expressão permite assegurar a continuidade do debate intelectual e do confronto de opiniões, num compromisso crítico permanente. Com essa qualidade, ela integra o sistema constitucional de direitos fundamentais, deduzindo-se do valor da dignidade da pessoa humana e dos princípios gerais de liberdade e igualdade, juntamente com a inerente exigência de proteção jurídica. [...]” (CANOTILHO; MACHADO in JÚNIOR, 2014, p. 132 apud BRASIL, 2015, p. 30).

A força do direito à liberdade de pensamento, construída através da formulação normativa pelo enunciado da garantia da livre expressão, constitui princípio magno na concepção moderna do Estado Democrático de Direito (BRASIL, 2015, p. 31).

A garantia de exercício das liberdades, com realce à livre comunicação do pensamento e de opinião, surge no artigo 11 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, fruto da Revolução Francesa de 1789. Em sequência da conquista fundamental, os documentos de direitos humanos reiteram aquela liberdade essencial, devendo-se citar o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas - ONU, de 1948 (BRASIL, 2015, p. 31).

Art. 11. A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.

Art. 19. Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

Em continuidade, merece análise o artigo 19 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU, internalizado no Brasil em 1992; e o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, internalizada no Brasil em 1992 (BRASIL, 2015, p. 32-33).

Artigo 19

1. ninguém poderá ser molestado por suas opiniões.

2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha.

3. O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Consequentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para:

a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;

b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas.

Artigo 13 - Liberdade de pensamento e de expressão

1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.

2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar:

a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;

b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.

3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.

4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.

5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.

Em sua fundamentação, a ministra transcreve ainda outras normas pertencentes ao Direito Internacional, tais como a Convenção Europeia de Direitos Humanos, adotada em 1953 pelo Conselho da Europa, que dispõe em seu artigo 10 sobre os direitos da liberdade de expressão; a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, de 1986, que prevê em seu artigo 9º o direito à informação e à liberdade de expressão; e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 2000, que tem em seu artigo 11 disposição sobre os direitos de liberdade de expressão e de informação (BRASIL, 2015, p. 33-34).

A análise destas normas de Direito Internacional demonstra as obrigações aos membros da comunidade internacional para o seu cumprimento. Os direitos fundamentais são de titularidade de toda pessoa, como são de responsabilidade de todos com todos, de cumprimento obrigatório em relação ao outro, independente de sua condição e natureza (BRASIL, 2015, p. 34).

Perfazendo a análise histórica da liberdade de pensamento e de expressão no direito brasileiro, a ministra relata que desde a primeira Constituição, a de 1824, há a previsão do direito em estudo. É fato que nem sempre se pode expressar o pensamento livremente, como previsto nas normas. A liberdade foi desafio e conquista incessante, no Brasil, como em qualquer outra parte do mundo. A liberdade não é um direito acabado, mas sim é uma peleja sem fim (BRASIL, 2015, p. 37).

Após a análise da presença da liberdade de pensamento e de expressão por todos os textos constitucionais que o Brasil já teve, a ministra conclui que o país nunca teve carência de bons (às vezes ótimos) textos constitucionais e legais. O de que sempre se ressentiu foi de dar a eles cumprimento integral, para que a confiança de sua efetividade jurídica garantisse ao regime democrático a segurança jurídica dos cidadãos, finalidade estatal e social a se cumprir (BRASIL, 2015, p. 44).

5.3 Direito à liberdade de pensamento e de expressão e a censura na Constituição de 1988

Pode-se extrair dos incisos IV, V, IX, X e XIV do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 que os princípios sobre a liberdade de pensamento, de expressão, de atividade artística, cultural e científica são minuciosamente tratados, deixando bastante claro a proibição da censura, conforme a previsão no artigo 220 da Carta (BRASIL, 2015, p. 44).

Mesmo que diversas normas constitucionais e outras provenientes do direito internacional existam para a garantia de liberdade do objeto já exposto, faz-se ainda necessária a presença explícita da proibição da censura nos mesmos ordenamentos (BRASIL, 2015, p. 45).

Censura é forma de controle da informação. Um terceiro, que não o autor do pensamento e do que quer se expressar, impede a produção, a circulação ou a divulgação do pensamento ou, se obra artística, do sentimento. Enfim, há um controle sobre a palavra ou a forma de expressão do outro. Pode-se afirmar que se controla o outro. O censor faz-se senhor não apenas da expressão do pensamento ou do sentimento de alguém, pior, controla o acervo de informação que se pode passar a outros (BRASIL, 2015, p. 45).

Para melhor entendimento, observando em sentido estrito, censura é a restrição prévia à liberdade de expressão realizada e autorizada por autoridades administrativas, que resulta na vedação à veiculação de um determinado conteúdo. Ampliando o sentido, a censura abrange também as restrições administrativas posteriores à manifestação ou à obra, que impliquem vedação à continuidade da sua circulação. Como exemplos, a censura posterior pode alcançar a apreensão de livros após o seu lançamento, a proibição de exibição de filmes ou a encenação de peças teatrais depois de sua estreia. Todas essas formas são inaceitáveis, por grave ofensa aos preceitos constitucionais (BRASIL, 2015, p. 46).

Em conceito mais amplo de censura, incluem-se os atos judiciais que provoquem a proibição de comunicação de mensagens e informações ou a circulação de obras. Nesse caso, observa-se uma forte presunção de inconstitucionalidade das medidas judiciais que impliquem neste tipo de restrição à liberdade de expressão. Isto porque, não sendo a liberdade de expressão um direito absoluto, em algumas hipóteses raras e extremas pode ser admissível a proibição de manifestações que atentem gravemente contra outros bens jurídicos constitucionalmente protegidos (BRASIL, 2015, p. 46).

Frequentemente, a censura é lembrada com relação ao ilegítimo e com o perverso atuar ilegítimo do Estado. Prática comum em regimes autoritários ou totalitários, não é, contudo, exclusividade do Estado. A liberdade de expressão, exposição, divulgação do pensamento apresenta-se em norma jurídica, emanada do Estado, como dever estatal, conquanto voltando-se a proibição expressa de sua restrição ao exercício estatal (censura legislativa, administrativa, judicial). Todavia, deve também ser assegurada contra a ação do particular. O homem não pode praticar a limitação ou a extinção do direito à liberdade de expressão do outro em relação ao pensar sobre alguém (BRASIL, 2015, p. 47).

A história demonstra que a humanidade foi silenciada em ocasiões demasiadas, e nem sempre podíamos aprender a pensar para experimentar o que quiséssemos, menos ainda expressar o que pensávamos. A cultura do politicamente correto, expressão adotada desde década de 1980, significando políticas tendentes a tornar a linguagem neutra para se evitar ofensa a pessoas ou grupos sociais discriminados historicamente também vem sendo levada ao paroxismo, passando a se constituir em forma de censura da expressão. Adotam-se formas de censura implícita e particular, exercida de forma a tolher ou a esvaziar o direito à liberdade de expressão (BRASIL, 2015, p. 49).

A censura não apenas bane ideias e pessoas; possui o poder de calar a pessoa, para além de cada um, cala a alma, a alegria, o sonho que se põe em expressão para se tornar ideia, que se pode converter em ação, que se pode tornar destino. A ministra aponta que dois são os atributos da censura estatal ou particular: a intolerância à diferença e à sobranceira de uma em relação à outra pessoa, sobre a qual se pretende exercer o poder (BRASIL, 2015, 49).

Não são incomuns normas constitucionais e de direito internacional proibitivas de censura. O artigo 220 da Constituição de 1988 não inova o direito constitucional. Nos sistemas jurídicos brasileiros, reiteraram-se normas sobre as restrições ao exercício do direito à liberdade de expressão. Atualmente, prevalece a norma constitucional que proíbe expressa e taxativamente qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística (BRASIL, 2015, 51-55).

O sistema constitucional brasileiro traz em norma taxativa a proibição de qualquer censura, valendo a vedação ao Estado e também a particulares. Tem-se, assim, assentada a horizontalidade da principiologia constitucional, aplicável a entes estatais ou a particulares. Arremata-se que os princípios constitucionais relativos a direitos fundamentais não obrigam apenas os entes e órgãos estatais. São de acatamento impositivo e insuperável de todos os cidadãos em relação aos demais. O exercício do direito à liberdade de expressão não pode ser cerceado pelo Estado nem pelo vizinho, salvo nos limites impostos pela legislação legítima para garantir a igual liberdade do outro, não a ablação deste direito para superposição do direito de um sobre o outro (BRASIL, 2015, p. 57).

Quanto mais se amplia o espaço de poder social mais se tem a possibilidade real de ser a liberdade restringida pela ação de particulares contra um ou contra um grupo de indivíduos. A proteção dos direitos não se limita, pois, à ação estatal, senão que ela se estende também à ação dos particulares no complexo das relações intersubjetivas. O particular não pode se substituir ao Estado na condição de deter o poder sobre o outro a ponto de lhe cercear ou anular direitos fundamentais (BRASIL, 2015, p. 58).

Quanto ao direito à liberdade de expressão, a eficácia dos direitos fundamentais não se limita ao provimento estatal. Impõe-se a toda a sociedade, não persistindo o agir isolado ou privado pela só circunstância de não ser estatal. O poder individual – que existe na sociedade – não pode se substituir ao poder estatal, nem se imuniza das obrigações relativas aos direitos fundamentais (BRASIL, 2015, p. 59).

Reconhece-se a possibilidade de limitações ao exercício do direito de liberdade de expressão e de acesso à informação pautadas na proteção dos direitos ou reputação de outras pessoas, da segurança nacional, da ordem pública e da saúde e moral públicas. Admitem-se tais limitações previamente estabelecidas em lei, sendo necessário harmonia com os princípios que regem a sociedade democrática. Ademais, qualquer limitação ao exercício dos direitos fundamentais deve conduzir-se pela conclusão de serem os danos produzidos maiores que aqueles causados ao interesse público se a informação fosse retida (BRASIL, 2015, p. 59).

Para o pleno entendimento da questão, não se pode deixar de enfatizar o direito à informação, constitucionalmente assegurado como fundamental, e que se refere à proteção a se obter e divulgar informação sobre dados, qualidades, fatos, de interesse da coletividade, ainda que sejam assuntos particulares, porém com expressão ou de efeitos coletivos (BRASIL, 2015, p. 63).

O direito presente no inciso XIV do artigo 5º da Constituição contempla a liberdade de informar, de se informar e de ser informado. O primeiro refere-se à formação da opinião pública, considerado cada qual dos cidadãos que haverá de livremente poder receber dados sobre assuntos que sejam de interesse da coletividade e sobre as pessoas cujas ações, público-estatais ou público-sociais que possam interferir na sua esfera do acervo do direito de saber, de aprender sobre temas relacionados a seu leque de cogitações legítimas (BRASIL, 2015, p. 63-64).

O direito de ser informado concerne àquele que recebe o teor da comunicação, tornando-se ator no processo de liberdade crítica e responsável pelas suas opiniões e, a partir delas, de suas ações. Liberdade desinformada é algema mental transparente, porém tão limitadora quanto os grilhões materiais. A corrente da desinformação não é visível, mas é sensível na cidadania ativa e participativa. A ministra cita Brecht, e diz que o pior analfabeto é o analfabeto político. O direito de ser informado é a garantia da superação do analfabetismo político (BRASIL, 2015, p. 64).

O direito de se informar relaciona-se à liberdade de buscar a informação em fonte não censurada e sobre qualquer tema que se revele de interesse do cidadão. Restringir a busca livre de assunto ou em fonte circunscrita antecipadamente significa limitar a liberdade de obter dados de conhecimento para a formação de ideias e formulação de opiniões (BRASIL, 2015, p. 64).

Constitucionalmente assegurado, esse direito fundamental compreende a busca, o acesso, o recebimento, a divulgação, a exposição de dados, pensamentos, formulações, sendo todos e cada um responsável pelo que exorbitar a sua esfera de direitos e atingir outrem (BRASIL, 2015, p. 64).

A expressão livre forma e informa o cidadão e torna o pensamento, a produção intelectual, artística, científica e de comunicação fonte de conhecimento e de novas ideias e ações. Nem por isso se dispensa a ela natureza tão absoluta que possa, provocando dano a alguém, tornar imune o autor da lesão ao argumento de exercitar direito próprio. O manto da liberdade de expressão não serve para acobertar os abusos de direito (BRASIL, 2015, p. 65).

5.4 Responsabilidade constitucional pela informação

Não há democracia sem responsabilidade pública e cidadã. Ausência de responsabilidade não prospera sequer na anarquia. Nem a ausência de governo pode ser confundida com desgoverno (BRASIL, 2015, p. 66).

O dever de respeito ao direito do outro conduz ao de responder nos casos em que, mesmo no exercício de direito legitimamente posto no sistema jurídico, se exorbite dano a terceiro (BRASIL, 2015, p. 66).

Quem informa e divulga informação responde por eventual excesso, apurado por critério que demonstre dano decorrente da circunstância de ter sido ultrapassada esfera garantida de direito do outro. A informação, a exposição, a divulgação de dado pode gerar dano como qualquer outro agir humano, e o STF concluiu por inúmeras vezes que a responsabilização compõe o sistema de liberdades (BRASIL, 2015, p. 66).

A Constituição elevou a matéria da responsabilidade civil, administrativa, contratual ou extracontratual à categoria de elemento fundamental de equilíbrio sistêmico, garantindo a mais ampla liberdade e fazendo a ela corresponder igual responsabilidade. Entretanto, o direito civil guarda a aplicação dos preceitos constitucionais, sobretudo no que se refere à relação entre particulares e suas consequências (BRASIL, 2015, p. 67).

A responsabilidade constitucionalmente estabelecida não se afasta por ser o autor da ação danosa titular dos direitos fundamentais, no exercício dos quais terá exorbitado a intervir na esfera de direitos de outrem e que têm igual natureza e idêntico resguardo (BRASIL, 2015, p. 68).

A ministra Cármen Lúcia cita Ingo Sarlet, para melhor compreensão do tema:

“em sentido amplo, a previsão, no art. 5º, V, da CF, juntamente com o direito de resposta, de um direito à ‘indenização por dano material, moral ou à imagem’ opera como um limite à liberdade de expressão, embora não impeça o seu exercício. A fixação, na esfera de demandas judiciais, de valores altos a título de indenização, poderá não apenas inibir a liberdade de expressão como mesmo levar, em situações-limite, à sua inviabilidade, de tal sorte que também nessa esfera há que respeitar os critérios da proporcionalidade e razoabilidade. O direito a indenização, neste contexto, há de ser reconhecido com prudência, sob pena de – apesar de posterior à veiculação do discurso ofensivo – se transformar em limitação ilegítima da liberdade de expressão.” (SARLET in SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2014, p. 466-467 apud BRASIL, 2015, p. 69).

No Direito, não há espaço permitido para a imunidade absoluta do agir no exercício de direitos com interferência danosa a esfera de direitos de outrem. Ação livre é ação responsável. Responde aquele que atua, ainda que sob o título de exercício de direito próprio (BRASIL, 2015, p. 71).

O exercício do direito às liberdades não se concilia com restrições ao direito de informar, menos ainda com a sua eliminação. O que se há de reivindicar sempre é a responsabilidade democrática, que se impõe como princípio de cumprimento igualmente garantido (BRASIL, 2015, p. 71).

5.5 Direito à intimidade e à privacidade

Segundo o preceito disposto no inciso X do artigo 5º da Constituição Federal, as dimensões da vida tida por invioláveis são encarecidas por se considerar que podem ocorrer, nas circunstâncias da convivência social, ofensas ou violações a estes direitos. A inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem constitui direito. Sua violação acarreta a forma de punição do autor da lesão, qual seja, a indenização pelo dano material ou moral (BRASIL, 2015, p. 72).

O famoso conceito de Brandeis (right to be alone) vem sendo revisto nos tempos em que à invasão de privacidade se relaciona a evasão de privacidade. Há os que buscam o direito de se manterem em sossego e no controle das informações a seu respeito; e há os que buscam se mostrarem e difundirem, incessantemente, o descontrole e a divulgação exibida das informações a seu respeito. A proteção de escolha de vida contra o controle ou o descontrole de dados publicizados independe da escolha autônoma do interessado conforme o conceito extraído do normativo constitucional (BRASIL, 2015, p. 73).

A privacidade contrapõe-se à publicidade, ou seja, o que não se dá a público, por escolha de espaço próprio do controle das informações e dados sobre a vida da pessoa. A privacidade foi conquistada, não tendo sido sempre considerada direito, menos ainda qualificada como fundamental (BRASIL, 2015, p. 73-76).

No direito brasileiro, a matéria relativa à tutela da inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa foi deixada ao cuidado da legislação infraconstitucional. O direito civil e o direito penal, ramos tradicionais do direito, contemplaram sempre as formas de reparação do ilícito civil ou penal pelo dano causado pela violação àqueles direitos (BRASIL, 2015, p. 79-80).

A constitucionalização expressa da inviolabilidade do direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem é recente. Por isso, ainda se percebem dificuldades na aceitação como direitos fundamentais opostos não apenas ao agir estatal, mas por igual em relação aos particulares (BRASIL, 2015, p. 80).

O acúmulo de dados e as possibilidades de sua obtenção/divulgação a respeito de todos e de cada pessoa já não parece compatível com o conceito de Brandeis (right to be alone). Atualmente, a dificuldade em ser deixado em paz no sentido de ser respeitado em seu desejo de ficar só com os seus dados, controlando o que quer, pretende e aceita seja posto a público, contrapõe-se na velocidade em que os dados circulam, como fatos, fotos, versões e até inversões sem controle (BRASIL, 2015, p. 80).

A inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa tem na Constituição a resposta ao caso de desobediência a essa regra. E assim é por se saber que o homem descumpre normas, e disso se sabe. Por isso existem os contratos de confidencialidade que se tornaram comuns e que buscam assegurar que aqueles que convivem proximamente sejam obrigados a fazer silêncio do que virem e ouvirem do outro ou no espaço do outro (BRASIL, 2015, p. 82).

Mesmo com as proibições, os textos normativos insistem em aceitar restrições, mas por prever também as formas de se reparar eventuais abusos, e como exemplo, observa-se o que preceitua a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão e a lei n. 8.730 de 1993 que obriga a declaração de bens e rendas para os agentes públicos (BRASIL, 2015, p. 82-83).

Para a ministra, não se pode alegar estar diante de circunstâncias que respeitam sempre a quem exerce cargo do povo, pelo que este deve dele saber, não se podendo escusar de deixar que a plena luz entre sobre todos os setores de sua vida. Primeiro, porque há sempre um espaço de indevassabilidade e segredo que compõe o íntimo de uma pessoa e que é de parco ou nenhum conhecimento dos outros. Segundo, porque quem faz a sua vida e profissão na praça pública, com a presença e a confiança do povo e angaria o prestígio que o qualifica e enaltece não há de pretender esquivar-se deste mesmo público quando bem desejar, como se a praça fosse um mecanismo virtual, com um botão de liga/desliga ao sabor do capricho daquele que buscou e fez-se notório (BRASIL, 2015, p. 86).

A notoriedade tem preço, e este é fixado pela extensão da fama. Essa é quase sempre buscada. E quando não é, mas ainda assim é obtida, cobra pedágio: é o bilhete do reconhecimento público que se traduz em exposição do espaço particular, no qual querem adentrar todos (BRASIL, 2015, p. 87).

A notoriedade torna a pessoa alvo de interesse público pela sua referenciabilidade, podendo ser através de destaque no campo intelectual, artístico, moral, científico, desportivo ou político. Quando o ponto de interesse advier ou convier às funções sociais desempenhadas ou delas decorrerem ou para a sua compreensão concorrem as informações que extrapolem as linhas da quadra de jogo ou desempenho, a busca, produção e divulgação de informações não é ilegítima, nem pode ser cerceada sob o argumento de blindar-se a pessoa com a inviolabilidade constitucionalmente assegurada (BRASIL, 2015, p. 94).

Estes são os direitos fundamentais assegurados nos sistemas interno brasileiro e em normas de direito internacional, algumas internalizadas no direito pátrio, que constituem o que, não poucas vezes, têm sido considerados violados – ressalva feita ao direito à liberdade de informação e de ser informado – por pessoas, que se veem sujeitos de estudos, pesquisas, obras, nas quais suas vidas são relatadas e os escritos produzidos e divulgados, independente de autorização da narrativa e das versões do autor da produção (BRASIL, 2015, p. 94).

E diante da narrativa apresentada, a ministra entende que o recolhimento de obras produzidas por decisão judicial que atenda o pleito do sujeito sobre o qual se escreve, de seus familiares, ou se impedir sequer a produção da obra biográfica pela ausência de autorização, baseia-se, atualmente, nos artigos 20 e 21 do Código Civil (BRASIL, 2015, p. 94).

O ponto fulcral de discussão da ADI é como interpretar esses dispositivos, sem excluí-los do sistema, por declaração de vício de inconstitucionalidade, tornando-os compatíveis com os princípios constitucionais, assecuratórios de direitos fundamentais, em caso de obra biográfica produzida sem autorização (BRASIL, 2015, p. 95).

5.6 Biografia e liberdades individuais e públicas

Não é tarefa fácil identificar a natureza da obra biográfica. Menos dificultoso é identificar a obra biográfica. Sobra o primeiro item muito tem escrito na história e na literatura. De literatura a historiografia, de obra literária a produto investigativo, a biografia é gênero que anda passo a passo com o andar histórico da humanidade (BRASIL, 2015, p. 96).

Não há apenas uma teoria na qual se enquadrar a obra biográfica, nem há apenas uma razão para se chegar à escolha de tal escrita na busca de se passar do particular para o plural e também, não poucas vezes, para se ter da coletividade, que tenha absorvido o jeito e a influência de alguém, para o particular (BRASIL, 2015, p. 97).

Na evolução da biografia, essa se humanizou. A vida grafada estendeu-se. O interesse multiplicou-se. E o retrato não foi mais modelo de perfeição para qual se preparou o que se quis. O retratista escarafunchou dentro da casa, da vida, do psique e incomodou (BRASIL, 2015, p. 97).

A biografia é a escrita (ou o escrito) sobre a vida de alguém, relatando-se o que se apura e se interpreta sobre a sua experiência mostrada e que, não sendo mostrada voluntariamente, não foi autorizado pelo sujeito ou por seus familiares a passarem para a coletividade (BRASIL, 2015, p. 98).

O biógrafo busca saber quem é o biografado, indo atrás de sua vida. Investiga, prescruta, indaga, questiona, observa, analisa para concluir o quadro da vida, o comportamento não mostrado que ostenta o lado que completa o ser autor da obra que influencia e marca os outros. A vida do outro há de ser preservada. A curiosidade de todos há de ser satisfeita. O biógrafo cumpre o segundo papel (BRASIL, 2015, p. 98-99).

Sem ver a totalidade da vida da pessoa não há como se saber o que é a vida da figura que tenha marcado uma época, como sua obra foi elaborada, suas influências pretéritas e aquelas que tenha provocado. O dilema entre o que foi e o que poderia ter sido, a luta do querer e do que se fez para se atingir, o que foi dor transformada em força, o que foi vigor desperdiçado e tornado obra de desabafo, tudo compõe a pessoa (BRASIL, 2015, p. 99).

O mundo não é um construído, é um permanente construir. E a construção, especialmente a partir de figuras de referência, faz a história. Sem o saber dessas figuras, como se avançar? Sem a autorização, como prosseguir (BRASIL, 2015, p. 99)?

A ministra esclarece que afirmou-se, no curso da ação, que a biografia não estaria cerceada, apenas dependeria de autorização, porque as versões apresentadas poderiam comprometer a intimidade e a privacidade do biografado (BRASIL, 2015, p. 100).

Entretanto o argumento não convence: primeiro, porque a expressão é livre. Qualquer censura prévia é vedada pelo sistema. A autorização prévia constitui censura prévia particular. O recolhimento de obras após a sua divulgação é censura judicial, que apenas substitui a administrativa (BRASIL, 2015, p. 100).

Segundo ponto é que a biografia autorizada é uma possibilidade que não exaure a possibilidade de conhecimento das pessoas, comunidades, costumes, histórias. E entre a história de todos e a narrativa de um, opta-se pelo interesse de todos (BRASIL, 2015, p. 100).

Terceiro, a biografia autorizada não está proibida. Esta não apenas é permitida como pode ser estimulada. Apenas é de se levar em conta que a memória é traiçoeira. Um mesmo fato pode ser lembrado com os requisitos cerebrais que impõem a seleção e até mesmo a recriação de fatos e casos que não foram o que a interpretação da pessoa sugere. Não se há de frustrar a história pela lembrança elaborada de uma única pessoa (BRASIL, 2015, p. 101).

Quarto, a privacidade de quem sai à rua não pode ser considerada igual quadrante da intimidade daquele que se mantém guardado em seu secreto quarto. Nem é que esse não seja objeto de olhares. É que seu dormente não abre a janela para resguardo pessoal constitucionalmente protegido (BRASIL, 2015, p. 101).

Temem-se versões da história de alguém que não é a sua vida. Temem-se enganos e fraudes. O risco é compreensível e concreto. Mas viver é arriscar. Há que se permitir o erro para se buscar o acerto. E garante-se a reparação sem se tolher o direito do outro (BRASIL, 2015, p. 102).

A pesquisa histórica depende das biografias. É da vida e com as vidas que se estruturam as sociedades. Sociedade é o todo composto de vidas singulares, mas que se erguem com esteios estruturadores das instituições e construtores de catedrais e capelas de gentes, ideias e costumes (BRASIL, 2015, p. 102).

A autorização prevista na legislação civilista talvez tenha sido pretensão de se constituir em proteção jurídica asseguradora da inviolabilidade constitucionalmente prevista e sem a qual o rol de direitos fundamentais não tem plena eficácia relativamente ao Estado e aos particulares (BRASIL, 2015, p. 102-103).

Não há como compatibilizar o que o direito garante como liberdades, assegura a sua plena expressão, proíbe expressa e taxativamente qualquer forma de censura, define como direito fundamental a inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da privacidade e, para descumprimento desta norma, prescreve a forma indenizatória de reparação e norma de hierarquia inferior sobrevém fixar regra para o exercício da liberdade, iniciando-se, em seu ditame, com a ressalva: “salvo se autorizadas...” (BRASIL, 2015, p. 103).

Há absurda contradição: a Constituição garante a liberdade e a lei civil afirma que o exercício não pode ser garantido salvo se autorizado pelo interessado (BRASIL, 2015, p. 103).

Ademais, não se pode afirmar que a circunstância de proteção da inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem ser agravada pelo fato de se buscarem fins comerciais com a comercialização da obra biográfica (BRASIL, 2015, p. 106).

Escreve-se para ser lido, e livro é produto de comércio. Logo, o que se está a obtemperar é desimportante para o deslinde da questão relativa à interpretação da matéria. O mesmo entendimento é aplicável para a obra audiovisual. Produção cinematográfica é comercializável. E comércio faz-se com o pagamento pela prestação do serviço ou do produto (BRASIL, 2015, p. 106).

Certamente, corre-se o risco de haver abusos, de se produzirem escritos ou obras audiovisuais para divulgação com o intuito exclusivo de se obterem ganhos espúrios pela amostragem da vida de pessoas com detalhes que não guardam qualquer traço de interesse público (BRASIL, 2015, p. 106).

Risco é próprio do viver. Erros corrigem-se segundo o direito, não é se abatendo liberdades conquistadas que se segue na melhor trilha democrática traçada com duras lutas. Reparam-se danos nos termos da lei, pois não é com mordaça ou censura que se resolve a inverdade. É com mais verdade sobre o inocorrido e narrado por má-fé ou ignorância (BRASIL, 2015, p. 107).

5.7 Biografia: a intimidade e a privacidade do biografado

Por força dos princípios constitucionais garantidores dos direitos fundamentais devem ser as normas infraconstitucionais interpretadas de acordo com os princípios constitucionais, dotando-os de plena efetividade, sem perda de seus conteúdos ou de sua eficácia, para se assegurar o bem viver de cada um e de todos. Mas os fins a que se destinam as normas constitucionais não se alteram senão para serem mais firmes em sua objetividade (BRASIL, 2015, p. 108).

A vida de todos compõe a sociedade. A vida do outro, singular, deve ser o quanto mais deixada em paz. Mas quem sai à rua deixa-se ver. Num mundo em que a praça virtual é mais intensa e mostra o que se passa na cama e até debaixo dela, não se há de pretender que o que prega no largo da cidade se queira depois esconder daquele que o tenha encontrado (BRASIL, 2015, p. 108).

Não se extingue o direito à inviolabilidade, à intimidade ou da vida privada. Respeita-se, no direito, o que prevalece no caso posto em juízo, sem juízo prévio de censura nem possibilidade de se firmar a censura prévia ou a posteriori, de natureza legislativa, política, administrativa ou judicial, deixando-se em relevo e resguardo o que a Constituição ficou como inerente à dignidade humana a ser solucionado em casos nos quais se patenteie desobediência aos princípios fundamentais do sistema, pois sem a liberdade de expressão, não há sociedade democrática (BRASIL, 2015, p. 109-110).

5.8 Interpretação dos artigos 20 e 21 do Código Civil

Contemplam os artigos 20 e 21 do Código Civil, em sua literalidade, a exigência de autorização prévia para divulgação de escritos, transmissão da palavra ou publicação, exposição ou utilização da imagem de uma pessoa sem o que poderão ser proibidas, a requerimento do interessado ou, em se tratando de morto ou de ausente, do cônjuge, ascendentes ou descendentes, sem prejuízo da indenização cabível, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais (BRASIL, 2015, p. 110).

Essa interpretação protetiva do direito à intangibilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa, não pode ser aplicada relativamente à produção de obra biográfica, pela circunstância de não ser conter exceção expressa a esse gênero no dispositivo legal (BRASIL, 2015, p. 111).

Além do mais, não pode porque a liberdade de pensamento, de expressão, de produção artística, cultural, científica estaria comprometida e a censura particular seria a forma de se impor o silêncio à história da comunidade. A proteção não se dá apenas no espaço da política, e sim em todas as formas de expressão asseguradas pela Constituição (BRASIL, 2015, p. 111).

A aplicação e intepretação dos dispositivos em questão tem provocado o recolhimento de obras biográficas publicadas, ao impedimento de sua edição ou a proibição de sua exposição e venda ou a sua exibição, quando se trata de obras audiovisuais. Diversos são os casos presentes na jurisprudência brasileira (BRASIL, 2015, p. 111).

Podem-se citar a proibição da publicação da biografia do cangaceiro Lampião; a proibição da exibição do documentário sobre o pintor Di Cavalcanti; a proibição da biografia de Noel Rosa, dentre outros (BRASIL, 2015, p. 111-113).

A Constituição brasileira assegura as liberdades de maneira ampla. Não pode, pois, se anulada por outra norma constitucional, por emenda tendente a abolir direitos fundamentais (inciso IV do artigo 60), menos ainda por norma de hierarquia inferior (lei civil), ainda que sob o argumento de se estar a resguardar e proteger outro direito constitucionalmente assegurado, qual seja, o da inviolabilidade do direito à imagem, à privacidade, à honra e à imagem (BRASIL, 2015, p. 113).

Para se interpretar constitucionalmente o que nos artigos 20 e 21 do Código Civil se contém, há de se considerar que: a) as normas constitucionais de direitos fundamentais garantem a vida digna, para o que se assegura, expressamente, a liberdade de pensamento e de sua expressão, liberdade de informação e de criação intelectual, artística e científica; b) consequência lógica daquelas liberdades, está vedada qualquer forma de censura, estatal ou particular; c) consectário lógico da dignidade da vida, a Constituição também garante, como direito fundamental, a inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem das pessoas, impondo-se, na norma, a forma pela qual se repara o descumprimento desse direito, a saber, mediante indenização (BRASIL, 2015, p. 114).

Para a solução da questão, há de se acolher o balanceamento de direitos, conjugando-se o direito às liberdades com a inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa biografada e daqueles que pretendem elaborar as biografias (BRASIL, 2015, p. 115).

Portanto, demonstra-se a clareza da inconsistência constitucional das regras dos artigos 20 e 21 do Código Civil, e no mesmo sentido, está Canotilho que afirma; “Não temos dúvida que o balanceamento ‘definitório categorial’ ou ‘universalizante’ detectado no enunciado linguístico do art. 20 do Código Civil conduz a uma operação deôntica de proibição claramente inconstitucional.” (BRASIL, 2015, p. 117).

5.9 Conclusão do voto

Findando todo o raciocínio exposto, a ministra Cármen Lúcia decide por julgar procedente a ADI, dando interpretação conforme à Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil, sem redução do texto. E passam os artigos a possuírem a seguinte interpretação:

a) em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo por igual desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas);

b) reafirmar o direito à inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa, nos termos do inc. X do art. 5º da Constituição da República, cuja transgressão haverá de se reparar mediante indenização. (BRASIL, 2015, p. 118-119)

Após a exposição de seu voto (que não foi lido na íntegra em plenário, mas somente uma síntese), o presidente da Corte, ministro Ricardo Lewandowski passou a palavra para o ministro Luís Roberto Barroso, dando início à votação da decisão (STF, 2015).


6 SÍNTESE DOS VOTOS DOS MINISTROS DO STF NA ADI 4.815

O ministro Luís Roberto Barroso, iniciando a votação, destacou que o caso envolve uma tensão entre a liberdade de expressão e o direito à informação, de um lado, e os direitos da personalidade (privacidade, honra e imagem), do outro. Nessa tensão, o Código Civil ponderou em desfavor da liberdade de expressão, que tem posição preferencial dentro do sistema constitucional (NOTÍCIAS STF, 2015b).

Barroso observa que a subordinação da liberdade de expressão aos direitos de personalidade produz um resultado inconstitucional, ressaltando que o primeiro direito deve ser tratado como uma liberdade preferencial (BRASIL, 2015b, p. 3).

Aponta ainda que a interpretação dos dispositivos do Código Civil tem causado danos reais à cultura nacional e aos legítimos interesses de autores e editores de livros. Citou exemplos de danosa interferência judicial na divulgação de biografias: Ruy Castro, “Estrela Solitária: um brasileiro chamado Garrincha”; Paulo César Araújo, “Roberto Carlos em Detalhos”; Alaor Barbosa dos Santos, “Sinfonia de Minas Gerais – a vida e a literatura de João Guimarães Rosa”; Toninho Vaz, “O Bandido que Sabia Latim”; Eduardo Ohata, “Anderson Spider Silva – o relato de um campeão nos ringues da vida”; Pedro de Morais, “Lampião – O Mata Sete” (BRASIL, 2015b, p. 7).

Em consonância com a ministra Cármen Lúcia, o ministro defende que a regra geral é a proibição da censura e, no caso de abuso da liberdade de expressão, deve-se dar preferência à responsabilização a posteriori, que podem incluir a retratação, a retificação, o direito de resposta, a indenização, a responsabilização penal ou outras vias legalmente previstas (BRASIL, 2015b, p. 5).

Por estes motivos, o ministro Barroso seguiu o voto com a relatora. Dando continuidade à votação, a ministra Rosa Weber manifestou seu entendimento de que controlar as biografias implica tentar controlar ou apagar a história, e a autorização prévia constitui uma forma de censura, incompatível com o Estado Democrático de Direito, seguindo o voto com a relatora (NOTÍCIAS STF, 2015b).

Na sequência, o ministro Luiz Fux destacou que a notoriedade do biografado é adquirida pela comunhão de sentimentos públicos de admiração e enaltecimento do trabalho, constituindo um fato histórico que revela a importância de informar e ser informado. Em seu entendimento, são poucas as pessoas biografadas, e, na medida em que cresce a notoriedade, reduz-se a esfera da privacidade da pessoa. No caso das biografias, aponta que é necessária uma proteção intensa à liberdade de informação, como direito fundamental, e por tais motivos, acompanhou na íntegra o voto da relatora (NOTÍCIAS STF, 2015b).

Na ordem, o ministro Dias Toffoli explanou que obrigar uma pessoa a obter previamente autorização para lançar uma obra pode levar à obstrução de estudo e análise da História. O ministro ponderou, no entanto, que a decisão tomada no julgamento não autoriza o pleno uso da imagem das pessoas de maneira absoluta por quem quer que seja, ressaltando que há a possibilidade de intervenção judicial no que diz respeito aos abusos, às inverdades manifestas e aos prejuízos que ocorram a uma dada pessoa. Toffoli acompanhou a relatora em seu voto (NOTÍCIAS STF, 2015b).

Continuando a votação, o ministro Gilmar Mendes leciona que fazer com que a publicação de biografia dependa de prévia autorização traz sério dano para a liberdade de comunicação. Destacou também a necessidade de se assentar, caso o biografado entenda que seus direitos foram violados por publicação de obra não autorizada, a reparação poderá ser efetivada de outras formas além da indenização, tais como a publicação de ressalva ou nova edição com correção (NOTÍCIAS STF, 2015b). O ministro votou acompanhando a relatora. Nesse momento, a ministra relatora retirou a alínea b do seu voto, em virtude de polêmica no entendimento e consenso da Corte, e ressaltou que a alínea b somente trazia uma transcrição do inciso X do artigo 5º da Constituição da República. Após sanada a divergência, deu-se continuidade à votação (STF, 2015b).

Na sequência, o ministro Marco Aurélio destacou que há, nas gerações atuais, interesse de preservação da memória do país. Afirmou que biografia, em última análise, quer dizer memória, e assinalou que a biografia, independentemente de autorização, constitui a memória do país. Por fim, o ministro salientou que, havendo conflito entre o interesse individual e o coletivo, deve-se dar primazia ao segundo, dessa forma, acompanhou o voto da relatora (NOTÍCIAS STF, 2015b).

O decano do STF, ministro Celso de Mello, afirmou em seu voto que a garantia fundamental da liberdade de expressão é um direito contramajoritário, ou seja, o fato de uma ideia ser considerada errada por particulares ou pelas autoridades públicas não é argumento bastante para que sua veiculação seja condicionada à prévia autorização (NOTÍCIAS STF, 2015b).

O ministro assinalou que a Constituição Federal veda qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística. Mas ressaltou que a incitação ao ódio público contra qualquer pessoa, grupo social ou confessional não está protegida pela cláusula constitucional que assegura a liberdade de expressão. Destacou o ministro que a sociedade não deve retroceder no processo de conquista das liberdades democráticas, pois o peso da censura, ninguém o suporta. O decano acompanhou na íntegra o voto da relatora (NOTÍCIAS STF, 2015b).

Por fim, o presidente da Corte, ministro Ricardo Lewandowski afirmou que o STF vive um momento histórico ao reafirmar a tese de que não é possível que haja censura ou se exija autorização prévia para a produção e publicação de biografias. O ministro observou que a regra estabelecida com o julgamento é de que a censura prévia está afastada, com plena liberdade de expressão artística, científica, histórica e literária, desde que não se ofendam os direitos constitucionais dos biografados (NOTÍCIAS STF, 2015b).

Finda suas exposições, o presidente proclamou que o plenário do STF, por unanimidade, julgou procedente a ADI para dar interpretação conforme à Constituição dos artigos 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo por igual desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas) (STF, 2015b).


7 CONCLUSÃO 

Obviamente, não é fácil para nenhum operador do direito a análise dos direitos fundamentais envolvidos na questão das biografias não autorizadas. Antes, durante e até o último momento da decisão proferida pelo STF na Ação Direita de Inconstitucionalidade 4.815, percebe-se a sensibilidade do tema, em virtude da colisão entre o direito à liberdade de expressão e de informação e o direito à intimidade e vida privada.

A relatora da ADI, ministra Cármen Lúcia, realizou com excelente maestria a missão de encontrar o equilíbrio no exercício dos direitos fundamentais os quais se apresentavam conflitantes no ordenamento jurídico. Como apontado no voto do ministro Luís Roberto Barroso, houve observância à Teoria da Ponderação de Robert Alexy, a técnica jurídica mais adequada para construir-se argumentativamente a solução. Tudo isso, balizado na preservação da própria norma jurídica atacada na ADI, os artigos 20 e 21 do Código Civil.

Apesar de afastada a possibilidade de censura prévia, seja ela administrativa ou judicial, para a publicação de qualquer obra literária ou audiovisual, os ministros não excluíram a possibilidade que o biografado ou qualquer outra pessoa relatada na obra busquem, no Poder Judiciário, a reparação pelos danos causados à sua honra, à imagem, seja através de indenização ou por outros meios, tais como a retratação pública, a reedição da obra, ou outras formas admitidas pelo direito. Mas, em regra, a via judicial deverá ser usada somente a posteriori; qualquer intervenção judicial prévia será exceção, usada somente em casos excepcionalíssimos, teratológicos, extremos e justificados por um exame de proporcionalidade que considere a posição preferencial.

De forma inteligente, clara, didática e realizando uma análise histórica completa do ordenamento jurídico internacional e nacional, a relatora conseguiu dirimir o conflito dos direitos fundamentais aventados. O voto foi construído graças à imparcialidade e conhecimento que a sociedade espera de qualquer magistrado, decidindo pelo bem comum, analisando o todo.

A decisão do pretório excelso oportuniza à sociedade afastar os efeitos negativos da existência de autorização das obras biográficas, elencados pelo ministro Barroso em seu voto, os quais são: o desestímulo à produção de obras biográficas; o incentivo à produção de biografias “chapa-branca” ou autorizadas; o comprometimento da história e da memória nacional.

Na decisão histórica da Corte, seguida pela unanimidade dos ministros, fez mais uma vez a construção da democracia. Não se trata de mero ato do Poder Judiciário, um procedimento normal, um simples julgamento. A decisão proferida na ADI 4.815 em conjunto com outra decisão proferida há alguns anos atrás, na ADPF 130 que julgou inconstitucional a Lei de Imprensa, são etapas necessárias de consolidação do processo democrático. Tais julgados emitem um significativo recado à sociedade: estamos nos distanciando dos grilhões da ditadura sem, contudo, apagar da história a existência desse período.

Na obra A Liberdade, o inglês John Stuart Mill escreveu “Nunca podemos ter certeza de que a opinião que tentamos sufocar é falsa; e se tivéssemos, sufocá-la continuaria sendo um mal.” Entusiasta do direito à liberdade de expressão e do pensamento, a ideia do famoso filósofo deve ser abraçada por todos os defensores do Estado Democrático de Direito. Portanto, a decisão do STF na ADI 4.815 pode ser considerada uma vitória da democracia e do direito à liberdade de expressão.


REFERÊNCIAS 

BÍLIO, Eduardo. O conflito de direitos fundamentais nas biografias. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/28197>. Acesso em: 03 nov. 2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815 Distrito Federal. Voto da Relatora Ministra Cármen Lúcia. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4815relatora.pdf>. Acesso em: 01 out. 2015.

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Informações sobre o texto

Monografia apresentada à Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí como requisito para a obtenção do título de Especialista em Direito Privado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NORMANDO, Pablo Edirmando Santos. O direito à liberdade de expressão e as biografias não autorizadas na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4636, 11 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46505. Acesso em: 19 abr. 2024.