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Direito e questões de gênero: teorias feministas do Direito, Maria da Penha e feminicídio

Direito e questões de gênero: teorias feministas do Direito, Maria da Penha e feminicídio

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O feminismo não luta contra os homens e sim contra um sistema de dominação que privilegia homens. O feminismo não é o contrário de machismo. O nome disso é misandria.

O presente texto é a comunicação proferida na Palestra Direito e Questões de Gênero, na Semana Jurídica da Universidade Luterana do Brasil - Ji-Paraná/RO

O presente texto deriva de comunicação oral, dividindo-se em quatro blocos, a saber: 1o. O que é feminismo e por que precisamos dele?; 2o. Teorias Feministas do Direito; 3o. Lei Maria da Penha e Lei do Feminicídio; 4o Menos a concluir, mais a refletir e agir.

Avisos:

Usarei como definição de violência contra a mulher: “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, sem distinção de raça, classe, religião, idade ou qualquer outra condição, tanto no espaço público como no privado”.

como gênero entende-se um conceito analítico construído socialmente buscando compreender relações estabelecidas entre homens e mulheres e os papéis que cada um assume na sociedade e as relações de poder estabelecidas entre eles.


1. O que é feminismo e por que precisamos dele?

É impressionante como a palavra feminismo ainda assusta tanta gente. Curioso é que machismo não assusta. E o machismo mata, o feminismo não.

É comum escutar "não sou feminista, nem sou machista", "não sou feminista por que acho que todos somos iguais", "não sou feminista porque todos são tratados iguais". Não, não são não.

Mas vamos lá, dizer o que é o feminismo. Feminismo é liberdade. Feminismo é igualdade.

O feminismo não prega o ódio, não prega a dominação das mulheres sobre os homens, o feminismo quer a igualdade, e o fim da dominação dos homens sobre as mulheres, que sim, ela existe. Não estou acusando os homens daqui da sala, nem nenhum outro, estou falando de uma questão socialmente construída e que perdura e que mata. O machismo.

O feminismo não é o contrário de machismo. O nome disso é misandria. Não é porque se é feminista que se é misândrica, de modo algum. Ser feminista não é estar contra os homens. Repito, feminismo não é o contrário de machismo. Machismo é um sistema de dominação; feminismo é a luta por direitos iguais. Simples assim.

Mas vamos continuar mais um pouco pra desmistificar algumas coisas. É uma falha lógica, um preconceito, uma desinformação, enfim, é errado achar que pra ser a favor de uma coisa você tem que ser contra a outra, que pra ser a favor das mulheres tem que ser contra os homens. Não, o feminismo não luta contra os homens e sim contra um sistema de dominação que privilegia homens. É diferente lutar contra um gênero e lutar contra um sistema, compreendem?

Outras coisas legais de colocarmos aqui. Vocês todos estão me vendo agora, estou com as unhas feitas, maquiada e de salto alto. E sou feminista. Oras, mas pode? Claro que pode. Porque ser feminista não significa abrir mão de certas coisas que remeter à feminilidade, você mulher feminista pode usar batom e se depilar, sem deixar de ser feminista. Poderá também optar por não fazer isso. Aqui que está o ponto. O feminismo luta pela possibilidade de só usar maquiagem quando quiser, não porque um padrão de beleza te obriga a estar sempre linda todo dia.

O feminismo também não se relaciona a mostrar o corpo, sair as ruas com os seios de fora. Se quiser fazer, que faça, se não quiser, não faça. Isso não é condicionante de ser feminista. O que o feminismo quer é o direito da mulher andar com a roupa que quiser sem ser julgada por isso, sem ser assediada, sem ser estuprada. Quantas vezes já não ouvimos, 'ah ela foi estuprada', 'com aquela roupa, estava querendo, estava merecendo'. Não... Ninguém quer nem merece ser estuprada, e a roupa que usa não tem nada a ver.

O feminismo luta pelo fim da culpabilização da vítima, sobretudo em casos de estupro e assédio sexual. A culpa é do agressor. Sempre.

Outra coisa, feminismo não tem nada a ver com ser a favor do aborto, você pode ser ou não, tudo bem. O que o feminismo coloca em questão é que o fato do aborto ser criminalizado não muda o fato de que as mulheres abortam, e por fazer isso em clínicas clandestinas ou de outras formas, acabam essas mulheres morrendo ou tendo sequelas pelo resto da vida. Esse é o ponto sobre aborto. E sobre ter filhos e casamento, o feminismo não é contra não. Ele não quer acabar com as família, ele só quer que isso seja uma questão de escolha e não de imposição social. Sim, a mulher pode escolher ter filhos e abrir mão da carreira para cuidar deles, da casa, do marido. Isso não a faz menos feminista também, e o movimento feminista não é contra isso. Novamente o feminismo quer que isso seja uma escolha, com liberdade, e não uma imposição.

Pois bem, feminismo nada mais é que igualdade e liberdade. Não existe um check list do feminismo. Não existe um manual de instruções. Não é uma seita, nem tem dogmas, nem regras. Ele é um processo, ele é construído coletivamente e no contexto. Por isso que estamos construindo o nosso feminismo aqui em Ji-Paraná.

Aos homens presentes, vocês também não estão imunes ao machismo não. Essa coisa de que homem não chora, ou de que o homem deve ser o provedor e é vergonha ajudar nas tarefas domésticas. Isso, e muitos outros exemplos, é machismo incidindo em vocês também. E o feminismo também luta por vocês, por exemplo com a licença paternidade.

Bom, vou encerrar esse bloco, que era destinado a quebrar alguns *pré conceitos* sobre o feminismo, que nada mais é do que o direito à escolha e os direitos iguais entre os gêneros. Mesmos direitos, mesmas liberdades entre homens e mulheres.

Pra fechar, por que então que precisamos do feminismo? Pra que as mulheres aqui, as mulheres da vida de cada um de vocês, sobretudo as próximas gerações que virão, suas filhas, suas netas, precisamos hoje do feminismo para que elas não precisem mais. Para que elas tenham um mundo mais justo e mais igualitário, menos violente e mais livre pra que elas possam fazer suas escolhas e que elas não sofram com a diferença salarial ou com a violência, pelo simples fato de terem nascido mulheres.


2. TEORIAS FEMINISTAS DO DIREITO

Passemos ao segundo bloco dessa palestra. Que prefiro chamar de bate papo. Porque é isso que eu quero ao final, que possamos bater um papo sobre tudo isso.

Existe uma intensa produção teórica e empírica em torno da ligação entre feminismo e direito, os chamados Estudos Feministas Críticos do Direito, que questionam alguns cânones tradicionais. Nesse sentido, a questão mais ampla se dá em torno do direito:

1. Enquanto instrumento de promoção da igualdade e recurso efetivo das mulheres para a garantia dos seus direitos,

2. Como sistema de opressão, enquanto produtor e reprodutor, per se, das relações patriarcais, ou seja, contribuindo na perpetuação, legitimação e reprodução destas relações na sociedade.

As teorias feministas do direito emergem para analisar o fenômeno jurídico, historicamente reprodutor das discriminações perpetradas nos demais campos sociais. Porém, essas teorias ainda não se disseminaram pelo Brasil, apesar da constante violação dos direitos humanos e fundamentais das mulheres brasileiras.

Essas teorias são importantes percebermos criticamente a incidência das normas jurídicas sobre as mulheres brasileiras. Pois de nada adianta negar certos cânones do direito como reprodutores do sistema que o criou - o patriarcado seria uma negação epistemológica perigosa, tendo em vista a realidade social das mulheres brasileiras e a atual situação de vulnerabilidade, paulatinamente agravada por decisões judiciais orientadas conforme concepções discriminatórias e sexistas.

Pois bem, é necessário reivindicar a adoção de um aporte teórico capaz de perceber que o patriarcado não acontece apenas num instante isolado de abuso de lei ou de poder jurisdicional, mas que perpassa todo o Sistema de Justiça, pois ele próprio reflete a sociedade em que surge, e geralmente contribui para manutenção de determinado status quo que prejudica a mulher, pelo simples fato de ser mulher.

Essa reflexão é importante para pensarmos nessa interface do direito com questões de gênero, e não é uma questão somente do movimento feminista, todos ganhamos quando fazemos a aproximação da luta feminista ao estudo jurídico, pois o direito, entendido tanto como prática quanto como ciência, costuma se valer de uma pretensa neutralidade e objetividade, afirmando esses paradigmas como dogmas e utilizando-os como explicação para uma imunidade aos influxos sociais – inclusive os sexistas, aproximando a uma concepção quase metafisica, distante da realidade.

As teorias feministas do direito atuam neste distanciamento, de modo a reaproximar o direito do universo vivenciado pelas mulheres, elaborando análises críticas, que explicitam as conquistas feministas (e os desafios a enfrentar) nas áreas epistemológicas, utilizando-as como base para a análise jurídica bem como para a viabilização da situação de opressão e desigualdades sociais vivida pelas mulheres.

Essa abordagem demonstra como a discriminação baseada no gênero ainda hoje influencia leis, doutrinas, jurisprudência e decisões judiciais. Somado a esta, algumas das questões basilares em uma teoria feminista do direito são o patriarcalismo, a análise das regulamentações legais que reiteram e legitimam opressões sexistas, a repercussão do machismo que continua estruturando as instituições e perpassando-as: o sexismo institucional.

Vale lembrar que não é correto falar em uma única teoria feminista do direito, sendo mais apropriado empregar o plural, observando-se as várias subdivisões que surgiram dentro do próprio movimento feminista e da teoria do direito com essa perspectiva de gênero.

Falemos de gênero um pouco mais. “ninguém nasce mulher, mas se torna mulher” disse Simone de Beauvoir, e aí estão todos os elementos componentes do conceito de gênero. No brasil, o conceito se alastrou no fim dos anos oitenta, enquanto categoria analítica.

O conceito de gênero foi elaborado como uma categoria analítica e histórica que diz respeito às imagens que uma sociedade constrói a partir das diferenças sexuais presentes nos corpos, chegando às representações de gênero em torno do que á masculino e feminino, importante ressaltar que tal concepção recusa o essencialismo biológico, pois trabalha com construções sociais e possui caráter relacional.

Mas só adicionar a perspectiva de gênero ao Direito não é suficiente. É preciso emergir nas lutas e práticas feministas, sob o risco de estagnarmos em bela retórica da igualdade entre gênero, mas que não tem efeitos concretos na realidade social e na vida de milhares de mulheres, no brasil e no mundo.

Comecemos pelo mundo:

Bolívia, oitenta por cento das meninas que se prostituem fugiram de seus lares, onde sofriam violências

Argentina, estima-se que ocorrem seis mil estupros por ano.

Canadá, uma em cada quatro mulheres é ou será vítima de violência sexual

Estados Unidos, a cada ano um milhão de mulheres sofre violência em suas próprias casas e tão graves que precisam procurar socorro médico.

Europa, a violência de gênero faz vítimas 4 milhões de mulheres.

Brasil, 2,1 milhões de mulheres são espancadas por ano no país, o equivalente a 175 mil mulheres por mês, 5,8 mil/ a cada dia, 243 em cada hora, quatro por minuto, uma a cada 15 segundos, isso coloca o Brasil em sétimo lugar no ranking mundial de violência contra a mulher. (isso é vergonhoso, lamentável e preocupante, para piorar a situação, no ranking nacional, Rondônia ocupa o terceiro lugar em violência contra a mulher, com dados maiores do que o contexto nacional).

No ano passado, 50.320 casos de estupro foram registrados no Brasil. São 25 casos para cada grupo de 100 mil habitantes. E ao menos 4.580 mulheres morreram de forma violenta no país.

Agora vamos comparar o Brasil e o estado de Rondônia:

Estupros (números absolutos): 50.320 BRASIL / 833 RO

Estupros (taxa por 100 mil habitantes): 25,0 BRASIL – 48,1 RO

Tentativa de estupro (números absolutos): 5.931 BRASIL – 118 RO

Tentativa de estupro (taxa por 100 mil habitantes): 2,9 BRASIL - 6,8 RO

Mortes de mulheres por agressão (números absolutos): 4.580 BRASIL – 59 RO

Mortes de mulheres por agressão (% em relação ao total de mortes por agressão no estado): 8,4 BRASIL - 10,3 RO

Pois é, ultrapassamos os índices nacionais. Para vocês verem como precisamos discutir certas questões aqui no nosso estado. Para vocês verem como estamos expostos a este tipo de violência aqui, ninguém está imune, nenhuma de nós aqui, nem suas irmãs, mães, filhas, mulheres.

Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014, e dão uma ideia do tamanho do problema no Brasil. Dentre os estados, Roraima é o que tem a maior taxa de estupros – são 66,4 casos por 100 mil habitantes. Depois vêm Mato Grosso do Sul, com taxa de 48,7, e Rondônia, com 48,1, é essa nossa realidade hoje. Aliás, é pior que isso, porque se considerarmos que um percentual pequeno de estupros e tentativas são denunciados, chegam ao público de fato a minoria dos casos, a situação é ainda pior do que isso, acreditem.

É nesse cenário estadual e nacional de violências de gênero que hoje estamos. Nem vou entrar em outras questões aqui, mas indico pra reflexão: o número absurdo de abortos clandestinos realizados no país, os quais são feitos em condições precárias que acabam matando ou deixando com sequelas mulheres que não tiveram outra opção para interromper uma gravidez não desejada, o número de mortes maternas evitáveis, a violência obstétrica, as taxas de feminização da pobreza e da AIDS e de tantos outros dados estatístico que corroboram a percepção da opressão e dominação e violência que ainda incide nas vidas femininas, pelo simples fato de serem mulheres.

Sendo que no Brasil um terço das famílias são chefiadas por mulheres. Que enfrentam as diversas formas de violência, física e simbólica, a vulnerabilidade pelo gênero, a violência doméstica, desigualdade de gênero no mercado de trabalho (Mulheres recebem até 30% a menos por atividades desempenhadas em cargos iguais aos homens. Mulheres negras têm a pior média de renda mensal: R$558), pouca representatividade da mulher no direito e na política.


3. LEI MARIA DA PENHA

Agora a Lei 11.340, a Lei Maria da Penha. Pois bem, ela cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Maria da Penha, foi vítima de violência doméstica por parte de seu marido. Ele tentou mata-la por algumas vezes, tendo ela ficado paraplégica em uma das tentativas. A denúncia foi oferecida em 1983. Em 1991 o réu foi condenado a oito anos de prisão porém recorreu em liberdade e teve o julgamento anulado. Novo julgamento foi realizado em 1996, ele foi condenado a pena de dez anos e alguns meses. Novamente, ele recorreu em liberdade e somente dezenove anos após o crime foi preso por dois anos.

Diante da inércia e do descaso da Justiça brasileira, o Centro pela Justiça e Direito Internacional e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher formalizaram denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O Brasil foi condenado internacionalmente em 2001 por negligência e omissão em relação à violência doméstica.

A lei Maria da Penha emerge, portanto, num contexto de exigências internacionais, com a publicidade do caso de Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de violência doméstica por mais de 20 anos e que, após denunciar o marido, precisou esperar quase mais 20 para vê-lo punido pela justiça brasileira. Na condenação por omissão, o Brasil foi 'condenado' com a necessidade de criação de uma lei adequada a este tipo de violência.

Tudo isso deveria ter servido de exemplo para a Justiça brasileira, só que não. No ano seguinte à lei, o presidente da República teve que ajuizar no Supremo Tribunal Federal uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 19) para pedir a confirmação da validade da Lei Maria da Penha, dada a proliferação de decisões tomadas por diversos segmentos da Justiça brasileira contestando a validade da lei Maria da Penha. Ainda hoje magistrados a ignoram, indo pela lesão corporal, que não leva em conta a questão de gênero que perpassa a violência doméstica.

Voltando à Lei Maria da Penha, ela atribui maior rigor a crimes cometidos contra a mulher. Não só a violência física da agressão tratada como crime, o que já era garantido pelo Código Penal, como o conceito era estendido a qualquer tipo de conduta que produzisse danos à integridade ou saúde corporal. Também foram incluídos nessa lei, outros tipos de violência: a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral. Os agressores poderiam agora ser presos em flagrante, ter a prisão preventiva decretada, ser impossibilitados de cumprir pena alternativa, ser removidos do domicílio e proibidos de se aproximarem da mulher agredida.

Esta Lei representa um significativo avanço. Entretanto, tal avanço parece ter se dado apenas no campo conceitual, necessitando ser efetivado na prática cotidiana, promovendo a mudança cultural de mentalidade onde o machismo ainda vigora.

Segundo dados do IPEA 2013 ao avaliar o impacto da Lei Maria da Penha sobre a mortalidade de mulheres por agressões, por meio de estudo de séries temporais, constatou-se que: 'Não houve impacto, ou seja, não houve redução das taxas anuais de mortalidade, comparando-se os períodos antes e depois da vigência da Lei. As taxas de mortalidade por 100 mil mulheres foram 5,28 no período 2001-2006 (antes) e 5,22 em 2007-2011 (depois). Observou-se sutil decréscimo da taxa no ano 2007, imediatamente após a vigência da Lei e nos últimos anos, o retorno desses valores aos patamares registrados no início do período (2013).

Uma das possibilidades de não ter tido impacto é a de que o grau de implantação das medidas previstas pela lei foi insuficiente – tanto pela deficiência do sistema quanto pela qualidade do serviço prestado.

Entre as medidas previstas na legislação estão a proteção de urgência, a suspensão da posse ou a restrição de porte de arma, o afastamento do lar e a proibição de aproximação da vítima. Está previsto ainda o encaminhamento da mulher a programas de proteção e a recondução ao lar depois do afastamento do agressor, mas isso ocorre hoje? Se uma mulher chegar agora na delegacia, espancada pelo seu companheiro, o que ela vai encontrar? Ou se ela ligar 190 pedindo auxílio, o que ela terá?

A Lei Maria da Penha é um avanço, sim, em muitos pontos. É mesmo admissível, em sua linha penal, como uma tática dentro da estratégia geral e política do Feminismo. Avanço que é simbólico, discursivo, representativo de uma visibilidade da realidade que permanecia “entre quatro paredes”. Mas não se pode ter confiança cega no sistema penal, é preciso a crítica (interna e externa) ao Direito e seus atores.

Lembrando que a Lei Maria da Penha não é apenas, em si, uma solução penal. Contém uma série de outras espécies de medidas que não possuem caráter penal; mas que, por razões que estão para além do machismo — mas que também o incluem — acabam por não ter visibilidade, uso, incentivo, aplicação. Razões que passam por uma cultura *punitivista*, que aposta e confia nessa solução como saída pra conflitos sociais dos mais simples aos mais complexos — aqui incluído o fenômeno da violência de gênero em ambiente doméstico.

Um dos maiores ganhos da Lei Maria da Penha foi, sem dúvida, despertar a sociedade para a ocorrência da violência intrafamiliar da qual ela se tornava cúmplice pelo silêncio. É o reconhecimento das brigas de família que ultrapassaram o limite dos meros conflitos, passaram a ser entendido como questão de saúde e segurança públicas.


4. LEI DO FEMINICIDIO

Chegamos à lei nº 13.104/2015, Lei do Feminicídio, foi comemorada por muitos setores sociais como um avanço na luta pela violência contra a mulher. A partir de 9 de março de 2015, crime passa a ser tipificado como homicídio qualificado. A pena, que variava de 6 a 20 anos, passa a ser de 12 a 30 anos. Além disso, passa a ser considerado crime hediondo, o que impede os acusados de serem libertados mediante pagamento de fiança. O feminicídio: quando crime for praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.

O § 2º-A foi acrescentado como norma explicativa do termo "razões da condição de sexo feminino", esclarecendo que ocorrerá em duas hipóteses: a) violência doméstica e familiar; b) menosprezo ou discriminação à condição de mulher; A lei acrescentou ainda o § 7º ao art. 121 do Código Penal estabelecendo causas de aumento de pena para o crime de feminicídio. A pena será aumentada de 1/3 até a metade se for praticado: a) durante a gravidez ou nos 3 meses posteriores ao parto; b) contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60 anos ou com deficiência; c) na presença de ascendente ou descendente da vítima.

Por fim, a lei alterou o art. 1o. Da Lei de crimes hediondos para incluir a alteração, deixando claro que o feminicídio é nova modalidade de homicídio qualificado, entrando, portanto, no rol dos crimes hediondos.

Vamos à justificativa da lei: uma mulher morre a cada hora no Brasil. Quase metade desses homicídios são dolosos praticados em violência doméstica ou familiar através do uso de armas de fogo. 34% são por instrumentos perfuro-cortantes, 7% por asfixia decorrente de estrangulamento. De acordo com dados do IPEA, nos últimos anos pelo menos 50 mil mulheres foram mortas no Brasil, sendo os assassinatos enquadrados como feminicídio. O estudo ainda aponta que 20 mulheres são assassinadas por dia no país, devido a violência por gênero.

Portanto, a justificativa para a necessidade de uma lei especifica para os crimes relacionados ao gênero feminino, está no fato de 41% dos assassinatos de mulheres nos últimos anos serem cometidos dentro da própria casa das vítimas, muitas vezes por companheiros ou ex-companheiros.

Este crime é 'justificado' socioculturalmente por uma história de dominação da mulher pelo homem e estimulado pela impunidade e indiferença do Estado. Incluir essa tipificação significa colocar luz sobre cifras assustadoras: houve um aumento de 2,3 para 4,6 assassinatos por 100 mil mulheres no país entre 1980 e 2010, o que colocou o Brasil como 7o no ranking mundial de assassinatos de mulheres. Entre 2000 e 2010, 7 mil mulheres foram mortas, 41% delas em suas próprias casas, por companheiros ou ex-companheiros, grande parte na frente dos filhos.

Nomear essa violência como feminicídio é, simbolicamente, fundamental para demonstrar a origem e as estruturas que estão por trás de todos esses números. A desigualdade de gênero existe em nossa sociedade e coloca as mulheres em uma condição hierarquicamente inferior aos homens, materializando-se por meio de estupros e assassinatos, bofetadas e espancamentos, humilhações e palavras cruéis.

Agora, se do ponto de vista jurídico, a lei do feminicídio não traz nenhuma novidade, é o que dizem por aí, pois os homicídios praticados em razão do gênero cabem nas circunstâncias qualificadoras que já existem no Código Penal, e todo homicídio qualificado é crime hediondo. Penso que o problema é histórico-político, ou ainda, a depender do referencial de análise, o problema se encontra no campo simbólico. Se, de um lado, a lei do feminicídio não traz novidade jurídica, de outro, ela serve para reafirmar a resposta penal aos nossos problemas éticos, históricos, culturais, como o machismo.


5. MENOS A CONCLUIR, MAIS A PENSAR E AGIR.

Chegamos às conclusões, que nada concluem, e sim apontam que temos muito a refletir e agir.

É importante ainda destacar que a lei penal, tão canônica, sempre exige sacrifícios em troca da prometida segurança. Sacrifícios das próprias mulheres. Não podemos deixar de pensar nas mulheres que passam rotineiramente pelos procedimentos de revista vexatória quando vão visitar seus parentes presos, na frente dos filhos, inclusive, expostas a violências simbólicas na revista, e pela sociedade por ser a mulher do preso, a mãe do preso, a irmão do preso. A aposta no encarceramento, que está em curva ascendente há décadas, reverbera sobre essas mulheres, e quanto mais presos, mais mulheres passando por revista vexatória.

Não só por isso temos que refletir sobre a aposta em uma lei penal, mesmo sob o argumento de que é preciso dar visibilidade à violência contra a mulher. Desde o plano mais imediato até os limites do sistema, milhares de mulheres sofrem com o recrudescimento das punições.

Por todos esses motivos, direitos e políticas que atendam às mulheres e aos agressores se fazem necessárias, mas serão inócuas se limitarem-se à punição dos agressores, pois mais rigor da justiça deve ser acompanhado de uma mudança de mentalidades. Não é tarefa fácil, mas está sendo feita pela luta feminista ao longo dos anos, caso contrário, nem aqui estaria eu hoje falando a vocês, nem tantas mulheres estariam aí na plateia me ouvindo. Caso contrário, sequer teríamos este espaço de reflexão dentro da universidade.

Gostaria de encerrar aqui com uma posição pessoal, compartilhada por militantes do movimento feminista, mas que não se trata de algo uníssono. Essa ideia de que a existência de uma lei penal, um crime e uma pena como resposta, possa prevenir a prática de novos crimes, por si só, é ilusória. É ilusão acreditar que uma previsão normativa possa, por si só, frear comportamentos que se fundam em conformações sociais e culturais muito mais complexas do que um tipo penal é capaz de dar conta.

Se o Direito Penal não dá conta de fenômenos criminais menos complexos, como esperar que resolvam a violência de gênero? Ainda com todo este aparato, Lei Maria da Penha, lei do Feminicídio, casos ainda ao chegar nos tribunais esbarram na dificuldade dos atores do sistema em: lidar e reconhecer o próprio machismo; lidar com uma demanda que não se encaixa no código: denúncia > punição/não punição; lidar com uma demanda em que a solução tratada dentro de uma estrutura jurídico-processual baseada no monopólio estatal da pretensão acusatória pode inviabilizar outras formas de solução; lidar com um caso criminal que, muitas vezes, não se consubstancia em um único tipo penal ou que se apresenta como um contínuo de ocorrências no tempo que, sozinhas, não possuem tipicidade, mas que em conjunto são a crônica da morte anunciada da violência de gênero; some aí todas as críticas que se possa fazer ao Direito, seus atores e seu discurso hermético, distanciado da realidade ou dos discursos produzidos em outros campos.

Portanto, precisamos de mais que leis. Precisamos sim de leis, não estou aqui desqualificando-as. Estou dizendo que precisamos mais do que isso. Porque o fenômeno é mais complexo, está enraizado nas estruturas da sociedade. Porque a definição de políticas públicas e leis para mulheres não é mero programa de governo, é política de estado e imposição internacional. E não é concessão, assim como não é a maioria de outras conquistas tidas como benefícios. É resultado de luta, são direitos.

Dentro do Direito, com letra maiúscula, a Lei é certamente um avanço. Porém, a solução penal para um conflito, muitas vezes, não é o melhor caminho. O fenômeno da violência é complexo e por isso necessita ser tratado não apenas na perspectiva repressiva e punitiva, onde muitas vezes a abordagem maniqueísta que traz é muito simplista para compreender e abordar de maneira eficiente o fenômeno. É na prevenção da violência; no trabalho de conscientização via educação doméstica, escolar e social; na efetiva afirmação dos direitos e deveres, é pelo empoderamento das mulheres.

A violência contra a mulher é um problema específico e estrutural, decorrente dessa sociedade pautada em valores machistas. Por isso, a aposta no Direito Penal sozinho é cega. Porque a punição sozinha não resolve o problema. E como resolver, se alguém quer perguntar. Lembro que aqui são mais perguntas e pauta de ações do que conclusões, mas a resposta para uma pergunta como essa vai muito além da questão da violência de gênero ou mesmo da impunidade. Muito mais a estrutura social e a ausência de significativas alterações nessa estrutura ou sistema que fazem seguir essa realidade.

Por razões como estas que insistimos tanto na importância de movimentos como o feminista. Sua luta pela mudança das mentalidades e da realidade social é justamente a luta pela mudança do sistema social. E é essa espécie de modificação que pode levar a redução ou alteração dos registros de crimes e violência, essa modificação passa por nós, passa pelos direitos, passa por aqueles que o operam.

Há muito que caminhar. Os passos serão lentos ou largos a depender de quem os dá, e esses passos precisam ser dados por todos nós. Sobretudo por vocês aqui, considerando que tenho uma plateia de futuros profissionais do Direito. Não se esqueçam que o machismo existe, que mulheres sofrem e morrem por isso, que uma Lei não mudará um comportamento entranhado na sociedade, mas as atitudes de vocês sim, por menor que seja ela. O trabalho é de formiguinha para mudar a realidade, seja no exercício da profissão, seja no dia a dia, seja em qualquer circunstância. É preciso agir para mudar esse quadro.


Autor

  • Rebeca Campos Ferreira

    Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), Graduanda em Direito, Bacharel em Ciências Sociais (USP), Pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito (USP), Professora voluntária da UNEAFRO Brasil e Perita em Antropologia do Ministério Público Federal (MPF).

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Rebeca Campos. Direito e questões de gênero: teorias feministas do Direito, Maria da Penha e feminicídio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5379, 24 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48543. Acesso em: 23 abr. 2024.