Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/51097
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Os autos de resistência em Alagoas e a Resolução Conjunta 02/2015

(in)eficácia para a redução dos homicídios decorridos da intervenção policial?

Os autos de resistência em Alagoas e a Resolução Conjunta 02/2015: (in)eficácia para a redução dos homicídios decorridos da intervenção policial?

Publicado em . Elaborado em .

A redução dos autos de resistência ou sua própria extinção não irá ocorrer com uma simples imposição normativa, mas com a conscientização da própria polícia.

RESUMO: Este artigo desenvolve uma análise sobre o crescente número de homicídios maquiados como “autos de resistência” em Alagoas, além da (in)eficácia da alteração proposta pelo Conselho Superior de Polícia do Departamento de Polícia Federal, que “dispõe sobre os procedimentos internos a serem adotados pelas polícias judiciárias em face de ocorrências em que haja resultado lesão corporal ou morte decorrentes de oposição à intervenção policial”. A Resolução Conjunta alterou em definitivo as designações genéricas, como autos de resistência e resistência seguida de morte, definindo-as em “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”. Para fazer uma análise sobre o tema, buscou-se analisar o aspecto jurídico-doutrinário da segurança pública sob a ótica da Constituição Federal da República de 1988, além de compreender o contexto histórico e o significado jurídico dos “autos de resistência” e sua exclusão nos índices de homicídio oficial, para fins de satisfação Governamental em Alagoas. Tem-se também como interesse analisar as vítimas dos “autos de resistência”, ou melhor, as vítimas do homicídio e em que meio social vivem. Por fim, debateu-se a eficácia da resolução conjunta n° 02/2015 e seus efeitos jurídicos acerca da obrigatoriedade da instauração de inquérito policial no âmbito do trabalho investigativo da polícia judiciária estadual e/ou federal.

PALAVRAS-CHAVE: Autos de resistência. Resistência seguida de morte. Homicídio decorrente de oposição à intervenção policial. Inquérito policial.


INTRODUÇÃO

No dia 04 de janeiro de 2016, no Diário Oficial da União, foi publicada a Resolução Conjunta n° 2, de 13 de outubro de 2015, alterando a nomenclatura de “autos de resistência” ou “resistência seguida de morte” e passando a serem definidas como “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”. Pretende-se expor, no presente artigo, se a alteração proposta pelo Conselho Superior de Polícia (composta pelos chefes da polícia federal e das polícias civis) repercute de forma direta e positiva na condução dos inquéritos policiais. Infelizmente há inserido no mundo policial um claro corporativismo, ou seja, por se tratar de ação policial, procura as demais instituições (policia militar, polícia civil etc.) legitimar algumas ações, como por exemplo, o crime homicídio praticado em eventual ação policial. Diante da criação da resolução acima referida, torna-se necessário analisar se as ações policiais que culminaram com a lesão corporal ou no resultado morte de quaisquer indivíduos resultarão na obrigatoriedade de instauração de inquérito policial ou se a Resolução Conjunta possui conteúdo tão somente “cosmético” e ineficaz.

Nessa perspectiva o interesse maior é analisar o crescimento dos autos de resistência ou da resistência seguida de morte no Estado de Alagoas e suas possíveis causas, a fim de avaliar criticamente a atual política de segurança pública no combate à criminalidade.

O artigo está dividido em 03 (três) sessões. Na primeira, busca-se o conceito de segurança pública, discorrendo sobre sua definição jurídica e doutrinária, além da concepção de segurança pública na Constituição Federal de 1988. A análise da política de segurança pública do estado de Alagoas também se fez necessária, a fim de tentar avistar suas peculiaridades.

Na segunda sessão, foi discutida a investigação preliminar e a Polícia Judiciária, a participação do Ministério Público durante as investigações policiais e o grau de atuação do Poder Judiciário.

Na terceira sessão, preocupou-se em atingir o elemento cerne, abordando a resolução conjunta n° 02/2015 e sua eficácia no âmbito prático-policial. Não poderia deixar de ser tratado o significado da famigerada resistência seguida de morte ou autos de resistência nos casos de homicídio perpetrados por membros da segurança pública em Alagoas, bem como apresentar os números apresentados pela Secretaria de Estado da Segurança Pública do Estado de Alagoas nos casos de homicídios em que, sequer, é instaurado inquérito por se tratar de crime cometido por um operador da segurança pública. Por fim, apresentam-se as conclusões finais do presente artigo.


1. SEGURANÇA PÚBLICA: ASPECTO JURÍDICO-DOUTRINÁRIO

Interessante abordar sobre segurança pública na visão doutrinária dos renomados juristas no Brasil e sua definição legal imposta pela própria Constituição Federal de 1988. Essa abordagem inicial se torna importante para entender qual a finalidade precípua dos profissionais que integram a segurança pública no combate a criminalidade e seu grau de legitimidade de atuação.

1.1. Definição etimológica de segurança pública

A definição da palavra segurança advém, na sua origem, do latim securus e significa “sem preocupações” ou “sem temor”. A sua etimologia tem como acepção “ocupar-se de si mesmo”, a junção se+cura[1]. A segurança é o “ato ou efeito de segurar”[2].

Já a palavra público(a), também do latim publicus, significa “relativo ao povo”. Neste contexto, temos que segurança pública é o ato ou efeito de garantir segurança a coletividade, evitando e/ou inibindo, consequentemente, qualquer ato contrário ao ordenamento jurídico.

1.2. Segurança pública: concepção na Constituição Federal de 1988 e conceito jurídico-doutrinário

Os constitucionalistas pouco definem segurança pública, mormente o conceito de “ordem pública” e “incolumidade das pessoas e patrimônio” que se encontram insertos no caput do art. 144 da Carta Magna de 1988. A Constituição Federal de 1988 leciona que a “segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio [...]” (grifei).

Essa é a definição pura e simples de segurança pública na Constituição Federal de 1988. Sob o prisma doutrinário temos que:

A segurança pública visa oportunizar a convivência pacífica e harmoniosa dos indivíduos, inafastável para construção de uma comunidade estruturada na serenidade e na paz entre seus componentes. A exclusão da violência nas relações sociais e consequente alcance da tranquilidade cotidiana nos espaços comuns e socialmente partilhados, bem como nos lugares privados, é atribuição do Estado, que tomou pra si o monopólio do uso da força tornando-se, pois, o guardião da ordem pública.[3]

Nesse contexto José Afonso da Silva Filho parece ser mais conciso afirmando que segurança pública “é a manutenção da ordem pública interna”[4], preocupando-se apenas em conceituar ordem pública. Todavia conclui de forma coesa que:

[...] a segurança pública não é só repressão e não é problema apenas de polícia, pois a Constituição, ao estabelecer que a segurança é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos (art. 144), acolheu a concepção do I Ciclo de Estudos sobre Segurança, segundo a qual é preciso que a questão da segurança seja discutida e assumida como tarefa e responsabilidade permanente de todos, Estado e população.[5]

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre segurança pública, inclusive informando que o Poder Judiciário pode intervir, determinando sua implementação no Estado, quando este for inadimplente. Vejamos:

O direito a segurança é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo. (RE 559.646-AgR, rel. min. Ellen Gracie, julgamento em 7-6-2011, Segunda Turma, DJE de 24-6-2011.) No mesmo sentido: ARE 654.823-AgR, rel. min. Dias Toffoli, julgamento em 12-11-2013, Primeira Turma, DJE de 5-12-2013.

Por fim, não tornando o debate longo, a concepção jurídico-doutrinário acerca de segurança pública chega a um “acordo” podendo ser definida como dever do ESTADO, por meios dos órgãos da segurança pública (polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícia civil, polícia militar e bombeiro militar), e RESPONSABILIDADE de todos garantir e assegurar a ordem pública – a pacífica convivência social, abstendo-se a sociedade de possíveis ameaças – e a incolumidade física e do patrimônio que é a preservação da vida e dos bens.

1.3. A política de segurança aplicada no Estado de Alagoas no combate ao homicídio

Aos olhos da sociedade, parece eficaz a metodologia de segurança pública exercida no Estado de Alagoas. A metodologia atual é de integração, ou seja, as policias Civil e Militar encontram-se em “perfeita” harmonia, agindo em conjunto nas diversas operações convocadas pelo atual Secretário de Estado da Segurança Pública. Nos casos de homicídios, quando indagados (os membros da segurança pública) acerca da morosidade e da impunidade e a falta de solução destes a resposta é uníssona: carência de efetivo.

O Governo do Estado de Alagoas e a Secretaria de Estado da Segurança Pública vêem com “bons olhos” a redução da criminalidade no ano de 2015. Segundo o Boletim Anual de Estatística Criminal da Secretaria de Estado da Segurança Pública, ocorreram 2.053 homicídios em 2014, contra 1.638 homicídios em 2015 no Estado de Alagoas, o que equivale a uma redução de 20,8%[6] em comparação ao ano anterior.

Em que pese à comemoração, as autoridades de segurança pública (e isso envolve o Comandante Geral da Polícia Militar, o Delegado Geral de Polícia Civil e o Secretário de Estado da Segurança Pública) esquecem um fator preponderante e negativo nessa redução, que é o elevado índice de homicídios cometidos por policiais civis e militares. A soma dos números de “autos de resistência” ou “resistência seguida de morte” de 2012 e 2014, segundo dados da própria SSP/AL, não chegam à metade dos 102 homicídios (autos de resistência) ocorridos em 2015; a situação é alarmante e precisa ser debatida não só entre os órgãos que compõem a Segurança Pública como um todo, mas, sobretudo, com a sociedade civil organizada.

Infelizmente, caem no esquecimento os homicídios dolosos cometidos por policiais em desfavor dos considerados pela sociedade como classe menos favorecida. São os que não possuem visibilidade, pois quase todos são pobres, negros e jovens que não têm vez nem voz, e nessa situação desfavorável, tampouco são entendidas por não possuírem força simbólica. Segundo Bourdieu:

A estruturação da relação de produção linguística depende da relação de força simbólica entre os dois locutores, isto é, da importância de seu capital de autoridade (que não é redutível ao capital propriamente linguístico): a competência é também portanto capacidade de se fazer escutar. A língua não é somente um instrumento de comunicação ou mesmo de conhecimento, mas um instrumento de poder.[7]

Nesse contexto, o controle de pobreza no Brasil se dá pela força (e não pelo diálogo ou por políticas públicas efetivas). Já o combate da criminalidade se dá exclusivamente pela repressão e pelo abuso.

[...] no Brasil há uma tradição de o Estado controlar a pobreza pela força. Esta tradição foi herdada da escravidão colonial, dos conflitos agrários e reforçada por duas décadas de ditadura militar.  Tais heranças permanecem orientando as ações das instituições estatais e conformam uma mentalidade coletiva, ou uma representação de mundo sobre a qual somos formados e ao mesmo tempo formadores e que incorporou como aceitável o controle da pobreza pela força. Esse processo pode ser interpretado como de violência simbólica.[8]

Essa violência simbólica define Bourdieu como “suave, insensível, invisível as suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento”.[9]

A violência encontra-se em toda evidência no Estado de Alagoas e principalmente nas favelas onde habita parcela da sociedade ostentada como excluída pelo poder público. Os números citados abaixo não negam à supracitada afirmativa.

Violência esta que é considerada como uma tentativa da polícia adestrar (poder disciplinar) os supostos criminosos e repreender qualquer atitude contrária à legalidade, à moral e aos bons costumes.

O poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adrestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar anda mais e melhor. [...] O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame.[10] (grifei)

Conforme relatório apresentado por diversos meios de pesquisa, como a Anistia Internacional e o Anuário Brasileiro de Segurança Pública[11] foram, entre 2010 e 2013, na cidade do Rio de Janeiro, 1.275 vítimas de homicídio decorrente de intervenção policial, 79% eram negros e 75% tinham entre 15 e 29 anos.[12]

Os números são inquestionáveis, frutos de pesquisas sérias, cujo objetivo é demonstrar a necessidade de implantação de uma política de segurança pública pautada na articulação enérgica dos operadores de segurança e na garantia de direitos baseada no respeito e não na violência.

Por derradeiro, não se pode atribuir a culpa tão somente a carência de efetivo ou a atual legislação penal – devemos buscar a modernização gerencial das instituições responsáveis pela segurança pública no país, e isso vai desde a formação do policial até a própria estrutura física e tecnológica das instituições de segurança. A redução do número de homicídios e da criminalidade em geral depende dessa estruturação.


2. A FUNÇÃO DA POLÍCIA JUDICIÁRIANO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E O PAPEL DO JUIZ NOS INQUÉRITOS POLICIAIS

Como já visto, a segurança pública tem como conceito ou finalidade buscar a manutenção da ordem pública e preservar a vida e o patrimônio daqueles que integram a sociedade – este é o conceito exposto na Constituição Federal de 1988.

Fiel a esse ditame, o art. 144, §4º da Constituição Federal, expõe que às policias civis incumbem “as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”. Além disso, algumas características encontram-se inseridas no âmbito de competência da polícia judiciária, dentre elas, a sua atuação discricionária na abertura de procedimento policial e sua autonomia na condução das investigações criminais.

2.1. Investigação preliminar e Polícia Judiciária: autonomia e discricionariedade

Investigar significa buscar a verdade real sobre determinado fato. A investigação preliminar tem como função investigar supostos fatos antes mesmo da abertura do apropriado procedimento, a fim de se evitar e induzir em erro o próprio Judiciário[1]. Em outras palavras, essa investigação tem como “função de filtro processual contra acusações infundadas.”[2]

A autonomia da polícia judiciária é exercida pelo delegado de polícia e significa agir e enxergar, dentro do seu critério de subjetividade, a melhor forma de conduzir os seus procedimentos administrativos policiais.

Aliada à autonomia, o delegado de polícia tem ao seu favor o princípio da discricionariedade, ou seja, compete a ele a melhor instrução do procedimento para que, ao final, se busque a autoria e a materialidade do delito. Numa visão doutrinária clássica do direito penal temos que a discricionariedade é “a prática de atos administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo.”[3]

Essa autonomia e discricionariedade no âmbito da polícia é perigosa. Segundo Monet (2001, p. 27) há uma questão sociológica aplicada ao caso que é:

Até que ponto as formas de organização policial facilitam, ou ao contrário conseguem limitar, a inevitável propensão dos corpos policiais - e de todos os corpos de profissionais incumbidos de uma função social importante - a se autonomizar, a tentar se libertar de todos os controles que tentam enquadrá-los, para escapar à dupla pressão, a do poder político e a das expectativas sociais, que tende a instrumentalizá-los?

Fica perceptível o poder que o delegado de polícia possui no âmbito de suas atribuições na segurança pública, o qual se inclui, na classe dita dominante, sua hierarquia perante os dominados que passam por sua tutela. A polícia federal atualmente encontra-se neste ápice de discricionariedade e autonomia face às investigações da “Operação Lava Jato”[4] e sua repercussão na mídia. Aos leigos do sistema criminal, tudo parece estar sendo conduzido para o bem e de forma concernente à busca da moralidade no país.

Esse poder constituído e concedido ao delegado de polícia pelo Estado acaba por influenciar e fazer acreditar que a polícia (no contexto geral) vem atuando de forma legal, quando na realidade fática e social o que ocorre são arbitrariedades, como é o caso que se irá discutir sobre os “autos de resistência”. O poder de discricionariedade e autonomia do delegado de polícia resulta na faculdade de não instaurar o inquérito policial, pois lhe é aparentemente garantida essa possibilidade.

Esse poder invisível é exercido pela força da violência simbólica que acaba por validar, através dos discursos da mídia, do próprio estado etc., transformando ou resultando a visão de mundo em novas formas de fazer ver e fazer crer.

O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. [...] O poder simbólico, poder subordinado, é uma forma transformada, quer dizer, irreconhecível, transfigurada e legitimada, das outras formas de poder [...][5]

Neste contexto podemos dizer que para Bourdieu o poder simbólico é um elemento fundamental dentro de nossa sociedade, no que diz respeito aos elementos de dominação e conservação do status quo vigente.

As reiteradas medidas e decisões – algumas arbitrárias e sem fundamentação lógica e jurídica – aplicadas por policiais, juízes e promotores e publicadas na mídia acabam por incentivar a população a acreditar que tudo está sendo contido de forma legal. O que vem acontecendo é que o “aumento da complexidade do Estado e o surgimento de novos atores no jogo dos interesses jurídicos vão desencadear a perda de legitimidade das instituições tradicionais e a articulação de novos canais de consenso social”[6]. Essa movimentação constante e a inserção de novos atores acabam por exigir dos juízes decisões voltadas ao clamor social. Esse assunto já vem sendo dialogado pelo professor e jurista Campilongo desde 1994 quando publicou artigo sobre “O Judiciário e a democracia no Brasil”.

A lei transforma-se em instrumento relativamente impotente no momento em que a crise dos mecanismos de articulação do consenso – do Legislativo ao Judiciário, passando também pelo Executivo – coloca em discussão todos os valores sociais. [...] O poder nunca foi tão exposto ao crivo da mídia e da população em geral como nos tempos atuais. É natural que a magistratura, antes tão ensimesmada, sinta o embaraçoso choque do novo. A expectativa é de que, na ânsia de fazer o Judiciário um bastião não da forma da lei, mas sim do conteúdo do direito, os magistrados não se arvorem na condição de novos demiurgos das aspirações nacionais. Ampliar os poderes do juiz (o que parece ser uma tendência mundial) não significa transformá-lo numa figura arbitrária.[7] (grifei)

Não se pretende questionar a atuação do Juiz que em suas decisões utiliza fundamentações sociológicas e filosóficas, mas sim da preocupação das decisões arbitrárias em razão da interferência da mídia e da população. Por isso já se ponderava que:

[...] o cidadão depositou no Judiciário a confiança que perdeu nos outros poderes. E os magistrados dão guarida às pretensões dos que buscam os tribunais. Esse jogo que garante momentos de recíproca legitimação aos envolvidos possui limites evidentes. Respostas positivas a demandas cada vez mais exigentes acabariam constrangendo os demandados à impossibilidade de cumprimento das sentenças, o que ofende a racionalidade do direito.[8]

Essa interferência midiática aportou na polícia há tempos. Os inquéritos policiais são instaurados com base na subjetividade da autoridade policial, e, em alguns casos, só ocorre por imposição midiática e do Ministério Público que, pressionado, se vê obrigado a requisitar a sua instauração. A polícia judiciária do Estado de Alagoas, por exemplo, até 2014, instaurou poucos inquéritos policiais nos casos de homicídios praticados por policiais, utilizando-se arbitrariamente tanto dos princípios da discricionariedade e autonomia, como do critério de subjetividade e avaliação do caso concreto, decidindo (atribuição que não compete ao delegado de polícia, mas sim do Estado/Juiz) pela não abertura por se tratar de suposta excludente de ilicitude.

2.2. A participação do Ministério Público durante as investigações policiais e o grau de atuação do Poder Judiciário

O Ministério Público do Estado de Alagoas, precisamente o controle externo da atividade policial, muitas vezes, quase em sua totalidade, não exercia sua função de controle nas polícias em casos de homicídios praticados por agentes da segurança pública, salvo para determinar ou recomendar melhorias físicas, hidráulicas e cartorárias nas delegacias e nas unidades militares, exigindo um melhor atendimento aos alagoanos quando do registro de boletins de ocorrência e de comunicação de determinado fato criminoso.

Atualmente, o Ministério Público vem atuando de forma mais incisiva e acompanhando de perto os casos de confrontos entre polícias e criminosos que acabam em morte. Recentemente 09 (nove) promotores de justiça expediram a Recomendação conjunta n° 01/15, com a finalidade de que os órgãos que compõem a estrutura da segurança pública em Alagoas possam informar dados com uma periodicidade estabelecida.[9] A Recomendação repercutiu positivamente no âmbito da polícia judiciária, tendo em vista que foi confeccionada e publicada no Diário Oficial de Alagoas a Portaria n° 114/GD/PCAL[10] determinando que os delegados de Polícia Civil que integram a Delegacia de Homicídios da Capital (DHC), presidam os inquéritos de homicídios decorrentes de confronto policial. De acordo com a publicação, havendo a suposição de que a morte do indivíduo foi derivada de oposição à intervenção da polícia, o coordenador da Delegacia de Homicídios da Capital, vai  orientar e determinar aos delegados que alternem a presidência do inquérito policial, a fim de se evitar julgamentos maliciosos de terceiros na condução do procedimento.

O que causa estranheza na aludida portaria é essa “alternância” ou “revezamento” na condução dos inquéritos de homicídio cometidos por policiais, que pode ser interpretado como um possível medo ou temor das autoridades policiais (que presidem o inquérito) de sofrerem eventuais perseguições dos policiais que figuram como autores, ou seja, uma possível investida contra a vida daqueles que estão investigando. Por outro lado, pode ser visualizado como uma forma de se evitar julgamentos como “àquele delegado não está agindo com imparcialidade” e “ele não gosta de polícia”.

No final, acredita-se que a participação do Ministério Público vem a contribuir com as instaurações de inquéritos policiais dessa natureza, bem como para conduzir estes processos, por meio de diligências, de forma mais célere e eficaz, a fim de se buscar a verdade do ocorrido não deixando impune o policial que atuou de forma contrária aos ditames da ordem legal e da própria moralidade.

Todavia, não basta apenas a participação efetiva do Ministério Público, mas, sobretudo, a sua escorreita condução, pois no Estado do Rio de Janeiro a Promotoria de Justiça de Controle Externo da Atividade Policial (entre 2001-2011), ainda que atuante, na maioria dos casos de “autos de resistência,” pediu o arquivamento ou concedeu seguidas extensões de prazo, sem solicitar diligências além daquelas já constantes no IP, o que resulta ou resultaria na prescrição do crime ou no simples aceite (de arquivamento) do Juiz Criminal.[11]

O papel do Ministério Público de Alagoas deve ir muito além de tudo isso. O trabalho de acompanhar os inquéritos policiais e de perceber o rumo que tomam as investigações é importante, até para se evitar cooperativismo e pré-julgamentos da vítima no procedimento policial.

E o Poder Judiciário pode requisitar a abertura do Inquérito Policial? Sim. É o que se vislumbra na leitura do art. 5º do Código de Processo Penal. Nos crimes de ação pública (como é o caso de homicídio) o inquérito policial será iniciado de ofício ou mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.

Contudo, essa situação é pouco vivenciada no mundo jurídico e nunca vista na sociedade. Ao visualizarmos os diferentes atores do sistema criminal é possível perceber que as ferramentas estão dispostas, mas não são utilizadas, seja pelo próprio receio e medo de represália (como foi o caso da morte da Juíza Patrícia Acioli[12]) ou pelo próprio cooperativismo.

Sabendo que o ESTADO/JUIZ é competente para requisitar de ofício a abertura de procedimento administrativo, in casu, o Inquérito Policial é necessário indagarmos a sua inércia nos casos de homicídio praticados por policiais.

Ademais, assistimos com frequência às decisões judiciais em que os Juízes atuam apenas com sua livre consciência e muitas vezes, ao externar sua decisão, não se atém as provas existentes nos autos, buscando princípios diversos afrontando diversos princípios constitucionais. Essa busca constante do Juiz em fazer “justiça” acaba por atuar no campo da parcialidade e, consequentemente, atuar contra a constituição pátria é o que a doutrina chama de politização da justiça e do ativismo judicial exacerbado.

Nesse ínterim:

Por isso não se pode confundir ou tentar buscar similitudes entre os princípios constitucionais e as referidas cláusulas gerais (abertas). São coisas absolutamente distintas. Aliás, seria incompatível com a democracia que uma Constituição estabelecesse, por exemplo, “princípios” (sic) que autorizassem o juiz a buscar, em outros “espaços” ou fora dele, as fontes para complementar a lei. É como se a Constituição permitisse que ela mesma fosse “complementada” por qualquer aplicador, à revelia do processo legislativo regulamentar (portanto, à revelia do princípio democrático). Isso seria uma “autorização” para ativismos, que, ao fim e ao cabo, deságuam em decisionismos. Ou seja, qualquer tribunal ou a própria doutrina poderiam “construir” princípios que substituíssem ou derrogassem até mesmo dispositivos constitucionais, o que, convenhamos, é um passo atrás em relação ao grau de autonomia que o direito dever ter no Estado Democrático de Direito.[13] (grifei)

O que se pretende e o que se busca no sistema criminal contemporâneo é um Juiz mais atuante e independente, uma autoridade disposta a atuar dentro da sua seara de competência e com imparcialidade, respeitando as normas constitucionais.


3. A RESOLUÇÃO CONJUNTA N° 02/2015: (IN)EFICAZ PARA A REDUÇÃO DE MORTES ORIUNDAS DA FAMIGERADA “RESISTÊNCIA SEGUIDA DE MORTE”?

Os dados oficiais da Secretaria de Estado da Segurança Pública Alagoas revelam que, entre janeiro 2012 e dezembro de 2015[1], 156 pessoas foram mortas em confronto com a polícia no Estado em situações tipificadas como “resistência com resultado morte”[2] ou “autos de resistência”. Em que pese o crime ser previamente tipificado no ordenamento jurídico pátrio como homicídio, a instauração do respectivo procedimento – inquérito policial – nem sempre é possível. A Autoridade Policial, por sua discricionariedade, está supostamente autorizada a deixar de instaurar o inquérito policial, pois delibera que o crime foi cometido em legítima defesa ou com o objetivo de vencer a resistência de suspeitos do crime. A questão posta está também na inércia do Ministério Público (responsável pelo controle externo da atividade policial), já que nem sempre intervém em situações em que figura como autor o ESTADO (representado pelo Policial) e como vítima o cidadão previamente julgado como criminoso.

Agora, com a recente publicação da Resolução nº 02/2015, questiona-se a obrigatoriedade da polícia judiciária em instaurar inquérito policial quando a lesão ou o homicídio decorrer de oposição à intervenção policial. Essa nomenclatura é capaz de contribuir com a redução de mortes causadas por policiais? O que seriam os “autos de resistência”? É o que se pretende apresentar abaixo.

3.1. A Resolução nº 02/2015: (in) eficácia na redução do número de mortes em confrontos policiais

O relatório final do Grupo de Persecução Penal da ENASP (META 2), que – tinha por objetivo concluir as investigações por homicídio doloso instaurado até 31/12/2007 – aponta que Alagoas possuía como estoque inicial 4.180 inquéritos policiais pendentes ou inconclusos. Na entrega do relatório da META 2, ocorrida em abril de 2012, Alagoas fechou o balanço com 3.520 inquéritos policiais pendentes, ou seja, em 05 anos conseguiu concluir apenas 15,78% dos IPs.[3] Esses números já apontam a crise institucional vivenciada na polícia judiciária alagoana. E mais, tais números só não foram maiores, em razão do reduzido número de inquéritos policiais instaurados quando se tratava de “autos de resistência”.

Em Alagoas, quando ocorre um evento policial que culmina no resultado morte de um indivíduo, de forma automática e sem nenhum tipo de análise técnica-científica (por meio do perito criminal) e até mesmo jurídica, os agentes de segurança pública alegam diante da autoridade policial que o homicídio ocorreu devido à resistência do individuo à prisão. Essa narrativa é lavrada no sistema policial da polícia judiciária de Alagoas (SISPOL), e o homicídio recebe a classificação de “autos de resistência”. Por fim, na delegacia de polícia, os papéis se invertem: a vítima é o policial e o morto é o autor do delito de resistência.

As justificativas para isso ocorrer são infinitas. A primeira é a que trata de poder discricionário que o Delegado possui na abertura do inquérito policial, pois, por critérios subjetivos julga e decide se houve abuso ou não por parte do agente de segurança responsável pelo homicídio. A depender do ocorrido, para efeitos meramente estatísticos, “os autos de resistência” são inseridos no sistema policial informatizado com ou sem abertura de Inquérito Policial. A segunda é que se trata de procedimento administrativo extrajudicial (peça informativa e inquisitorial). Assim, pela conveniência e oportunidade – por ser uma peça administrativa – é assegurada à autoridade policial a instalação do inquérito, ou não, caso em que, uma vez instaurado, seguirá o seu trâmite natural (portaria de instauração, cumprimento de diligências, oitivas, relatório) com a posterior remessa ao Poder Judiciário. Como bem afirma o professor Roberto Kant de Lima, com a instauração do procedimento policial o delegado de polícia passará “a prestar contas de seu andamento aos membros do judiciário”[4].

Trata-se o inquérito de um procedimento inquisitorial (sem regras) sendo o detentor do procedimento o “dono”. É a “criatura” autorizada pelo Estado capaz de julgar e determinar como bem conduzi-lo. Para o professor Kant de Lima:

[...] a inquisitorialidade é um modelo de administração institucional de conflitos entre desiguais, pela qual o condutor do processo – seja ele o Estado ou não – está acima da sociedade e de seus conflitos, exercendo especial vigilância sobre o conflito entre desiguais, para que não se façam acusações infundadas. Como consequência, surge a ideia de que uma verdade deve ser apurada sigilosamente e registrada por escrito no decorrer desse procedimento, que verificará o fundamento das acusações e, conforme for, as encaminhará, ou não, para receberem tratamento judicial.[5]

Os “autos de resistência” são fruto de uma maquinação burocrática da polícia. Não se encontra no mundo jurídico, ou seja, não possui previsão legal. A interpretação para a sua aplicação é resultante da análise extensiva do direito. Fazendo-se uma análise dos crimes de homicídios existentes em Alagoas, através do SISPOL[6], em episódios de flagrante resistência à prisão ou de confronto com a polícia, utiliza-se como registros desses eventos os “autos de resistência”. Todavia, o que era para ser exceção, virou regra e todo homicídio que ocorre entre um individuo e a polícia, é definido como “autos de resistência” para, em uma apreciação apressada, ocultar execuções sumárias. A figura do auto de resistência foi regulamentada durante a ditadura militar, pela Ordem de Serviço nº 803, de 02/10/1969 da Superintendência da Polícia Judiciária do antigo Estado da Guanabara, publicado no Boletim de Serviço do dia 21/11/1969.[7]

Ao abordar sobre “autos de resistência,” o Código de Processo Penal em seu art. 292 leciona que:

Art. 292. Se houver, ainda que por parte de terceiro, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a  resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.          

Indaga-se em que momento há inserida a possibilidade de não ser instaurado o aludido procedimento, in casu, o Inquérito Policial? Há omissão. O inquérito policial deve ser instaurado por se tratar de crime (homicídio) de ação penal pública incondicionada. Os “autos de resistência” sempre foram considerados atípicos.

A alteração dada pela Resolução nº 02/2015, que alterou em definitivo as designações genéricas, como autos de resistência e resistência seguida de morte, definindo-as em “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial” não irá contribuir com a redução do número de homicídios cometidos por policiais, tampouco irá contribuir para a obrigatoriedade na instauração dos inquéritos policiais. Essa alteração nos parece ter efeitos domésticos e serve como instrumento para silenciar os grupos de Direitos Humanos, bem como para atender à solicitação já realizada pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Essa alteração não possui eficácia no âmbito prático-policial, nenhum efeito surtirá, pois o crime de homicídio, independentemente de quem o tenha cometido deve ser investigado e instaurado o respectivo procedimento com a posterior remessa ao Ministério Público.

Em Alagoas houve um aumento significativo dos “autos de resistência”. Em 2012 foram 26 autos de resistência, já em 2015 foram 102 autos de resistência. Esses números estão contidos no site oficial da Secretaria de Estado da Segurança Pública e já foi referenciada no presente trabalho. Houve um aumento de 74%. A quem atribuir a culpa? A resolução irá servir para diminuir o alto índice de homicídios cometidos por policiais? Vai acabar com a não instauração do inquérito policial? Vai compelir os delegados de polícia a instaurar inquérito policial?

O que se sabe é que se não houver o acompanhamento dos diferentes atores do sistema criminal (defensoria pública, ministério público, poder judiciário, OAB etc.) o número de “autos de resistência” permanecerá aumentando.

Ademais, estes homicídios estão inseridos nas estatísticas, mas não são contabilizados pela Secretaria de Estado da Segurança Pública, pois se fossem contabilizados como homicídios os números se elevariam vertiginosamente, e o Governo de Estado não seria bem avaliado pela sociedade. Assim, nota-se que a não inserção destes dados tem por objetivo convencer que a política adotada pelo governo em Alagoas, no que diz respeito à criminalidade tem efetivamente diminuído.

Conclui-se, sem suprimir os estudos, que o elevado número de vítimas de “autos de resistência” em Alagoas, indica que a polícia alagoana é extremamente repressiva e não preventiva (como se requer no modelo de polícia cidadã) e o que é pior, está legitimada e autorizada a matar; os números são inquestionáveis. O aumento considerável no número de homicídios (autos de resistência) evidencia o equívoco da atual política governamental: repressora e seletiva.


4.         CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo demonstrou que a redução dos “autos de resistência” ou sua própria extinção não irá ocorrer com uma simples imposição normativa, mas com a conscientização da própria polícia.

A Resolução Conjunta nº 02/2015, que alterou em definitivo as designações genéricas, como autos de resistência e resistência seguida de morte, definindo-as em “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial,” ou “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial,” não possui eficácia legal para impor à autoridade policial a obrigatoriedade de instaurar o inquérito policial nos casos de homicídios decorrentes dos confrontos policiais, pois, em que pese divergir, a autoridade policial detém de certa discricionariedade e autonomia.

O que se percebe é que os atores do sistema criminal, nesses casos, se apresentam omissos. É sabido que o crime de homicídio é de ação penal pública incondicionada[8], assim não pode, ao bel-prazer, a autoridade policial decidir por não investigar o homicídio cometido pelo policial; a sua instauração é obrigatória.

 A política de segurança pública adotada em Alagoas se mostrou eficaz (na visão do governo), mas suas ações resultam no elevado índice de homicídios cometidos por policiais, o que demonstra a ausência de políticas de segurança que contemplem a concepção democrática de segurança pública nos termos da Constituição Federal de 1988. Esse alto índice se evidencia pelo elevado grau de investimento em armamentos letais e pela ausência de políticas de educação e prevenção.

Os dados oficiais da Secretaria de Estado da Segurança Pública, da Anistia Internacional e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, transmite que os “autos de resistência” continuam subindo, comprovando que a falta de compromisso por parte do Chefe do Poder Executivo, dos integrantes da segurança pública (polícia militar e polícia civil), do Ministério Público e do Poder Judiciário, não estão exercendo o papel de garantidores do princípio basilar pregado pela C.F/88: a vida.

As ações enérgicas da polícia no Estado de Alagoas, corroborada pelo Poder Executivo, em razão da redução da criminalidade, é traduzida por um alto índice de mortes, esta é a realidade cruel que deveria ser mostrada à sociedade, todavia, são maquiadas, quando não sonegadas. Alagoas anda na contramão do exato significado do Estado Democrático de Direito – no qual todos os homicídios devem ser combatidos por meio de sua instauração e investigação.

A nomenclatura atribuída na Resolução nº 02/2015 não desclassificou a possibilidade de se reduzir as mortes pela famigerada “resistência seguida de morte” ou “autos de resistência”, na realidade facilitou – para fins políticos – a sua “boa” divulgação nos meios estatísticos. Assim, no Boletim Estatístico Criminal, emitido anualmente pela Secretaria de Estado da Segurança Pública, os números de homicídios tenderão a cair, pois estarão inclusos como “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”.

O que se percebe é que Alagoas, assim como no Rio de Janeiro, tende a combater a criminalidade com violência de forma insensata.  É necessário ouvir os diversos atores do sistema criminal, inclusive contar com a participação enriquecedora de estudiosos que trabalhem com os motivos e nas soluções dos fatores da violência pública e dos problemas sociais, relação causa/efeito, para que objetivos possam ser efetivamente alcançados e minorados.

Tão importante é o trabalho científico sobre segurança pública no intuito de detectar os problemas e tentar solucioná-los que, numa pesquisa feita pela socióloga Maria da Glória Bonelli, dos dez tópicos apresentados ao bom funcionamento da polícia, a interferência política na cúpula da polícia é um dos motivos que enleiam os trabalhos policiais.[9] É necessário, sem dúvidas, uma melhor análise quanto às escolhas e as formas de se escolher politicamente quem irá orientar, destinar e trabalhar como chefe maior da polícia.

Por fim, as diferentes ciências (jurídicas, sociais, filosóficas etc.) devem ser devidamente estudadas no âmbito da segurança pública, pois tornará efetiva a solução na redução da criminalidade e dos “autos de resistência” – o contrário tornará a mudança complexa, lenta e sem destino. Cada área tem o papel de completar a outra, essa solidariedade social combate as anomalias sociais. (DURKHEIM, 1999) Buscar acabar com o jargão de “bandido bom é bandido morto” é o primeiro passo. Não se combate a violência com violência.


Notas

[1] O valor total se deu pelo somatório do Boletim Anual Criminal – BAC, emitido pela Secretaria de Estado da Segurança Pública de Alagoas no sítio eletrônico. Disponível em: <http://www.defesasocial.al.gov.br/estatisticas-trimestrais>. Acesso em: 09 mar. 2016.

[2] Os dados estatísticos de 2014 emitidos pela SSP/AL não possui o número de autos de resistência, todavia foi possível identificar, por meio do sistema informatizado da polícia civil, 12 autos de resistência.

[3] BRASIL. Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública – ENASP. Relatório Nacional da Execução da Meta 2: um diagnóstico da investigação de homicídios no país. Brasília: Conselho Nacional do Ministério Pública, 2012. Disponível em: <http://www.cnmp.gov.br/portal_2015/images/stories/Enasp/relatorio_enasp_FINAL.pdf>. Acesso em: 09 mar. 2016.

[4] KANT DE LIMA, Roberto. Entre as leis e as normas: éticas corporativas e práticas profissionais na segurança pública e na Justiça Criminal. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social. Vol. 6, nº3 – out/Nov/dez 2013. pp. 549-580. Disponível em: <http://revistadil.dominiotemporario.com/doc/DILEMAS-6-4-Art1.pdf>. Acesso em: 09 mar. 2016;

[5] Ibidem.

[6] Sistema Policial utilizado em Alagoas para confecção de registros policiais. Uso restrito, cuja revelação de dados depende de autorização prévia por parte do Delegado Geral de Polícia Civil.

[7] VERANI, Sérgio. Assassinatos em Nome da Lei. Rio de Janeiro: Aldebarã, 1996, pp. 33-37.

[8] A ação penal pública incondicionada independente de vontade da vítima ou da família para dar início ao inquérito policial ou a formalização da denúncia pelo Ministério Público, ou seja, sendo conhecedor do crime a autoridade pública competente deve adotar as providências cabíveis a fim de apurar a autoria e a materialidade do delito e, posteriormente, remetê-lo ao Juiz competente para julgamento.

[9] BONELLI, Maria da Glória. Os delegados de polícia entre o profissionalismo e a política no Brasil, 1842-2000. Universidade Federal de São Carlos. Departamento de Ciências Sociais. 2003, p. 25-26.


[1] Investigações mal elaboradas com a consequente abertura de procedimento administrativo (inquérito policial) sem elementos mínimos que busquem apresentar a verdade dos fatos ao Judiciário pode vir a induzir o Juízo, face seu subjetivismo, a uma condenação injusta e indevida.

[2] LOPES JR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p.5.

[3] MARQUES, Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro e São Paulo: Forense, 1970, p. 154.

[4] Em recente episódio (dia 04/03/2016) houve uma condução coercitiva em desfavor do ex-presidente do Brasil. A maioria dos juristas brasileiros, com imparcialidade, entenderam que a condução foi ilegal, face os descumprimentos da Constituição Federal de 1988 e do próprio Código Penal. Cf.     STREK, Lenio Luiz. Condução coercitiva de ex-presidente Lula foi ilegal e inconstitucional. Consultor jurídico. 4. mar.2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-mar-04/streck-conducao-coercitiva-lula-foi-ilegal-inconstitucional>. Acesso em: 6 mar. 2016.

[5] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, p. 14-15.

[6] CAMPILONGO, Celso Fernandes . O Judiciário e a democracia no Brasil. Revista USP, v. 21, 1994, p. 117.

[7] Ibidem, p.118-121.

[8] Ibidem, p. 121.

[9] MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. Promotorias de Justiça expedem recomendação para aumentar controle sobre mortes ocorridas em confronto policial. Disponível em: <http://www.mpal.mp.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2705:promotorias-de-justica-expedem-recomendacao-para-aumentar-controle-sobre-mortes-ocorridas-em-confronto-policial&catid=50:noticias-controle-externo&Itemid=6>. Acesso em: 8 mar. 2016.

[10] ALAGOAS. Diário Oficial do Estado de Alagoas. Portaria n° 114/GD/PCAL, publicada no DOE/AL do dia 27 de janeiro de 2016, p. 30. Disponível em: <http://doeal.com.br/>. Acesso em: 8 mar. 2016.

[11] “Autos de Resistência”: Uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011) Coordenação: Prof. Michel Misse Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.pm.es.gov.br/download/policiainterativa/pesquisaautoresistencia.pdf>. Acesso em: 09 mar. 2016.

[12] A Juíza Patrícia Acioli atuava na 4ª Vara Criminal de São Gonçalo e era responsável por diversos processos em que os réus eram PMs. Patrícia foi assinada na porta de casa, em razão de sua atuação (condenação) contra grupos de policiais ligados a milícia e a grupos de extermínio.

[13] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência?.  4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 44.


[1] MATOS, Luís Salgado de. Segurança. In: Dicionário de Filosofia moral e política. Instituto de Filosofia da Linguagem. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. Disponível em: <http://ifilnova.pt/file/uploads/20b80ffab42e5adbe998e8d35b6450a0.pdf>. Acesso: 02 mar. 2016.

[2] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Editora: Positivo, 2009.

[3] MASSON, Nathalia. Manual de direito constitucional. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 1212-1213.

[4] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 777.

[5] SILVA, José Afonso. Op cit., p. 779.

[6] ALAGOAS. Secretaria de Estado da Segurança Pública. Boletim Anual de Estatística Criminal (2015). Disponível em: <http://www.defesasocial.al.gov.br/estatisticas-trimestrais/2015/BoletimAnualCriminal%20-%202015.pdf/view>. Acesso em: 02 mar. 2016.

[7] BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. Trad. Paulo Montero. In: ORTIZ, R. Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1994. (Original: Langue Française, 34, maio 1977), p. 5-6.

[8] BERLATTO, Fábia. A doxa da segurança pública como princípio de legitimação: Um estudo de caso dos mecanismos de funcionamento do controle social perverso no Paraná. Sociologia & Política – I Seminário Nacional de Sociologia & Política UFPR. “Sociedade e Política em Tempos de Incerteza”. Paraná: 2009. Disponível em: <http://www.humanas.ufpr.br/site/evento/SociologiaPolitica/GTs-ONLINE/GT4/EixoII/doxa-segur-publica-FabiaBerlatto.pdf>. Acesso em: 06 mar. 2016.

[9] BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 3ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 3-7.

[10] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão.  20. ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 143.

[11] O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2014 informa, por meio de pesquisas, que os negros são 18,4% mais encarcerados e 30,5% mais vítimas de homicídio no Brasil. Pelo número de mortos em 2013 a pesquisa aponta que a cada 10 minutos 1 pessoa é assassinada no país.

[12] Você matou meu filho! Homicídios cometidos pela polícia militar na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Anistia Internacional, 2015. Disponível em: <https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2015/07/Voce-matou-meu-filho_Anistia-Internacional-2015.pdf>. Acesso em: 03 mar. 2016.


Autor

  • Hebert Henrique de Oliveira Melanias

    Possui graduação em Direito pela Faculdade Raimundo Marinho - Unidade Maceió (2011) e Pós-graduação em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera (2014). Realizou estágios no âmbito jurídico no 1º Cartório de Registro Civil de Casamentos e Notas de Maceió nov/2006 a junho/2008; no Órgão de Proteção e Defesa do Consumidor do Estado de Alagoas (PROCON/AL) Jan/2009 à Março/2011; no Escritório Jurídico Dr. Virgílio Andrade março de 2011 a agosto de 2011. Assumiu o cargo de Assessor Técnico/Jurídico no Conselho Estadual de Segurança Pública em Alagoas - (CONSEG/AL) - Set/2009 à Fev/2014. Atualmente é Escrivão da Polícia Judiciária - Delegacia Geral da Polícia Civil do Estado de Alagoas, com atuação na Assessoria Jurídica do Gabinete do Delegado Geral. Cursou a disciplina de Mestrado em Sociologia "Conflitos e disputas no campo jurídico: uma sociologia dos tribunais e seus juízes". Detêm de experiência na área de Direito, com ênfase em Direito do Consumidor, Direito Penal e Direito Penal Ambiental.

    Textos publicados pelo autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELANIAS, Hebert Henrique de Oliveira. Os autos de resistência em Alagoas e a Resolução Conjunta 02/2015: (in)eficácia para a redução dos homicídios decorridos da intervenção policial?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4783, 5 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51097. Acesso em: 23 abr. 2024.