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O caso “U.S. v. Susan B. Anthony” (1873): luta pelo sufrágio feminino nos Estados Unidos

O caso “U.S. v. Susan B. Anthony” (1873): luta pelo sufrágio feminino nos Estados Unidos

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Relato traduzido de um dos casos mais emblemáticos enfrentados pela Common Law dos EUA.

Diversos casos na década de 1870 vieram à tona na tentativa das mulheres de ganharem plenos direitos de cidadania por meio do sistema judicial. Tivesse a estratégia funcionado à epoca, as mulheres teriam sido poupadas  de uma campanha legislativa em cada estado pelo sufrágio, a qual perdurou por 60 anos, como também pelo período de 100 anos em que a cláusula de igualdade de proteção constante na Décima Quarta Emenda Constitucional (Fourteenth Amendment) não foi aplicada para casos de discriminação sexual.

Em julho de 1868, exatamente 20 anos após a Convenção de Seneca Falls e a primeira manifestação das mulheres nos EUA pelo sufrágio, a Décima Quarta Emenda Constitucional foi adotada. A Seção 2, direcionada para encorajar os Estados a garantir o sufrágio para os homens afro-americanos, irritou os líderes pelos direitos das mulheres ao introduzir a palavra “homem” (male) na Constituição e, segundo alguns, esse fato chamou a atenção para a cidadania das mulheres. Francis Minor – advogado e marido de Virginia Minor, presidente da Associação do Sufrágio para a Mulher de Missouri – entendia que as mulheres procuravam a cláusula errada. A Seção 1 da Décima Quarta Emenda Constitucional, ele apontou em 1869, declarava:

Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, sujeitas à jurisdição do país, são cidadãs dos Estados Unidos e do Estado onde elas residem. Nenhum Estado deve fazer ou impor qualquer lei que reduza os privilégios ou imunidades de cidadãos dos Estados Unidos.

Minor escreveu que essa cláusula confirmava a cidadania das mulheres e concluiu que “as disposições de diversas Constituições Estaduais que excluem as mulheres do direito de voto em eleições em razão do sexo são violadoras do espírito e da letra da Constituição Federal”.

Susan B. Anthony e Elizabeth Cady Stanton publicaram a análise de Minor em seu jornal, chamado “Revolução” (Revolution), e chamaram as mulheres para irem às urnas. Em 1871 e 1872, em pelo menos dez Estados, as mulheres assim o fizeram. A maioria foi afastada, mas algumas conseguiram exercer o direito de voto.

“Eu estive, fui e consegui!!”

Uma das mulheres que votaram em 1872 foi Susan B. Anthony. Antes de registrar-se em Rochester, em Nova York, consultou o Juiz Henry R. Selden, que concordou que a Seção 1 da Décima Quarta Emenda Constitucional deveria garantir o sufrágio às mulheres. Susan levou consigo o parecer jurídico e ameaçou de processar os escrivães se falhassem em dar sequência ao seu juramento. Eles cumpriram. Susan e outras 14 mulheres tiveram seus registros e, em 5 de novembro, elas votaram. Em 28 de novembro, Susan, as 14 mulheres e os funcionários envolvidos com o registro foram presos.

A todos foi oferecida a soltura mediante o pagamento de 500 dólares a título de fiança; Susan recusou-se a pagar. Henry Selden, como seu advogado, impetrou o pedido de Habeas Corpus e Susan foi solta temporariamente. Um juiz distrital negou o pedido e aumentou sua fiança em 1.000 dólares em 21 de janeiro de 1873. Susan novamente recusou, mas Selden – que mais tarde explicou “eu não poderia ver uma senhora que respeito colocada na prisão” – pagou pela fiança. Susan foi solta e imediatamente perdeu seu direito de apelar perante a Suprema Corte com fundamento no pedido de Habeas Corpus.

Confusão antes do julgamento

Susan tentou apresentar o seu lado na história para sensibilizar os jurados antes que fosse iniciado o julgamento marcado para 13 de maio. Ela fez o mesmo discurso em 29 distritos de seu condado:

Amigos e companheiros cidadãos, estou perante vocês sob a acusação do alegado crime de ter votado na última eleição presidencial, sem ter um direito de votar... Nós não pedimos mais ao Legislativo ou ao Congresso para dar o direito ao voto, mas apelamos às mulheres de todos os lugares para exercer o seu tão negado “direito de cidadão”... nós lançamos ao vento o velho dogma de que os governantes podem dar direitos. A Declaração de Independência, a Constituição dos Estados Unidos, as Constituições de diversos Estados... propõem proteger as pessoas no exercício dos seus direitos concedidos por Deus. Nenhum deles finge conferir direitos... Metade das pessoas desta Nação hoje está completamente sem a força de apagar uma lei injusta, ou de escrever uma nova. As mulheres, desapontadas como estão com esta forma de governo, que obriga a tributação sem oferecer representação, que as compele a obedecer leis para as quais elas nunca deram consentimento, que as aprisiona e as condenam sem julgamento por um júri formado por seus colegas, que as rouba na custódia de suas próprias pessoas, salários e crianças. Somos a metade das pessoas deixadas completamente à mercê da outra metade.

Porque Susan “prejudicou qualquer júri possível”, o seu julgamento foi deslocado do Condado de Monroe para Canandaigua, localizado no Condado de Ontario (Nova York), e remarcado para 17 de junho. Em 16 de junho, Susan discursou em cada vilarejo.

O julgamento começa em 17 de junho

O julgamento iniciou-se com o Juiz Ward Hunt em 17 de junho de 1873. O advogado Richard Crowley apresentou o caso: “Senhora Susan B. Anthony... em 5 de novembro de 1972... votou... Àquela época ela era uma mulher”.

Beverly W. Jones, um dos funcionários demandados, confirmou que havia realizado o registro de Susan e recebido as cédulas eleitorais em 5 de novembro.

Crowley apresentou a lista de eleitores com o nome de Susan como prova de que uma mulher votou, encerrando em seguida a sua exposição.

Henry Selden, então, pediu para que Susan ficasse de pé para depor, ao que Crowley ofereceu objeção: “Ela não está apta como depoente em seu nome”. (As mulheres não eram autorizadas a depor em corte federal no século 19)

O juiz decidiu que Susan não poderia depor.

Selden, na sequência, manifestou-se no sentido de concordar com a leitura da Décima Quarta Emenda por Susan e a aconselhou a depositar seu voto. Selden argumentou: “A única ilegalidade apresentada contra a o voto da defendente é que ela é uma mulher. Se o mesmo ato tivesse sido praticado por seu irmão sob as mesmas circunstâncias, o ato não só seria considerado como inocente, mas honroso e louvável; mas haver sido realizado por uma mulher é considerado um crime. O crime, portanto, consiste não no ato realizado, mas no simples fato de que foi executado por uma mulher, e não um homem”.

Na conclusão do argumento, o Juiz Hunt leu um pronunciamento – preparado antes de ter ouvido o depoimento – para os “Cavalheiros do Júri”:

O direito de votar, ou o privilégio de votar, é um direito ou privilégio decorrente da Constituição do Estado, e não dos Estados Unidos... Se o Estado de Nova York define que ninguém deve votar até ter alcançado a idade de 30 anos de idade, ou após alcançar a idade de 50 anos, ou que ninguém que tenha cabelo grisalho, ou quem não use todos os seus membros, deve ter o voto assegurado, eu não vejo como isso poderia ser uma violação de qualquer direito derivado ou assegurado pela Constituição dos Estados Unidos.

O Juiz Hunt dirigiu o júri para que desse um veredicto condenatório.

Selden impugnou dizendo: “Isso cabe ao júri [decidir]”.

Hunt encaminhou novamente ao júri: “Eu decidi como uma questão de direito... e sob a Décima Quarta Emenda, a qual a Srta. Susan requer para protegê-la, ela não foi protegida no direito para votar... Eu, portanto, devolvo a vocês para dar um veredicto de culpa”.

Hunt então pediu ao padre para gravar o veredicto do júri. No dia seguinte, Selden apresentou uma moção e argumentos para novo julgamento, ao qual Hunt negou. Hunt, por conseguinte, pediu para Susan levantar-se. “A sentença desta Corte é que você pague uma multa de 100 dólares e as custas do processo”.

Susan respondeu: “Possa isso agradar a sua honra, eu nunca pagarei um dólar de sua injusta pena... ‘A resistência à tirania é obediência a Deus’”.

Hunt a soltou, dizendo ‘Madame, a Corte não irá determinar que permaneça aprisionada até que a multa seja paga”.

Susan nunca pagou a multa.

A Suprema Corte revê a questão das mulheres e a Décima Quarta Emenda

Em 1873, a Suprema Corte ouviu o caso de Myra Bradwell, que clamou pelos direitos previstos na Décima Quarta Emenda, negados pela lei de Illinois ao proibir as mulheres do exercício de advocacia. A Corte entendeu que os direitos dela não tinham sido violados uma vez que “o direito das mulheres de perquirir qualquer emprego jurídico para um estilo de vida [com a prática da advocacia incluída]” não era “um dos privilégios e imunidades das mulheres como cidadãs”. O  magistrado Samuel F. Miller, ao escrever para a maioria, explicou: “O destino supremo e a missão da mulher são atender à nobre e às atividades benéficas de mulher e mãe. Esta é a lei do Criador. E as regras da sociedade civil devem ser adaptadas para a constituição das coisas em geral”.

Na decisão sobre o caso Minor v. Happersett, a Suprema Corte de forma unânime opinou que o sufrágio não era um dos privilégios e imunidades da cidadania, e mulheres – apesar de consideradas cidadãs dos Estados Unidos – poderiam ter o direito de voto negado por seus respectivos Estados.

O primeiro caso bem sucedido da Décima Quarta Emenda que conseguiu desafiar uma lei tendente a dar tratamento distinto com base no gênero foi trazida por Sally Reed em 1971. O filho de Reed faleceu sem realizar o testamento e a Corte de Idaho automaticamente apontou o marido de Sally, que havia que abandonado a família, para administrar o patrimônio, em razão de seu gênero, e negou a Sally por ser mulher. Mais de 100 anos depois da adoção da Décima Quarta Emenda, o Presidente da Suprema Corte Warren E. Burger indicou o seguinte entendimento: “Nós concluímos que a preferência arbitrária estabelecida em favor dos homens pelo Código de Idaho não pode persistir em face do comando expresso pela Décima Quarta Emenda, de forma que nenhum Estado pode negar a igual proteção das leis para qualquer pessoa dentro de sua jurisdição”.


Fonte: Tradução do caso U.S. v. Susan B. Anthony: 1873, descrito por Kathryn Cullen-DuPont. In: Great American Trials. Edward W. Knappman (org.). Detroit: Visible Ink Press, 1994.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HWANG, Helen. O caso “U.S. v. Susan B. Anthony” (1873): luta pelo sufrágio feminino nos Estados Unidos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4998, 8 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53177. Acesso em: 24 abr. 2024.