Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/53613
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

As abordagens das teorias sobre crime.

Um diálogo com a obra Laranja Mecânica de Stanley Kubrick

As abordagens das teorias sobre crime. . Um diálogo com a obra Laranja Mecânica de Stanley Kubrick

|

Publicado em . Elaborado em .

O sistema penitenciário brasileiro tem ganhado amplitude tanto na mídia, quanto na sociedade. A problematização do tema em relevo carece de reflexão, para que assim possa ocorrer a melhoria do próprio sistema prisional.

Resumo: As discussões acerca do Direito Penal e, em consequência, do sistema penitenciário brasileiro tem ganhado amplitude tanto no meio acadêmico quanto na mídia, alcançando repercussão em toda a sociedade. A finalidade do presente artigo é contribuir com esse debate através da análise do longa A Laranja Mecânica, do discurso das teorias do sobre o crime, bem como as novas abordagens, que deslocaram a ênfase do criminoso para os diversos elementos sociológicos que influenciam a construção da definição de crime. A problematização do tema em relevo carece de reflexão, para que assim, possam ser encontradas novas soluções como alternativas à pena privativa de liberdade e à melhoria do próprio sistema prisional, de maneira que esta possa cumprir o seu objetivo de ressocialização dos indivíduos.

Palavras-chave: Teorias do crime. Direito Penal. Sistema Prisional. A Laranja Mecânica. Ressocialização.


1 INTRODUÇÃO

Tencionamos propor uma discussão acerca das teorias de socialização, integradas com a teoria do crime e, encaixando-se com a ideia do livro "O mito da função ressocializadora da pena" de Cláudio Frazão. Iniciamos o artigo com uma breve abordagem sobre as escolas de criminologia, em seguida, explanando o pensamento de diversos teóricos evolucionistas, dentre eles, Ana Lúcia Sabadell, segundo a qual a sociologia jurídica, na concepção positivista, não pode ter uma participação ativa dentro do direito. Tudo o que não for “lei e relações entre leis” deve ficar fora da ciência jurídica. A sociologia jurídica pode estudar e criticar o direito, mas não pode ser parte integrante dele. Para os positivistas, as indagações sociológicas são muito importantes, porém eles temem que estas venham a intervir na aplicação do direito ao influenciar a imparcialidade do magistrado no julgamento do caso concreto. Além disso, também incluiremos o filme Laranja Mecânica de Stanley Kubrick, nessa problematização do sistema carcerário, uma vez que o longa tem como ponto central o questionamento da legitimidade da anulação do livre-arbítrio do criminoso pela sua manipulação psicológica através do Estado.


2 O discurso das Escolas Clássicas sobre o crime

O discurso acerca do crime, de seus motivos ensejadores e dos mecanismos para evitá-lo mudou ao longo da história. Essas visões sobre o crime foram as chamadas escolas de criminologia, que ainda hoje, servem como referencial teórico para o estudo desse objeto. As principais foram a Clássica e a Positiva.

A escola Clássica teve Beccaria como seu principal representante. Surgiu no contexto do Iluminismo, que pregava a liberdade individual e a limitação do poder do Estado para evita abusos e assegurar a adequação destes aos direitos naturais do homem. A punição dessa forma não seria mais um mero ato unilateral do governante, mas seguir um critério objetivo, a lei, como condição de legitimidade para sua ação. Agindo dessa maneira a lei adquiria um caráter didático de inibir infrações semelhantes.

Essa escola centra a responsabilidade penal no livre-arbítrio dos indivíduos. O crime seria motivado pelo prazer de sua recompensa, e, portanto, a função da pena seria eliminar tal prazer, alienando do criminoso as vantagens de sua conduta delituosa. Em decorrência, a ressocialização seria resultado do processo natural do medo da pena.

Contudo, as taxas de reincidência fizeram com que os cientistas criminais transferissem o cerne da questão do próprio sistema legal para as motivações do crime. E mais do que isso: a partir de então passam a ser procuradas leis gerais que explicassem o crime, daí essa nova escola do século XIX, a Positiva,  autoproclamar-se científica.

É a partir de então que é gestada a ideia do perfil do criminoso, ou seja, este poderia ser identificável através de características biológicas e psicológicas. A experimentação utilizou a comparação entre não-criminosos e criminosos em potencial, de acordo com a teoria positiva. A conclusão foi que os portadores de anomalias estariam propensos a ter comportamentos desviantes por tratarem-se de seres humanos em estágios iniciais da escala evolutiva.

O evolucionismo biológico proposto por Darwin foi rapidamente transplantado para o âmbito social. O modelo explicativo é simples: as sociedades humanas passam por fases aperfeiçoando-se tecnologicamente (ideia de progresso) até alcançarem o último grau de civilização. As sociedades e, no nosso caso em estudo, os criminosos eram fósseis vivos, remanescentes de um estágio de desenvolvimento anterior.

Ainda que com algumas variações, os teóricos desta corrente utilizaram-se de vários outros determinismos que segundo eles, promoviam o desenvolvimento de uma “personalidade criminosa” como a cultura, o ambiente natural e o atavismo.

O ponto de encontro, todavia, é sempre o indivíduo, ou melhor, expondo, uma anormalidade, seja ela biológica, psicológica ou social no indivíduo criminoso, e por isso mesmo, conferindo todo poder e direito para a sociedade tutelá-lo em defesa dos cidadãos honestos.

Os trabalhos atuais sobre crime e criminalidade saem desses enfoques tradicionais, colocando em debate novas questões a exemplo dos trabalhos de Sabadell, Magalhães e Ribeiro. Os trabalhos destes autores levantam a hipótese de que o crime é uma construção social, influenciada por fatores políticos e econômicos e as relações entre sistema penal, sociedade e os ditos criminosos.

Ribeiro dedica inclusive um capítulo de sua obra “O mito da função ressocializadora da pena” ao processo de estigmatização sofrido pelos condenados durante o período em que passam cumprindo pena e depois que alcançam a liberdade, demonstrando influências da Teoria da Rotulação que é assim definida por Giddens:

As pessoas que representam as forças da lei e da ordem, ou que têm a capacidade de impor aos outros suas definições de moralidade convencional, são responsáveis pela maior parte da rotulagem. Os rótulos criam categorias de desvio expressam, portanto, a estrutura de poder da sociedade. Em geral, as regras em termos das quais de define o desvio são formuladas pelos ricos para os pobres, pelos homens para as mulheres, pelas pessoas mais velhas para os mais jovens e pelas maiorias técnicas para os grupos minoritários. [...]

A rotulação não afeta apenas a maneira como os outros veem um indivíduo, mas também influencia o sentido individual do eu. [...]. O processo de “aprender a ser desviante” tende a ganhar destaque das mesmas organizações que são supostamente instituídas para corrigir o comportamento desviante – prisões e organismos sociais. (2005: 178).

De acordo com Ribeiro, essa rotulação está ligada a dois fatos: à função simbólica do direito, em especial do direito penal como portador da justiça, criando um sentimento forjado de segurança e estabilidade entre os cidadãos e à discrepância entre o discurso penal e a sua concretização verificada no sistema penal brasileiro.

O Direito tem sofrido com um grave abismo entre o propósito de suas leis e a sua aplicação, gerando a ineficácia das mesmas por uma gama de fatores que englobam a inércia política a corrupção, a falta de meios para a sua instrumentalização e da falta da conexão com a realidade, este último atingindo um princípio basilar proposto por Reale, o da tridimensionalidade do direito.

Quando, pois, dizemos que o Direito se atualiza como fato, valor e norma é preciso tomar estas palavras significando, respectivamente, os momentos de referência fática, axiológica e lógica que marcam o processus da experiência jurídica, o terceiro momento representando a composição superadora dos outros dois, nele e por ele absorvidos e integrados. (REALE, 2009: 103-104).

Segundo Ana Lúcia Sabadell, os adeptos da concepção evolucionista da sociologia jurídica contestam a exclusividade de um método jurídico tradicional, afirmando que a sociologia deve interferir ativamente na elaboração, no estudo dogmático e inclusive na aplicação do direito. É necessário, em muitos casos, que o aplicador do direito recorra a estudos sociológicos e consulte peritos para comprovar fatos e constatar a opinião da sociedade em casos juridicamente relevantes. Os evolucionistas também defendem a ideia de que o magistrado sempre faz um juízo de valor e nunca aplica a lei de modo “puro”. Sendo assim, a sociologia deveria sim tentar persuadir o juiz a aplicar um direito mais justo, em sintonia com a realidade e as necessidades sociais.

Mas o problema não perpassa somente a seara jurídica, antes relaciona-se com uma série de interesses que envolve as funções latentes do direito penal. Merton estabelece uma diferença entre função manifesta e função latente: a primeira diz respeito ao objetivo declarado de uma determinada ação ou órgão; a segunda concerne aos sentimentos e/ou interesses implícitos nesses sistemas. Essa distinção torna-se importante na medida em que o trabalho sociológico envolve justamente as funções latentes do Direito.

A função manifesta do direito penal consiste na tutela e proteção de bens jurídicos (vida, propriedade, etc). Contudo, a sua resposta geralmente se dá quando já houve a lesão a esses direitos, o que conduz à descrença na sua eficácia, entrando em cena, por conseguinte, suas funções simbólicas.

A ineficácia começa a servir como justificativa para a tomada de medidas com o intuito manifesto de enrijecer o sistema, mas de forma latente, assume a função de controle social. Tal situação acaba ganhando amplitude com a importância midiática que ganham os crimes e a violência urbana, sobretudo quando causam comoção pública, o que leva a população a reclamar atitudes endurecedoras pelo Estado, formando-se assim um círculo vicioso.

As punições sob essa ótica atendem muito mais a uma função tranquilizadora da sociedade de que de fato, solucionam o problema da criminalidade. Nesse sentido, o arrefecimento de penas não contribui em nada para a solução da violência, com o agravante que quando aplicadas, atingem apenas “bodes expiatórios” selecionados.

Contribui ainda para tal estado de coisas, a grande força ideológica do simbolismo penal sobre a sociedade. Essa ideologia carrega o significado de que o direito penal é a chave para a resolução de todos os males sociais, mas por ironia, desvinculada deles. Depreende-se que a grande invasão que o direito penal efetivou desnecessariamente em outras áreas do Direito por meio da proliferação desenfreada de leis, mostra-se infértil.

Ribeiro denuncia a seletividade dos grupos ou indivíduos que sofrem as sanções fere a própria legitimidade de um Estado democrático de direito; também aponta que o discurso que se tornou praticamente um senso comum entre os estudiosos das leis de que a ineficácia decorre da falta de meios para a implementação destas acaba servindo como vantagem política. Boa parte dessas conclusões também são abordadas no curta metragem Tropa de Elite 2 do diretor José Padilha; nesse filme nota-se um hiato entre o discurso e a prática política que, inclusive  valem-se do problema da criminalidade para tirar proveitos pessoais nas personagens dos deputados Guaracy e Fortunato, além do governador do Rio de Janeiro na trama.

A divergência entre discurso e realidade não é exclusiva do direito penal. Diversos momentos históricos brasileiros revelam normas que se reduziram à letra morta como a supressão dos direitos individuais durante as ditaduras de 1937 e 1964, nas quais as garantias constitucionais perderam sua eficácia diante das imposições governamentais; as normas fiscais que, via de regra, surtem efeitos para os pequenos sonegadores, mas não fazem frente a empresas sonegadoras com grande poder econômico.

A razão do relativo sucesso do discurso penal a nível simbólico, além da promoção do sentimento de alívio é o fato de ser compartilhada, mesmo que involuntariamente pelos seus gestores (juristas e aplicadores do Direito). Essa forma de olhar o Direito remonta ao processo de positivação das normas que atravessa o mundo antigo – no qual, o processo decisório deixa de ser atribuição da divindade e passa a ser uma instância separada e especializada da sociedade. Os litígios deixam a esfera pessoal do arbítrio de um líder político (rei ou patriarca) e vai para a esfera pública dos tribunais.

Com a Modernidade, o Direito galga um novo degrau: sua sistematização por meio da codificação e positivação, sendo tomado como um complexo sem lacunas, um todo orgânico, o que vai balizar a lei, conferindo-lhe o status de fonte jurídica por excelência. Atualmente existe um consenso que classifica a noção do Direito coeso e sem brechas como uma ficção jurídica.

Seguindo essa linha de dedução, o Direito não só é na realidade um sistema aberto, sujeito à modificações a qualquer tempo como também contingencial, uma vez que suas transformações são regidas pelas mutações sociais. Por esse motivo o legislador em sua atividade legiferante vai optar por uma via dentre as muitas possibilidades plausíveis de regulamentação de um dado. Sua responsabilidade então aumenta proporcionalmente em relação ao número de pessoas atingidas pela legislação.

Não obstante, seja qual for a possibilidade escolhida, a via jurídica não solucionará o conflito, apenas porá termo a ele, o que nos remete a mais uma ficção jurídica definida nas palavras do autor “atribuindo à sentença o poder mágico de modificar a realidade através de sua simples prolação”. (RIBEIRO, 2006: 43).

Um dos modelos que visam à ressocialização do condenado é o do sistema penal, porém na prática ele não alcança essa meta, pela conjugação de diversos fatores na sua aplicação, dentre eles:

  •  Seu objetivo centra-se no medo que a pena incute, ignorando que este impacto psicológico não é uniforme entre os indivíduos, antes é influenciado pelo status, trações de personalidade, cultura, ambiente, etc;
  • Os outros personagens relacionados ao crime como a vítima e a comunidade são completamente apartados do processo; Dando relevo preponderantemente à punição, há uma inversão das prioridades: em vez da valorização da mudança comportamental dos condenados, o que é enfatizado é o castigo;
  •  Não interage com o social, na medida em que parte dos indivíduos é levada à marginalidade e ao crime por falta de perspectivas, tal como muitos que deixam o sistema prisional e não conseguem inserir-se no mercado de trabalho.

Esse arquétipo é herança da Escola Positiva que formulou sua teoria tendo o criminoso como cerne. A pena teria então duas finalidades: neutralizar o potencial de periculosidade dos criminosos mais perigosos e; ressocializar aqueles menos danosos. Isso seria possível por meio de programas e tratamentos desenvolvidos e fornecidos pelo próprio sistema penal, caso do método Reclamation Treatment (Técnica do Ludovico) retratada no longa A Laranja Mecânica de Stanley Kubrick, adaptado da obra homônima de Anthony Burgess.

Dois caminhos seriam afluentes desse modelo: a reintegração do indivíduo através de uma correta socialização, presumindo à priori que os agentes socializadores (família, escola, grupos de colegas e meios de comunicação de massa) não lograram êxito no primeiro processo de socialização; o segundo caminho prega a transformação dos valores aceitos pela sociedade.

Essa segunda alternativa é o ponto central na discussão dos homônimos  Laranja Mecânica que questiona a legitmidade da anulação do livre-arbítrio do criminoso pela sua manipulação psicológica através do Estado, além de outras indagações pertinentes ao tema algumas delas presentes no artigo de Roberto:

Poderá a violência ser erradicada da nossa sociedade? Que motivos subjazem à formação de gangues e por que se manifestam de modo tão violento? Poderá o Estado privar um indivíduo da sua livre vontade, transformando-o num “robot” que admite programação ou adestramento mental? Quais são as implicações daí decorrentes, uma vez analisadas as tecnologias de modificação do comportamento desviante? (ROBERTO, 2008: 59)

Tem-se que sujeitos desviantes, são aqueles que se recusam a viver de acordo com as regras seguidas pela maioria da sociedade, caso retratado no filme, onde o protagonista e seus amigos vivem em um mundo em que são donos da noite, aterrorizando as pessoas. Vemos uma Londres vanguardista, em que a sociedade vive uma realidade utópica, controlada por um governo manipulador e corrupto e uma criminalidade sem igual.

 Alex de Large, o protagonista, acaba sendo apenas mais um produto dessa civilização em decadência. De personalidade sociopata, o jovem lidera uma gangue e encontra prazer nas mais variadas formas de violência inspirado nas composições clássicas, em especial de Beethoven.

A história se inicia em um bar psicodélico, os “droogs”(gangue da qual Alex é líder), se vestem de forma diferenciada, de modo a demonstrar poder e virilidade. Os móveis e os adereços do local são na forma de mulheres nuas, de cujos seios saem bebidas feitas de leite e drogas, fazendo um mistura de inocência (leite) e malícia (drogas), sendo esse ambiente propicio para corroborar a queda de algumas teorias de explicação do crime. Por exemplo, Alex é um jovem branco, olhos azuis, cabelos loiros, classe média e compleição delgada, o que vai contra o perfil clássico de criminoso estabelecido pelos defensores das teorias biológicas, onde este seria negro e musculoso, pois segundo eles, as características inatas dos indivíduos seriam a causa do crime e desvio.

As ações dos “droogs” são batizadas por eles mesmos de “ultra-violentas”, escapam relativamente ilesas do olhar das autoridades, até que Alex, traído por sua gangue depois de cometer um assassinato, é capturado e mandado para a prisão, onde tendo contato com um experimento revolucionário de supressão de agressividade, que promete torná-lo um cidadão modelo, se voluntária, mas não com a intenção de torna-se um novo homem, mas sim de sair mais rápido da cadeia. Como as leis parecem não funcionar para conter a ação criminosa, o governo acabou por buscar novas formas de reinterar os “homens maus” na sociedade, transformando-os em homens bons, recorrendo dessa forma a mecanismos técnicos e psicológicos, testados na indução do comportamento de Alex. Aqui percebemos a presença da teoria psicológica para explicar os atos criminosos não somente de Alex, mas dos demais desviantes que viriam a ser tratados, pois ao se presumir que o desvio seja um sinal de que existe algo errado não com a sociedade, mas com o indivíduo, notando-se as causas do crime, como algo que estivesse fora do controle dele. Acreditando assim o governo ter encontrado a “cura” para esse problema, acaba por submeter Alex ao “tratamento” que consisti em uma associação básica de qualquer ato de violência física ou sexual a fortes dores, náuseas e vertigens. E é justamente durante a sua sujeição ao tratamento, chamado de Técnica de Ludovico, que Alex é obrigado a assistir a um filme sobre o nazismo, tendo como fundo musical a sua tão amada 9ª sinfonia de Beethoven, sob efeitos das drogas aquilo que até o presente momento lhe servia de inspiração para cometer as mais variadas formas de violência, agora passava a lhe provocar sofrimentos físicos.

Apesar da teórica devolução de Alex à sociedade como um novo homem, o mesmo tratamento que a priori serviria para impedir que ele atentasse contra a segurança das demais pessoas, acaba por fazer com que ele atente contra sua própria vida ao tentar suicídio. Isso traz uma reviravolta nos acontecimentos e o jovem Alex que até então, era tratado com medo e desprezo pela sociedade, passa a ser visto como uma vítima do Sistema. Nos momentos finais do filme podemos ver que Alex regressa a violência, ao se imaginar tendo relações sexuais na neve com uma mulher e ao mesmo tempo sendo aplaudido por espectadores de classe alta.

A Laranja Mecânica lança um olhar cético tanto sobre a sociedade, quanto sobre o indivíduo, pois deixa a dúvida se é o homem que corrompe a sociedade ou é essa que o corrompe. O homem seria naturalmente mau, vemos isso na falta de esperanças que é deixada no final do filme quanto a “cura de Alex”, porém também demonstra que o meio social seria corrupto por natureza, o que é evidenciado na recepção de Alex após ter sido teoricamente curado e tratado para ser reinserido nele; seus pais o rejeitam e o expulsam de casa, aqueles que ele havia agredido, passam a agredi-lo também, acontecendo assim uma inversão de papeis. Podemos então usar um pouco da teoria da rotulação e nos perguntar, por que afinal a violência praticada por Alex contra a sociedade é considerada mais nociva do que as das instituições sociopolíticas contra ele? Alex espanca, mata e estrupa, de fato, todos são crimes contra o ser humano. Porém, vemos cenas como a que os antigos comparsas de gague de Alex, Dim e Georgie tornados policiais do governo, espancam Alex, a única diferença agora é que a selvageria passou a ser legitimada pelo Estado. Além das consequências do método Ludovico que são  para Alex, pois este implica na perda da capacidade de escolha do jovem, privando-o, nas palavras do capelão do presídio, de sua essência humana, o livre-arbítrio. Dessa forma, a sociedade assume postura tão brutal quanto a dos gângsteres.

Contudo a questão principal do filme está na dúvida sobre se devemos ser “bons” porque assim queremos ou porque a sociedade nos exige essa bondade? O governo tenta forçar Alex a ser totalmente bom, mas ao se tratar de uma bondade imposta, ela não é totalmente alcançada; vemos isso quando Alex retorna ao mundo da violência.  Considera-se desta forma que o mal e o bem devam existir lado a lado, para que se possa incorrer uma escolha, pois recorrendo a noção de livre arbítrio, presume a consciência das escolhas a disposição, antes de se optar por qualquer uma delas, sabendo claro que ao escolher existe a possibilidade de sanção seja ela positiva ou negativa. Afinal sabemos que a essência do homem é a liberdade de escolha, mas a essência da sociedade é o homem, e ao se perturbar qualquer elemento nesse aparente simples sistema, a desordem é gerada.

Em todos os casos, no entanto, observa-se a onipresença do Estado como dirigente de quaisquer políticas adotadas. Também é patente a ideia de que o desviante carrega em maior ou em menor grau, uma anomalia, que o torna incapaz de assumir atitudes dentro dos ditames moralmente aceitáveis. Dando papel central à figura do Estado, essa engrenagem aumenta o risco de criar um Estado de controle, dado a excessos e totalizante.

Acrescente-se a isso as condições sub humanas corriqueiras nos presídios do nosso país (superlotação, comida de má qualidade, violência e até mesmo a violação de direitos humanos, a exemplo do recente caso de torturas e espancamentos na Penitenciária de São Pedro de Alcântara em Santa Catarina ). Nelas, paradoxalmente, a exposição a novos crimes é potencializada pelas relações de poder e corrupção dentro do próprio aparato prisional.

Ribeiro identifica ainda uma teoria intermediária que orbita entre a necessidade de defesa da sociedade e o fim último de readaptar socialmente o infrator, a Ideologia da Defesa Social que tem como princípios norteadores:

  • A legitimidade do Estado para reprimir a criminalidade e garantir a segurança social, utilizando para isso quaisquer dispositivos necessários;
  •  O maniqueísmo que situa o delito como mal e a adequação aos valores postos, o bem;
  •  A culpabilidade cultivada pelo indivíduo antes mesmo de sofrer qualquer sanção;
  •  A pena com o escopo de prevenir o crime;
  • A isonomia na aplicação da lei;
  • A ideia dos direitos naturais como correspondentes aos direitos protegidos pela seara penal.

De acordo com o autor essa tese é o plano de convergência entre os dois paradigmas mais expostos. Por enquanto na nossa realidade apenas o objetivo punitivo tem sido alcançado.


3 Os problemas encontrados no sistema prisional brasileiro

A regulamentação atinente à execução penal no Brasil encontra-se distribuída em parte da Constituição Federal de 1988, do Código Penal de 1940 e da Lei de Execução Penal (7210/84). Esse conjunto lega um amplo rol de direitos individuais ao condenado, bem de acordo com a ideia de Estado Democrático de Direito. Vamos nos deter um pouco no artigo 5º inciso XLIII: “A pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”.

Avaliando a realidade, obervamos que nem mesmo esse preceito que não requer maiores entraves à sua implementação é respeitado. O que ocorre é uma aglomeração de pessoas nas instituições penitenciárias desconsiderando-se esses critérios; apenados com diferentes idades e até de sexos distintos são aglutinadas ao acaso como denunciado na Delegacia de Abaetetuba no interior do estado do Pará em 2007.

Pelo teor do artigo 5º percebemos como o texto legal recebeu influência da Ideologia da Defesa Social, ficando clara a sua intenção de reinserir o apenado no mercado de trabalho e na convivência com a sociedade. Embora a idéia predominante entre os aplicadores da justiça seja de que a realização do prenunciado pelos textos legais é inviável, acreditamos sim, ser isto possível, através de mudanças estruturais e do investimento adequado nos recursos técnicos e humanos necessários; a resolução para as condições sub humanas em que se acham as penitenciárias brasileiras não carecem de mudanças legais, mas de mudanças político-administrativas.

A opção pela pena restritiva de liberdade é um fenômeno relativamente recente. Na Antiguidade, as principais sanções eram o banimento temporário ou vitalício, as penas físicas e o pagamento de multas. As prisões eram utilizadas apenas como garantia de execução das penas impostas.

Durante a Idade Média as sanções mais comuns eram os tormentos físicos e as punições executadas necessariamente de forma pública, para servirem como exemplo. O objetivo era a persecução do arrependimento, daí inclusive, originando-se o termo “penitenciário”, de penitência.

Nas sociedades modernas a diminuição dos crimes violentos e o aumento dos crimes econômicos, resultado indireto da propagação do capitalismo conduziu ao abandono gradativo das penas corporais e a sua substituição pelos trabalhos forçados, obedecendo aos moldes fabris. Surgem as chamadas prisões celulares, com exigência do silêncio e do isolamento, propostas por grupos religiosos protestantes. Ainda assim, algumas punições desumanas como as galés, utilizadas desde a Antiguidade continuaram persistindo principalmente em nações marítimas.

Nos modelos filadélfico e pensilvânico, o trabalho não visava fins lucrativos, mas tão somente manter ocupada a mente dos reclusos. Críticas severas foram dirigidas a esses sistemas, no tocante à questão do isolamento psicológico que constitui uma categoria de tortura. Ferri assinala que esse método prejudicava a ressocialização, ponto bem pertinente, já que é impensável ressocializar sem interagir com outrem; e mais uma vez o método centra-se no indivíduo, ignorando os fatores externos ao crime.

O sistema filadélfico entrou em declínio, contudo, devido às mudanças sócio-econômicas. Com o fim da escravidão e a expansão territorial norte-americana, houve incremento na procura por mão-de-obra, dando origem ao sistema das penitenciárias futuras, onde os prisioneiros produziam para o mercado. Assim, a noção de isolamento foi superada pelas próprias necessidades de comunicação que o trabalho sob esse novo modelo impunha.

Outro modelo proposto foi o progressivo, no qual era concedida a diminuição da pena privativa de liberdade mediante a colaboração do apenado através de boa conduta. Havia nele quatro fases:

1 – Isolamento celular e alimentação reduzida (expurgação e penitência, ainda como resquícios dos modelos prisionais anteriores);

2 – Trabalho diurno e reclusão celular noturna;

3 – Dedicação a atividades produtivas, recebendo remuneração e ficando relativamente livres para ter contato com o mundo externo;

4 – Liberdade controlada por algumas restrições.

A principal crítica a esse modelo foi a superficialidade da regeneração dos prisioneiros, já que a mudança comportamental pode ocorrer apenas pela acumulação de pontos para alcançar privilégios e não por uma ação consciente, pois o processo de mudança não é instantâneo nem homogêneo, pois cada indivíduo carrega valores e personalidades distintos. Antes de constituir-se em um autômato obediente ao Estado, o ser humano deve ter o benefício de fazer escolhas próprias.

De qualquer forma, desde o seu surgimento enquanto sanção individualizada, a privação de liberdade tem sido o recurso penal mais utilizado na atualidade, inclusive no Brasil que conta com a maior população carcerária da América Latina em números absolutos. Dados baseados nas pesquisas realizadas pela Human Rights Watch entre 1997 e 1998 em quarenta presídios espalhados em sete estados do país indicam que o retrato social dos detentos no país abrange principalmente os pobres, negros e com baixo nível de escolaridade.

Abordam também vários problemas recorrentes ao sistema como, por exemplo, a superpopulação nas celas, chegando ao ponto de em determinados locais, os presos amarrarem-se às grades, comprarem espaços ou até matarem-se para reduzir a superlotação como é mencionado na canção Cachimbo da Paz de Gabriel, o Pensador: “Tá rolando um sorteio na prisão, pra reduzir a superlotação/ Todo mês alguns presos devem ser executados e o índio dessa vez foi um dos sorteados”. Além disso, tal estado de coisas promove fugas e rebeliões, causando sério perigo à segurança pública.

As assistências previstas pela Lei de Execução Penal de 1984 não são observadas de acordo com as exigências nela contidas, dentre elas a assistência médica, ressaltando-se que boa parte das moléstias que vitimam os presidiários são causadas pela insalubridade e falta de higiene nas penitenciárias. O nível de infecção de doenças sexualmente transmissíveis entre a população carcerária brasileira é alarmante. A falta de médicos, tratamentos e medicamentos concluem o retrato do descaso.

Outro dispositivo cumprido apenas em parte é o referente às oportunidades de trabalho, educação e lazer. A própria superlotação nas instituições penitenciárias é um forte impeditivo para a educação e o treinamento profissional, dado dramático, especialmente quando o confrontamos com o fato que 87% dos presos ao redor do Brasil não possuem o ensino fundamental completo.

Fenômeno semelhante é constatado em relação às atividades recreativas dos detentos. Até mesmo o tempo dedicado a simples banhos de sol são extremamente reduzidos. O mais preocupante é a existência de um código de leis próprio obedecido pelos detentos e que se coloca acima da própria lei posta pelo Estado. Este código contra legem envolve vinganças pessoais, cobrança de espaços e uma clara hierarquia de comando entre os presos, bem como grupos de marginalizados, nos quais estão inclusos, os estupradores, homossexuais e caguetas (delatores).

A escassez de profissionais da área jurídica para prestação de assistência aos presos possibilita que muitos presos permaneçam em reclusão por um lapso de tempo bem maior do que o estabelecido em suas sentenças. O que se observa na prática é que a defesa seus interesses é feita apenas ao nível formal, não contando com o devido acompanhamento, atingindo sobremaneira aqueles acusados de baixa renda. Os prisioneiros acabam por ficar totalmente alheios aos processos nos quais são os maiores interessados.

A despeito dos mecanismos legais de correição e fiscalização cabíveis ao Ministério Público, os juízes e os Conselhos da Comunidade a efetividade de estratégias ressocializadoras está comprometida pela falta de recursos humanos. As visitas íntimas, consideradas um dos poucos pontos positivos do nosso sistema prisional são marcadas pelo constrangimento das revistas dos visitantes, pela falta de privacidade e de locais específicos. Ocorrem diferenciações preconceituosas entre presídios masculinos e femininos, onde raramente são permitidas. A falta de mecanismos de segurança da saúde, propagando a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis.

O contexto penitenciário desfavorável ao processo ressocializador do presidiário no Brasil conduz à conclusão de que, enquanto não puderem ser modificadas as estruturas executoras do sistema penal, o mais lógico é a variação de penas que sejam priorizadas em detrimento da pena privativa de liberdade, colocando esta apenas como solução última aos indivíduos agentes de transgressões de maior gravidade.


4 CONCLUSÃO

As teorias sociológicas do crime constituíram-se em uma tentativa de explicação para determinar as motivações para o crime, relacionando-as a determinantes biológicas ou psicológicas inerentes ao próprio criminoso. Apesar de sofrerem duras críticas na atualidade, devemos considerar que cada teoria é fruto do seu próprio tempo, forjada pelo instrumental técnico da época e cada uma contribuiu para enriquecer as discussões sobre o crime.

Ao longo da história, a pena privativa de liberdade foi ganhando novas conotações. Passou de punição acessória e, apenas garantidora do pagamento de dívidas e da custódia dos acusados, ao patamar de principal medida punitiva nas sociedades contemporâneas. Seus propósitos são a compensação dos danos às vítimas e a ressocialização dos criminosos; contudo, o que se percebe, é que este último escopo não tem sido efetivado com sucesso, tornando-se as penitenciárias, meros repositórios de pessoas, já que perderam até mesmo seu efeito neutralizador de crimes e desvios e a prática demonstra a persistência da criminalidade dentro das próprias instituições prisionais.

Por meio das pesquisas utilizadas no desenvolvimento deste artigo, tivemos maior contato com a realidade do nosso sistema prisional e de suas limitações no tocante ao seu objetivo ressocializador, antes trazendo para os apenados a estigmatização, o que tem sido atestado pelas alarmantes estatísticas de reincidência desses indivíduos ao crime.

Todo esse contexto nos conduz à reflexão de que o cerne do problema não repousa na legislação, ou seja, as transformações necessárias à mudança dessa situação não implica alterações no direito penal, mas nas formas de execução das penas, especialmente das instituições penitenciárias, bem como promover a diversificação para outras formas de punição.

O debate sobre essas modificações não deve restringir-se ao meio acadêmico e aos juristas e aplicadores da lei, mas estender-se para toda a sociedade, que, aliás, só tem a lucrar com um processo concreto e vitorioso de ressocialização dos apenados, tendo ela própria, crucial participação nesse processo.

Assim, esperamos que esses diálogos venham trazer luz aos problemas discutidos ao longo do trabalho, a fim de que possamos formar indivíduos integrados, não somente através de penas ressocializadoras, mas também por meio de outros canais de socialização, notadamente as famílias e as escolas, instituições de extrema importância na formação da personalidade humana.


REFERÊNCIAS

BIBLIOGRÁFICAS:

BRASIL. Constituição da república federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2011.

COSTA, Cristina. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Moderna, 2005.

DOYLE, Arthur Conan. O arquivo secreto de Sherlock Holmes. Trad. De Antonio Carlos Vilela. São Paulo: Melhoramentos, 2004.

GIDDENS, Anthony. “Crime e Desvio” (cap. 8). In: Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.

MAGALHÃES, Carlos Augusto Teixeira. “Teoria sociológica, políticas públicas e controle do crime”. In: Caderno de Filosofia e Ciências Humanas, nº 11, out. 1998. Disponível em: <http://www.policiaeseguranca.com.br/teoria_soc.htm>.

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2009.

RIBEIRO, Cláudio Luiz Frazão. O mito da função ressocializadora da pena: a intervenção do sistema penal como fator de estigmatização do indivíduo criminalizado. São Luís: AMPEM – Associação do Ministério Público do Estado do Maranhão, 2006.

ROBERTO, Isabella. Crime e castigo em A Laranja Mecânica, de Anthony Burgess: abordagem criminológica de usos da violência. In: Via Panorâmica: Revista eletrônica de estudos anglo-americanos/an anglo-american studies journal 2. Ser. 1 (2008). P.59-82. Disponível em: <http://ler.letras.up.pt>. Acesso em: 12. out .2012.

ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1988.

SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

FILMOGRÁFICAS:

A Laranja Mecânica. Direção: Stanley Kubrick, 1971. (2h 18 min).

UM sonho de liberdade. Direção: Frank Darabont, 2005. (142 min)

TRANSPOINTING – sem limites. Direção: Danny Boyle, 1996. (1h 36 min)

TROPA de Elite. Direção: José Padilha, 2007. (1h 18min).

TROPA de Elite 2: o inimigo agora é outro. Direção: José Padilha, 2010. (1h 55min).

FONOGRÁFICAS

GABRIEL, O PENSADOR. Quebra-cabeça. 1997. 1 CD, Faixa 1 (5min 32s)


Autores


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COIMBRA, Amanda; SANTOS, Cleidmar Avelar. As abordagens das teorias sobre crime. . Um diálogo com a obra Laranja Mecânica de Stanley Kubrick. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4879, 9 nov. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53613. Acesso em: 18 abr. 2024.