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A crise habitacional no Brasil e o direito à propriedade

Os institutos da concessão de direito real de uso (CDRU) e da concessão de uso especial para fins de moradia (CUEM) como solução viável ao desenvolvimento urbano e enfrentamento da crise

A crise habitacional no Brasil e o direito à propriedade: Os institutos da concessão de direito real de uso (CDRU) e da concessão de uso especial para fins de moradia (CUEM) como solução viável ao desenvolvimento urbano e enfrentamento da crise

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São muitos os prédios inutilizados pela administração pública que não estão exercendo a sua função social, e sim dando despesa para os cofres públicos. Quantos desses, hoje abandonados, poderiam servir de moradia para a população?

Introdução:

O Brasil encontra-se assolado numa crise habitacional urbana com somatório de um conglomerado de problemas que vão desde a carência de infraestrutura ao fortalecimento de regiões periféricas e o alarmante número de famílias sem casa própria. Os institutos da Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) e da Concessão de Uso Especial para fins de moradia (CUEM) se apresentam como um caminho inicial para se enfrentar o problema, no entanto, esses são pouco conhecidos e raramente utilizados.

Nesse sentido, o presente trabalho surge com o objetivo precípuo de investigar a questão habitacional no Brasil e analisar os principais entraves para a aplicação dos institutos supracitados.


1 O direito à propriedade

Abarcada no bojo do art. 5º, XXII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988), a ideia de propriedade, prevista desde o Código de Hamurabi, foi moldada no decorrer do século XX visando um objetivo mais social até chegar ao patamar de direito real de maior destaque do ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, não é suficiente falar em propriedade sem considerar o cumprimento de sua função social, que é um dever fundamental, previsto no inciso XXIII do artigo supra da CRFB/1988.

A dificuldade em se conceituar o direito real de propriedade se deve às suas mudanças ideológicas sofridas ao longo dos séculos. Não obstante, pode-se definir o domínio, como era referido classicamente, como um direito que vincula um sujeito a toda coletividade com a coisa, dando-lhe os poderes de usar, fruir, dispor e reivindicar, e o direito de possuir o bem, assim como o dever de fazer cumprir com a função social da coisa e a proteção erga omnes da propriedade alheia (QUINTANELLA; DONIZETTI, 2017).

1.1 Função social da propriedade

No que tange à expressão função social, esta advém do latim functio, cujo significado é cumprir algo, desempenhar um dever ou uma atividade, sendo um princípio inerente a todo direito subjetivo. É considerado redundante indagar acerca de uma função social do direito, uma vez que, pela própria natureza das coisas, qualquer direito subjetivo deveria ser direcionado ao princípio da justiça e bem-estar social. Desse modo, fez-se necessária a inserção de tal princípio na legislação para que houvesse o resgate de valores, uma vez que a evolução social fez uma sobreposição do interesse privado sobre o coletivo (FARIAS; ROSENVALD, 2015).

Portanto, ao cogitarmos da função social, introduzimos no conceito de direito subjetivo a noção de que o ordenamento jurídico apenas concederá merecimento à persecução de um interesse individual se este for compatível com os anseios sociais que com ele se relacionam. Caso contrário, o ato de autonomia privada será censurado em sua legitimidade. Todo poder na ordem privada é concedido pelo sistema com a condição de que sejam satisfeitos determinados deveres perante o corpo social (FARIAS; ROSENVALD, 2015. p. 256).

A propriedade deve servir para manter a sociedade saudável, garantindo que todos tenham acesso aos bens necessários, bem como para impulsionar a economia, gerando empregos e renda. A importância de verificar se um bem cumpre ou não com a sua função social é a possibilidade de o Estado poder intervir sobre ele (QUINTANELLA; DONIZETTI, 2017).

A função social da cidade pode redirecionar os recursos e a riqueza de forma mais justa, promovendo o combate a situações de desigualdade econômica e social vivenciadas, garantindo um desenvolvimento urbano sustentável visando a proteção aos direitos humanos, evitando-se a segregação de comunidades carentes e incorporando os diversos setores das sociedades nos devidos direitos habitacionais (FARIAS; ROSENVALD, 2015).

Conforme o art. 182, §2º da CRFB/1988, “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor” (BRASIL, 1988). A referida norma complementa o art. 5º, inciso XXIII, ao informar o que se concebe como função social de um imóvel urbano. A propriedade urbana que desafie o plano diretor[1] será censurada pelo ordenamento jurídico (FARIAS; ROSENVALD, 2015).

Contrariando tal disposição legal, estatísticas demonstram um número elevado de domicílios vagos, gerando uma contradição entre a demanda por moradia e a quantidade de imóveis desocupados. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD 2015, o Brasil possui 7,906 milhões de imóveis vagos, 80,3% dos quais localizados em áreas urbanas e 19,7% em áreas rurais. Desse total, 6,893 milhões estão em condições de serem ocupados, 1,012 milhão estão em construção ou reforma (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2018).

Além disso, outro fator relacionado à questão habitacional no Brasil é a impossibilidade de se obter maiores detalhamentos sobre as condições, localização, situação da propriedade e o padrão da construção desses estoques de moradias.

No tocante a esse aspecto, o relatório da Fundação João Pinheiro sobre o Déficit Habitacional, realizado em 2015, cuidou de apresentar definição acerca do que vem a ser esse decréscimo de moradias, ligando-o diretamente às deficiências do estoque de moradias.

Como inadequados são classificados os domicílios com carência de infraestrutura, adensamento excessivo de moradores em domicílios próprios, problemas de natureza fundiária, cobertura inadequada, ausência de unidade sanitária domiciliar exclusiva ou em alto grau de depreciação. São considerados domicílios carentes de infraestrutura todos os que não dispõem de ao menos um dos seguintes serviços básicos: iluminação elétrica, rede geral de abastecimento de água com canalização interna, rede geral de esgotamento sanitário ou fossa séptica e coleta de lixo (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2018, p. 26).

O relatório apresentado inclui, ainda, o conceito da situação das casas sem condições de serem habitadas em razão da precariedade das construções ou do desgaste da estrutura física; a necessidade de incremento do estoque, em função da coabitação familiar forçada; os moradores de baixa renda com dificuldades de pagar aluguel nas áreas urbanas e os que vivem em casas e apartamentos alugados com grande densidade, além da moradia em imóveis e locais com fins não residenciais (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2018).


2 Crise Habitacional no Brasil

A crise habitacional no Brasil sempre existiu, no entanto, nota-se uma atuação ineficiente por parte do Estado no sentido de apresentar propostas destinadas ao enfrentamento do problema. Vê-se um Estado que acompanha as regras do mercado imobiliário e acaba por acentuar a desigualdade social ao empurrar a população de baixa renda para as áreas periféricas.

Sob o aspecto temporal, com a abolição da escravatura, a ocupação urbana no Brasil adquiriu maior intensidade, uma vez que havia uma quantidade imensa de recém libertos vagando pelas cidades em busca de trabalho e melhores condições em sobrevivência. No entanto, mesmo diante da grande demanda habitacional, nesse período o Estado estava mais preocupado com fins estéticos visando atingir a tão sonhada modernização (PIMENTEL, 2014).

As autoras Soraggi e Aragão (2017) afirmam que durante o processo de industrialização e urbanização do Brasil houve o desenvolvimento de políticas habitacionais que consolidaram a moradia como mercadoria promovendo um efeito segregador onde o acesso ao espaço urbano tornou-se um privilégio.

A formação de favelas nas periferias das grandes cidades e nas áreas ambientalmente frágeis, a ocupação de cortiços, a produção de parcelamentos clandestinos e/ou irregulares e a ocupação de terras públicas e privadas figuram, desde o século XIX, dentre as soluções encontradas pelas famílias de renda mais baixa para produzir seus espaços de moradia. Estes espaços são pedaços de cidades caracterizados, especialmente, pela precariedade da infraestrutura urbana e pela insegurança da posse (SORAGGI; ARAGÃO, 2017).

 Outro grande marco em relação à política habitacional brasileira ocorreu a partir do século XX com o desenvolvimento de programas e mecanismos regulatórios destinados a solucionar os problemas relacionados à moradia, podendo se destacar o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) (BRASIL, 2018).

O PMCMV foi lançado em março de 2009 e regulamentado pela Lei nº 11.977 de 2009, a qual estabelece em seu art. 1o que o programa visa “criar mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias com renda mensal de até R$ 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta reais)” (BRASIL, 2018).

Embora o PMCMV tenha contribuído para a inserção de famílias até então excluídas do mercado da moradia, através de subsídios e condições mais favoráveis de financiamento da casa própria, famílias com renda igual ou inferior a um salário mínimo e famílias com renda proveniente de atividades informais não conseguem se enquadrar nas condições estabelecidas pelo programa. (SORAGGI; ARAGÃO, 2017, p. 241).

Ainda, conforme o entendimento das autoras, além de não ter apresentado uma proposta de enfrentamento da questão fundiária, tal programa fez com que se reforçasse a concentração da população de baixa renda em áreas afastadas e periféricas.

Atualmente, segundo dados do relatório mencionado, o déficit habitacional estimado corresponde a 6,355 milhões de domicílios, dos quais 5,572 milhões, ou 87,7%, estão localizados nas áreas urbanas e 783 mil unidades encontram-se na área rural (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2018).

Nesse contexto surge o questionamento acerca da possibilidade de se utilizar os imóveis públicos desocupados como moradia para aqueles que não a possuem, suprindo assim a demanda habitacional brasileira ou boa parte dessa. Ocorre que a CRFB/88 veda a usucapião de bens públicos, conforme estabelece em seus arts. 183, §3º e 191, parágrafo único (BRASIL, 1988).

Há, no entanto, uma alternativa que poderia contribuir enormemente para o enfrentamento do problema, qual seja a aplicação dos institutos da Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) e a Concessão de Uso Especial para fins de moradia (CUEM). Todavia, esses institutos são pouco conhecidos e consequentemente, eventualmente utilizados.


3 Ocupações urbanas

Diante da falta de moradia, inicia-se uma espécie de disputa pelo espaço, onde há o surgimento e fortalecimento das ocupações. Os assenhoramentos em propriedades urbanas se caracterizam pela entrada em imóvel ou terreno urbano que se encontre abandonado e sua consequente transformação em moradia através de decisões e ações de um coletivo. (ASSUMPÇÃO; SCHRAMM, 2018).

Em contraposição, destaca-se a atuação dos movimentos sociais de luta pelo direito à moradia, cujas ações incluem o confronto direto aos interesses especulativos dos proprietários de terra e dos agentes imobiliários, não apenas através da defesa da função social da propriedade, mas também através de estratégias de ocupação de terrenos ociosos e/ou subutilizados. (SORAGGI; ARAGÃO, 2017, p. 242).

Sobre a importância de se reconhecer a resistência das ocupações urbanas, Nascimento (2006, p. 161) afirma que “Esses movimentos são legítimas forças para reprimir as práticas e procedimentos da associação Capital-Estado em contraste com a liberdade de criação a partir da realidade que se quer modificar”.

Apesar de constituírem-se como movimento político surgido a partir da união de milhares de pessoas em busca do direito à moradia, muitas vezes as ocupações são definidas pelo discurso hegemônico como “invasões”. Tal nomenclatura, surgida a partir da estigmatização além de causar numerosos inconvenientes, acaba por justificar o despejo e as repressões violentas (SORAGGI; ARAGÃO, 2017).

Verifica-se que o termo a ser utilizado depende muito da pessoa que profere o discurso, sendo que cada conceito traz uma valoração distinta e resulta em reações diferentes. Sob a ótica do proprietário do imóvel ou do Estado tais ações consistem em invasões, à medida que ferem o direito à propriedade; por outro lado, na perspectiva daqueles que se veem desprovidos de direitos, inclusive o de acesso à moradia, consistem em ocupações (NOBRE, 2014).

A principal diferença, no entanto, entre os dois termos reside no fato de que as ocupações ocorrem em imóveis urbanos desocupados, enquanto as invasões ocorrem em imóveis que não se encontram vagos, sendo que ambos resultam na reação do proprietário.

A invasão é o esbulho possessório pelo ilícito recurso à força como forma de acesso a bens jurídicos. A propriedade é esfacelada em seu conteúdo mínimo, sem qualquer respaldo no ordenamento jurídico. Já a ocupação é um ato-fato de ingresso em bens abandonados pelo proprietário e, portanto, privados de qualquer função social, eis que desprovido de significado por parte de quem o titularizaria. (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 76)

No que se refere à maneira como as ocupações são vistas socialmente, de uma forma geral verifica-se certa tendência à criminalização do movimento. A criminalização destes movimentos tem sido um meio utilizado para se justificar a forte repressão por parte do Estado visando combater tais práticas e reforçar os interesses corporativos, o que tem contribuído para o aumento dos conflitos, das contradições e da perpetuação da desigualdade social (NOBRE, 2014).

Na concepção de Nobre (2014), no contexto atual, a criminalização dos movimentos sociais funciona como um artifício que tem como fim deslegitimar as ações sociais, mormente aquelas que visam questionar a ordem social vigente e lutam por melhores condições de vida.

Nos conflitos territoriais aparecem, com mais intensidade, as relações de força e poder. Por um lado, as forças do mercado e do poder do Estado atuam no sentido de desqualificar as ações sociais e sustá-las. Por outro lado, os movimentos sociais resistem e, através de suas ações, forçam rupturas (NOBRE, 2014, p. 138).

Em um contexto geral, a principal instituição que retrata a visão equivocada sobre o que venha a ser ocupação, é a mídia. As publicações veiculadas em periódicos, noticiários televisivos, em especial, acabam por criar uma imagem criminosa dos movimentos sociais e seus integrantes por meio de notícias tendenciosas, informações distorcidas e “meias verdades”. (PAVAN, SILVA, 2017). Sendo assim, percebe-se o tamanho da responsabilidade da mídia na influência do processo de criminalização dos movimentos habitacionais, uma vez que vinculam sempre a imagem de transgressores aos ocupantes.


4 Concessão do direito real de uso e concessão de uso especial para fins de moradia

A concessão de uso especial para fins de moradia e a concessão de direito real de uso, são direitos reais sobre coisa alheia, introduzidos no Código Civil de 2002 (CC/2002), por meio do art. 10 da Lei 11.481 de 31 de maio de 2007. Em razão disso, o art. 1225 passou a prever mais dois direitos reais.

Impende ressaltar que nos dois casos há apenas a transferência da posse para os usuários, constituindo em favor deles um direito real, sendo que o bem continua pertencendo à Administração Pública. Nesse sentido, o art. 1214 do CC/2002 estabelece que, por se tratar de direito de habitação de casa alheia, o usuário beneficiado não a pode alugar, nem emprestar, conforme os princípios da inalienabilidade, impenhorabilidade e imprescritibilidade, mas simplesmente ocupá-la com sua família.

Concessão do direito real de uso

No tocante ao direito real de uso, a sua fruição é limitada, de forma que tem como função a satisfação das necessidades da família atendida. Nesse prisma, Farias e Rosenvald (2015) entendem que o termo “necessidade” previsto na lei é indeterminado, sendo que a sua dimensão será definida tendo-se como base a condição social do titular do direito, bem a realidade da comunidade onde está inserido, além da quantidade de pessoas que dependam desse direito para ter onde morar.

Di Pietro (2017) define concessão, em sentido amplo, como o contrato administrativo pelo qual a Administração confere ao particular a execução remunerada de serviço público, de obra pública ou de serviço de que a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, ou lhe cede o uso de bem público, para que o explore pelo prazo e nas condições regulamentares e contratuais.

O modelo jurídico de direito real, conforme preceituam Farias e Rosenvald (2015), se difere da concessão de uso (contrato de natureza meramente obrigacional), prestando-se aos fins específicos de urbanização, industrialização, edificação, cultivo de terra ou outra utilização de interesse social, sendo contratada gratuita ou onerosamente, por instrumento público, particular (terrenos privados), ou por simples termo administrativo. Não se limita apenas à questão de moradia.

Se diferenciam também em relação a transmissão, enquanto concessão de uso transmite-se por morte ou negócio jurídico inter vivos, o direito real de uso, vitalício e intuitu personae (FARIAS; ROSENVALD, 2015).

No caput do art. 7º do Decreto-lei 271, de 28 de fevereiro de 1967, alterado pela Lei nº 11.481 de 2007, agora dispõe que é instituída a concessão de uso de terrenos públicos ou particulares remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de regularização fundiária de interesse social, urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, aproveitamento sustentável das várzeas, preservação das comunidades tradicionais e seus meios de subsistência ou outras modalidades de interesse social em áreas urbanas. O legislador, desta forma, demonstra atenção às populações de baixa renda

Reforça o Decreto-lei n. 271 de 1967 em seu art. 7º, §2º que desde a inscrição da concessão de uso, o concessionário fruirá plenamente do terreno para os fins estabelecidos no contrato e responderá por todos os encargos civis, administrativos e tributários que venham a incidir sobre o imóvel e suas rendas.

Concessão do uso especial para fins de moradia

Estão elencados no art. 6º da CRFB/1988 os direitos sociais e entre eles está o direito à moradia. Prevê também em seu art. 183, §1º, que o título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

A concessão do uso especial para fins de moradia é direcionada aos imóveis públicos, relacionando-se imediatamente à função social da posse. Em vista disso, se diferencia do direito real de uso, pois a finalidade da primeira é exclusivamente para moradia, não abrangendo qualquer ocupação que traduza interesse social (FARIAS; ROSENVALD, 2015).

Segundo Ribeiro (2016), com a previsão desse instituto, pode-se regularizar a situação fundiária de imóveis públicos ocupados de forma irregular, além de garantir o acesso da população de carente às terras urbanas. Desse modo, a ocupação das terras públicas ociosas que não cumpriam com a sua função social passou a ser regulamentada pela Medida Provisória 2.220 de 2001, a qual estabelece que para a concessão do direito, o beneficiário não poderá ser proprietário ou concessionário de outro imóvel tanto urbano quanto rural. Além disso, apenas poderá ser garantido o direito de uso do bem público para fins de moradia apenas uma vez ao mesmo concessionário. Nesse diapasão, a referida Medida Provisória dispõe em seu artigo primeiro que:

Art. 1o Aquele que, até 22 de dezembro de 2016, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área com características e finalidade urbanas, e que o utilize para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural (BRASIL, 2001)

Em virtude da vedação da aquisição de propriedade pública por usucapião, evidencia-se que esse instituto apenas transfere a posse ao particular. No entanto, por se tratar de direito subjetivo, a concessão garante o poder de preservar a posse até mesmo contra as arbitrariedades do Estado. Assim, caso a administração pública necessite, de forma fundamentada, da remoção da família em decorrência de interesse público, deverá indenizar o beneficiário. Tratando-se de herdeiro legítimo do concessionário, é garantido a ele o direito de continuar na posse de seu antecessor. No entanto, para que isso ocorra, o descendente deverá residir no imóvel na ocasião da abertura da sucessão (RIBEIRO, 2016).

Pelo apontado, verifica-se que o Estado desenvolveu medidas para assegurar o direito à moradia. Percebe-se ainda, que a lei estabeleceu alguns requisitos justos para amparar o indivíduo, bem como seu núcleo familiar, que carece de moradia, garantindo um uso social da terra pública ociosa.


Considerações finais

No Brasil, apesar de serem direitos constitucionais positivados, o direito à moradia e à propriedade geralmente são confundidos entre si. Todavia, esses direitos não se confundem, podendo ou não coexistirem.

São direitos autônomos, sendo o direito à moradia um direito que garante vida digna à população.

Os direitos à moradia e o direito à propriedade foram implantados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, estabelecendo, pois, estes pressupostos como fundamentais para uma vida digna, além de assumir papel de defesa à integridade humana.

O Brasil, ao se tornar signatário dessa Declaração, concede ao direito à moradia status de garantia fundamental de segunda dimensão por meio da Emenda Constitucional 26 de 14 de fevereiro de 2000, trazendo no bojo do artigo 6º, caput da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988), nova redação, e, como tal, é dever do Estado garantir seja cumprido de forma positiva, através de políticas públicas que assegurem o acesso a todos.

“Os direitos sociais constituem as liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por objetivo melhoria das condições de vida dos hipossuficientes, visando a concretização da igualdade social” (ALEXANDRINO; PAULO, 2015, p.247).

Já o direito à propriedade, que diz respeito às faculdades que o proprietário tem de usar, gozar, dispor e reivindicar o bem, está previsto no art. 5º, incisos XXII e XXII da CRFB/1988. Os referidos incisos ainda fazem menção à função social da propriedade, englobando princípios do bem comum, da participação e da solidariedade que norteiam essa função realizada pela propriedade.

 Pela sua relevância e significado, essa necessidade passou a ser reconhecida como direito inerente à pessoa humana, todavia, não é amplamente observado. Segundo o censo demográfico do IBGE de 2010, são mais de 6 milhões de domicílios vagos, e mais de 6,9 milhões de família sem ter onde residir.

Ainda, tem-se mais de 10 mil imóveis pertencentes à união, sendo 80% deles prédios comerciais, residências, salas, galpões e terrenos.

No tocante ao tema invasão e ocupação, geralmente são edificações privadas que são atingidas em maior número. As pessoas que, em regra, vivem em situação de miserabilidade, escolhem determinado local para ocupar e ali estabelecem sua residência ou mesmo seu local de trabalho; imóveis estes que podem ser alcançados pelo instituo do usucapião. Mas quando acontece com prédios públicos, os bens intitulados de dominicais, aqueles que, conforme o art. 99 do CC/2002, são os “[...] que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades”, não podem ser tomados por particulares e tampouco usucapidos.

Tal previsão encontra-se expressa na CRFB/1988, art. 183, parágrafo 3º e 191, parágrafo único que deixam expressos em suas redações que os imóveis públicos não podem ser adquiridos por usucapião quando a propriedade é adquirida de pela posse ininterrupta e prolongada. O art. 102 do CC/2002 rechaça o previsto na Carta Constitucional.

Acontece que esses imóveis em desuso pela administração pública não têm destinação específica, apenas geram despesas. Ainda, apesar desse número elevado de imóveis sem utilidade, estima-se, de acordo com o Ministério de Planejamento, seja gasto algo em torno de R$1,6 bilhão por ano com aluguéis para abrigar órgãos públicos.

Observa-se, pois, através dessa pequena análise que os prédios inutilizados pela Administração Pública não estão exercendo a sua função social, e sim, despesa para os cofres públicos. Daí se extrai o questionamento: quantos prédios públicos estão abandonados poderiam servir de moradia para a população mais pobre?

Por mais que seja uma ordem expressa na CRFB/1988 a de que imóveis públicos não podem ser objeto de usucapião, em contrapartida também o é a garantia fundamental à moradia digna.

Acredita-se que seja o bem de que natureza for, deve-se prestar ao fim que se destina, assim, ao múnus da função da social.

Quanto ao jurisdicionado, ao determinar a remoção de pessoas das edificações esbulhadas, cumpre a lei, pois tem o Estado direito de reaver a posse do bem. Lado outro, quando são tomadas essas providências, deixa de observar direito e garantia fundamental elencada no art. 6º da CRFB/1988.

Às vistas dos princípios da proporcionalidade, da dignidade da pessoa humana e da razoabilidade, cujo principal intuito é a preservação e o respeito dos direitos de cada cidadão e a manutenção do bem-estar social, percebe-se que seria justo valer-se dos institutos da concessão do direito real de uso e concessão de uso especial para fins de moradia, uma vez que os imóveis inutilizados, geradores de despesa para o Governo, passariam a ser de responsabilidade do sujeito ocupante, o qual teria pura e tão somente a posse do bem, durante toda sua vida, sem que recaísse sobre os mesmos o instituto do usucapião. Logo, a propriedade exerceria a função a qual é destinada, e deixaria de ser fonte de despesas para a Administração Pública.


Referências

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Nota

[1] De acordo com o art. 182, § 1º da CRFB/1988, “O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. ”


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Maria Victória Veloso e; MIRANDA, Esdra Carolyne Primo et al. A crise habitacional no Brasil e o direito à propriedade: Os institutos da concessão de direito real de uso (CDRU) e da concessão de uso especial para fins de moradia (CUEM) como solução viável ao desenvolvimento urbano e enfrentamento da crise. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 6020, 25 dez. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/76030. Acesso em: 19 abr. 2024.